Entrevista

"Um percussionista é um colecionador de histórias"

Carlinhos Brown chega aos 60 anos e celebra nova idade com trilogia de discos que inicia com 'Carlinhos Brown é Mar Revolto', álbum de rock lançado no início de novembro

TEXTO Leonardo Vila Nova

23 de Novembro de 2022

Carlinhos Brown, músico, cantor, compositor, produtor, arranjador, agitador cultural

Carlinhos Brown, músico, cantor, compositor, produtor, arranjador, agitador cultural

Foto Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Antônio Carlos Santos de Freitas tem uma sofisticada habilidade (ou dom): transformar qualquer coisa – objeto, conversa, pensamento – em música. Foi essa característica – descoberta quando criança, tirando som dos tonéis onde carregava água para a mãe, Dona Madalena, que era lavadeira – que o levou a exercer o ofício defendido por ele até hoje, dia 23 de novembro de 2022, data de seu aniversário de 60 anos.

Carlinhos Brown – o músico, cantor, compositor, produtor, arranjador, agitador cultural – está há mais de 40 anos dando o ritmo em boa parte das produções da música brasileira, tendo sido gravado por nomes como Caetano Veloso, Gal Costa, Maria Bethânia, Milton Nascimento, Marisa Monte, Nando Reis, Cássia Eller. A lista é imensa.

O percussionista baiano, nascido e criado na comunidade do Candeal, em Salvador, brilhou para o Brasil a partir da axé music, com músicas cantadas por Chiclete com Banana, Luiz Caldas, Jerônimo, Margareth Menezes... E pela Timbalada, grupo percussivo que criou em 1992 e estendeu o alcance da sua arte para além dos limites do gênero, abraçando todos, na verdade. Brown já ganhou o Grammy, de world music, em 1992, pelo álbum Brasileiro, de Sérgio Mendes, que teve uma participação vigorosa do artista baiano em grande parte do disco. Em 2012, foi indicado ao Oscar pela canção Real in Rio, do longa em animação Rio, de Carlos Saldanha.

A música de Carlinhos Brown reúne uma infinidade de referências, desde os cânticos dos terreiros de candomblé – especialmente, a percussão, os toques – aos sambas, passando pela música latina (cumbias, salsas, rumbas), pelas serestas, pela black music etc. Mas, no seu arsenal sonoro, também há espaço para o rock, gênero do qual parece distante, mas com o qual vem dialogando e criando junto há um tempo – vide a participação que fez no álbum Roots, da banda Sepultura, em 1996, ou quando levou bandas como o Angra para subir e tocar no trio elétrico, em pleno carnaval da Bahia.

Agora, Brown dá uma chegada no rock mais uma vez, ao lançar este mês o álbum Carlinhos Brown é Mar Revolto, junto à banda Mar Revolto, grupo de rock do qual fez parte em 1979, ainda adolescente. O disco ficou “engavetado” durante 15 anos, até ser concluído e é um lançamento exclusivo da Apple Music, gravado em Dolby Atmos (tecnologia sonora que permite uma audição tridimensionalizada) e conta com participações de Rita Lee, Rafael Bittencourt e Bruno Valverde, guitarrista e baterista do Angra, e de Tarja Turunen, ex- vocalista da banda finlandesa Nightwish. O trabalho faz parte de uma trilogia comemorativa dos 60 anos de Brown – na sequência, ele lançará um disco de axé music e um álbum instrumental.

Em entrevista à Continente, por chamada de vídeo – diretamente do seu estúdio Ilha dos Sapos, em Salvador –, o novo sessentão falou sobre sua relação (e o começo) com a música, a percussão, sobre a espiritualidade no candomblé, o racismo, o rock’n’roll (inclusive, nos lembrando que a origem do rock é negra) e seu reencontro com a banda Mar Revolto. A conversa com Carlinhos não segue um caminho linear, uma vez que ele faz links dentro dos assuntos o tempo inteiro. Mas, em pouco mais de uma hora, ele foi passeando por lembranças, sentimentos e ensinamentos à sua forma; de quem parece sempre querer devotar reverências aos mestres e à música/vida, como lemos a seguir.

CONTINENTE Brown, você é músico, cantor, compositor, arranjador, produtor... Isso teve um começo. Me fala como foram tuas primeiras percepções sobre a música, como você começou a perceber que a música era o teu caminho.
CARLINHOS BROWN Como hoje, um operário da música. Esses outros títulos vêm devido à eficiência de resposta ao me chamam, quando recorrem a mim. Mas, meus mestres são assim. Tenho mestres incríveis, como Naná Vasconcelos, Djalma Corrêa e, principalmente, meu mestre baiano, que é Mestre Pintado do Bongô. Mas, todos eles, por serem percussionistas, já nasceram multi-instrumentistas, já é do curioso. E, claro, o conhecimento rítmico lhe avança muito, porque a gente passa por muitas “comas” que saem do tambor, que não tão numa guitarra, que não tão num piano, que completa aquela harmonia de dó a dó e fica diferente. Vamos dizer que na percussão tá toda a escala pentatônica ainda viva, sem uma definição de afinação. A gente escolhe o que a alma quer dizer. Mas quando eu percebi que eu podia fazer música, foi quando eu comecei a carregar água pra minha mãe... Eu tocava latas. Eu carregava água na lata, subia com ela cheia, pra lavar roupa. Era tonel de querosene, reservatório de água, e tinha que encher até a boca – a minha primeira borda infinita, eu conheci enchendo tonel pra minha mãe lavar roupa. E, com isso, conheci toda a força da música, que me despertou harmônicos que são únicos e que só encontro nas latas.

CONTINENTE Teve alguma influência do ambiente do Candeal nessa construção, nessa tua formação como artista?
CARLINHOS BROWN Total. Voltando à lata: a lata continua sendo instrumento de iniciação musical dos brasileiros, sobretudo em comunidades. A gente vai encontrar muitas bandas de latas, como na comunidade onde eu nasci, que é o Candeal. Nessa comunidade, em que eu também tocava lata, não tinha água encanada – porque tinha água de rio –, luz elétrica, mas tinha música. Os sambas e aniversários de carurus eram com pandeiros com couro de jiboia e com o que achava de latão pra usar. E era pandeiro quadrado, pois pandeiro redondo foi uma coisa que veio com os portugueses. Como ninguém tinha torno pra “arrodear”, era quadrado. Quando eu vim ver um pandeiro redondo já foi pós-escolas de samba, pós-Candeia, Roberto Ribeiro, Martinho da Vila. Mas o Candeal, o lugar onde eu nasci, era arrodeado de terreiros de candomblé. E, na parte alta, tinham os conventos, os retiros, os abrigos. E o bonito de toda essa coisa é que os seresteiros estavam ali, com Vicente Celestino, Ataulfo Alves e os grandes famosos da época, que era toda a influência que Cuba e México tinham, eu ouvia muito Bienvenido Granda com meus pais, esses boleros todos, que, por sua vez, me fizeram gostar muito de Adilson Ramos.

O importante de tudo é que essa memória musical tinha um poder positivo e motivador educacional incrível, e que isso termina traduzindo o que sou e fazendo com que, verdadeiramente, eu respeite essas oportunidades que vieram desses grandes mestres e que continuam vivas em mim. E a internet não mudou esse pensamento que eu friso o tempo inteiro: tá cheio de gênio sem mestre na internet, né? Como se a gente não tivesse uma referência, como se o Brasil nascesse agora e todo mundo nascesse com um dom, com algo que ninguém havia feito. E é o contrário: o esteio é a música popular brasileira, são esses grandes.


Foto: Thiago Del Rei/Divulgação

E por que eu me interessava? Porque meu Mestre Pintado do Bongô era um seresteiro, ele tava vindo das orquestras, mas ele tinha uma rebeldia que parecia muito mais um roqueiro, e se vestia como BB King, com aqueles ternos. Quando as orquestras caíram, ele disse: "Nunca mais eu toco por dinheiro". Pra minha sorte, ele virou motorista do governador da época, Luis Viana Filho, que veio morar aqui perto, e como ele tinha que acordar cedo pra atender o governador, ele veio morar no Candeal. Aquela pessoa que se vestia de terno, elegante, e tocava nos finais de semana lindamente. Então, eu queria ser aquilo. Ele disse que pra ser aquilo, eu tinha que seguir exemplos [...] E ele disse a mim: “Seja um sambista, mas não um sambista só de samba, porque o samba é o único ritmo que faz você entender todos os gêneros, porque todos os gêneros passam por ele”.

CONTINENTE Você é percussionista, e o teu instrumento essencial é o tambor, que é expressão forte do carnaval baiano e é também instrumento de mediação com o universo religioso. Ou seja, o sagrado e o profano. Como você lida com essas duas dimensões distintas?
CARLINHOS BROWN Sendo sagrado o tempo inteiro. Porque o profano busca uma liberdade para o espírito que o espírito vai depender da carne pra ter. Eu acho que o pecado é mais uma invenção humana do que divina. Do divino, advêm todas as experiências. Então, eu penso o tempo inteiro que toda vez que eu vou tocar, eu me preparo pra tocar. Meu corpo não pode ter uma gota de álcool, nada que me tire da realidade pra tocar. Tenho que estar ligado com o universo, porque senão será diferente. Você pode até experimentar uma coisa, mas, pra ser verdade, pra você imprimir espiritualidade, realmente, você tem que estar pronto pra espiritualidade lhe atingir. E pelo fato de ter nascido no Candeal, que está situado em Salvador/Bahia, que é a primeira cidade latina das Américas. Por isso, o Candeal, em algum momento, foi escolhido para fazer o primeiro Okta de Ẹlẹ́gbára, que é o primeiro Okta de um Exu na América Latina, completamente diferente e longe das roças, que já faziam e que tinham que fazer com muito preceito e muito cuidado, e isso seguiu na minha trajetória, esse cuidado, essa responsabilidade.

Todos os filhos do Candeal são treinados e preparados para esse entendimento, para esse legado. Pois, se a gente está falando com uma divindade que comanda as estradas e abre as portas, a gente precisa saber entrar e sair, e isso se faz com estudo, com respeito, com buscar conhecer do outro, se aprofundar, entender mais, ouvir mais, acho que é isso que acaba dando essa formação. E um percussionista é um colecionador de histórias, é também a manutenção de histórias, mas é um colecionador de sonoridades e, às vezes, a sonoridade não pode morrer em apenas um conceito ou um estilo. Então, o percussionista, ele voa e quer mais.

CONTINENTE Você representa um Brasil profundamente plural, na sua cultura, na sua expressão. Um país em que predomina a raça negra, mas que ainda hoje apresenta resquícios dos séculos de escravidão, como o racismo. Você é um homem preto, brasileiro e vive nesse país, que é plural, mas, também, racista. Como você se reconhece em sua negritude e qual a importância da exaltação dessa negritude dentro da sociedade brasileira?
CARLINHOW BROWN Como percussionista, eu posso afirmar que a percussão é o ativismo mais antigo do homem no mundo. No Brasil, não foi diferente. Começou-se a cercear os tambores, essa foi a primeira ação. Tocar percussão já é um ato de defesa, já que toco guitarra, que toco um pouco de piano, já que toco instrumentos muito mais recentes, que têm dois ou três séculos, no máximo. Mas também toco instrumentos de 5 mil até 5 milhões de anos – vamos dizer que o berimbau está entre as primeiras guitarras do mundo. O que eu vejo é que todas essas posturas, ou imposturas, que recaem sobre etnias no Brasil passam pelo fato de ainda não ter havido uma educação dedicada à compreensão da mestiçagem, da miscigenação, o que, inclusive, lança riscos até sobre a cultura negra, agora.


Foto: Thiago Del Rei/Divulgação

A gente sabe do problema que é o racismo – coisa que eu não amplifico, porque essa dor é do racista. Tive vários momentos, passagens fortíssimas que gerariam... Encontrei outra forma de fazer, fazendo escola, fazendo a música que eu faço, vestindo a roupa que eu visto, assim é a minha forma de combater. E quando alguém fala, eu dou um sorriso. Mas, também defendo aquele que dá a voz pra dizer que isso não deve existir. E não é só racismo com a cultura negra, não. Pois parece que só tem racismo com preto. Tem também com o indígena. Mas, a primeira força racista do Brasil começou com o povo Sinti. O Brasil dizimou a cultura cigana. Fez com que todo mundo se escondesse. Quando você pergunta, ninguém diz que é cigano, diz até que é mouro, mas não se identifica como cigano. Ainda existe aquele preconceito de que cigano é enganador, que vai te roubar, mas, na verdade, o povo brasileiro é muito mais cigano até do que esse europeu que se imagina ser, e quando não é negro.

O que eu imagino é que não pode se tirar de nós uma saudade de futuro, ou uma saudade que nunca tivemos, pois pouco sabemos de onde verdadeiramente viemos, mas sentimos de onde viemos, e por isso que a gente tem que preservar a cultura negra. Mas ainda existe uma ideia exclusivista de que “tudo na minha etnia é melhor”. Nós temos que compartilhar o melhor das nossas etnias, porque isso é pertence do ser humano. As experiências étnicas ainda estão por fundir-se para a gente encontrar um caminho único de compreensão humana.

A gente encontra isso na pizza: serve para todas as etnias e ninguém reclama do Império Romano quando come. A gente faz isso com o acarajé ou com quem inventou o camarão na moranga. Então, a comida, como a arte, a arte culinária, a arte musical, já avançou, tão lá na frente. O ser humano é que fica feito um cachorro, correndo atrás do próprio rabo, revisitando, sobretudo, erros que foram cometidos no passado e que não cabem mais. Não cabe mais ter preconceito sobre nenhuma característica humana. O homem já acorda com preconceito: “Ih, o sol tá quente demais”. Aí chove: “Porra, tá chovendo!”. Isso vai existir sempre no ser humano, o que não pode existir é o desrespeito. Ninguém é melhor nem maior pela tonalidade da sua cor. Nós sangramos igual. E me preocupa muito o que eu vi agora, um tipo de ação que divide o Brasil, divide o Nordeste do Sul do Brasil. Isso é um erro grosseiro. Isso não tá apontando pra nada. Nós precisamos uns dos outros, o tempo inteiro. E se nós trouxermos informação, nós estaremos trazendo a luz sobre uma etnia única, que busca, sim, ser pura, que é o brasileiro. Ele vai ser afro, ameríndio, mouro, nórdico, mas a mistura brasileira se dedica a corrigir os erros cometidos por etnias dominadoras, que só achou que era melhor, mas esqueceu de viver.

CONTINENTE Você lança, agora, um disco de rock. E já gravou no disco do Sepultura, já levou bandas de rock para subir no trio elétrico em pleno carnaval baiano. Me fala um pouco dessa tua relação com o rock.
CARLINHOS BROWN É puramente étnica. Eu sou negro e o rock nasceu com a cultura negra. O rock é a primeira manifestação de “reafricanização” do mundo. Ele começa com Sister Rosetha Tarpe, uma mulher que acelerou o blues. E quem é que reafricaniza? Elvis Presley. [Ao notar o olhar de espanto do entrevistador, Brown enfatiza] É claro que Elvis Presley reafricaniza! Ele nasceu entre negros e resolve cantar como negros e dançar como negros. E, naquele momento, ele junta a América. Então, esse é o processo que Little Richard não tava conseguindo totalmente. E isso era tão forte, que a própria América puxou ele pra ser americano, quando ele queria o mundo. E era importante essa mensagem pro mundo. E é tão bonita essa reafricanização, porque ela é matriarcal, né?

Então, essa relação nunca foi distante, pois quando eu toco berimbau, eu toco com uma pedra e distorce na hora. O berimbau é uma guitarra distorcida. E eu digo: eu tenho tudo do rock, menos a atitude do roqueiro. E isso me dá uma visão de que o que eu quero dali é a música. Igual à capoeira: eu nunca joguei capoeira, mas sei tocar tudo da capoeira, porque eu escolhi a música da capoeira, assim como escolhi a música do rock. E tem uma coisa engraçada, sobretudo no metal: os metaleiros crescem o cabelo e todos dançam igual a [o orixá] Omolu, com o cabelo na frente.

Talvez, o tempo e a maturidade façam a gente refletir algumas coisas. E o que eu quero dizer com essa reafricanização é que isso é bonito, que isso é de todo mundo, expressão de todos. Então, o metal e aquele jeito é mundial. E, pelo fato de você consumir coisas que são extremamente bem-feitas por serem feitas em países com maior poder aquisitivo, isso prioriza, de que parece que só aquilo é bom. Pô, a gente tem Raul Seixas! Eu nasci no país em que nasceram Chico Science, Alceu Valença, em que nasceu Raul [Seixas], nasceu Rita [Lee], em que nasceu Sepultura. E quando eu fui para a América, eu toquei com o Living Colour. São meus amigos. Eu já fui convidado pelo Scorpions para produzi-los, e, infelizmente, eu tinha uma turnê e não consegui fazer.


Foto: Divulgação

Voltando ao rock na minha vida, ele tá muito ligado à minha infância. Quem me trouxe o gosto pelas guitarras foi Caetano [Veloso], foi o Tropicalismo quem me trouxe a sonoridade. Aqui, também tinha a guitarra baiana. E os crentes já tinha adquirido captadores. Quando eles tocavam aqui, nas caixas de som com problemas de fase, de energia, era pra lá de rock’n’roll [simula um som de distorção], e o cara cantando "Glória, Glória, Aleluia" com aquilo distorcidão. O que me chamava a atenção mesmo era a energia do rock. Eu não posso dizer a você que o axé music não seja. E o axé music tá muito mais, felizmente, assumidamente para o "rock farofa", que é um rock feliz, escrachado. E isso sempre mantendo o respeito, sem precisar ser sisudo. O rock me levou a ser parceiro de Cazuza, a tocar com Steve Vai. Eu já toquei com muitos dessa linha, embora eu não seja o cara que veste a camisa preta. Mas, eu tô no fazer, e sou fã de muitos deles, sou fã do Metallica, mas venho de uma admiração pelo rock melódico também, do Queen, do Kiss, do The Who, eu sou dessa geração, que ouve essas coisas, Led Zepellin.

Mas, o melhor de tudo foi uma banda de rock que me tirou do bairro em que eu vivia, na pobreza, e que acreditou em mim, como músico. Eu estava na porta de uma escola e um guitarrista, Arnaldo, me convidou para participar como caixista de um grupo que ia tocar no trio elétrico, e esse grupo era o Mar Revolto. Eles faziam o quê? Guitarra grande, pedal, baixo, coisa que o trio ainda não tinha, no máximo, Armadinho e Pepeu tavam fazendo. E ainda era aquele trio muito calcado na linguagem pernambucana, trio de guitarra baiana e tudo, mas embaixo era frevo tocado com tan-tan, caixa clara e prato, tudo na mão. A formação do frevo baiano, do qual o Recife é o Papa, traz também a linguagem de Cochabamba, e acaba dando essa informação. Por isso, o axé music é muito influenciado por esse conceito. Eu acho que a música que eu escrevi com o Chiclete com Banana, tira a caixa do meio e bota no lugar do pop, e joga uma percussão de rumba, com a ideia de guitarra à la “Ben Jor”, com uma introdução de teclado daquelas que imita metais, isso virou marca do axé music. Então, acho que, com isso, junto com o Chiclete, conseguimos dar um passo enorme, assim como Jerônimo, que gravou É d'Oxum e que acompanhei, assim como tenho orgulho de ter sido percussionista do “fricote”, que Luiz Caldas tava fazendo, em que se aplicou ali africanidades enormes – quando as outras músicas dele eram mais ligadas ao country, ao pop-rock dos anos 1980. Eu fui do grupo Acordes Verdes, que acompanhou Luiz. A gente gravava com todo mundo: Netinho, Bell, Asa de Águia. A gente era requisitado porque tinha experiência de estúdio.

CONTINENTE E como foi o teu reencontro com o Mar Revolto? O disco que vocês lançam agora, na verdade, ficou “engavetado” por 15 anos. Como foi a retomada desse trabalho?
CARLINHOS BROWN Eu esqueci de dizer uma coisa, que foi o meu encontro com o Mar Revolto: minha tia perdeu a visão muito cedo, eu era muito próximo dela e fui estudar pra ser guia dela, no Instituto de Cegos. Em uma dessas aulas, a monitora não foi. Na verdade, às dez horas, ela começou a fazer uma aula; ao meio-dia, ela foi embora. E tinha um monte de deficientes visuais esperando lá pra fazer aula. Então, eu fui ensinando a minha tia todos os procedimentos. Quando eu fiz isso, tinham mais 12 pessoas esperando, e um disse: “O sobrinho de Alice sabe, vai ensinar a gente”, eu queria ir embora, mas disseram que iam pagar minha merenda. Eu todo feliz, merendando, então eu fiz. A diretora do Instituto de Cegos chamou minha tia na sala e me chamou. “Quer dizer que você é o novo monitor do Instituto de Cegos?”, mas eu disse que, na verdade, eu queria era fazer música. Ela disse que, a partir de então, eu seria o monitor dos 13 cegos, mas que teria acesso livre a todas as festas que o Instituto promovia. Então, eu conheci Jerry Adriani de perto, fiquei amigo dele. Vi Erasmo de perto, de quem virei parceiro. Michael Sullivan, que virei parceiro.

Mas, o primeiro show eu fiz foi na Concha Acústica, que tinha “o cantor das multidões”, Silvio Caldas, Raul [Seixas] e o Mar Revolto acompanhando. Eu fiquei louco quando Raul entrou. E a diretora do Instituto de Cegos era a mãe de Raul seixas. Ou seja, a música tava ali no meu caminho. E aquilo era importante porque era diferente da música de terreiro que eu tava ouvindo, de cirandas que eu ouvia, de marchas juninas que eu ouvia com bandas como Trio Nordestino, que segurou muito essa onda do forró, que é pai do reggae. Então, depois que eu deixava minha tia no Instituto, eu voltava e ia vender picolé na porta dessa escola, que o Arnaldo me viu e me chamou pra tocar no festival. Daqui a pouco, o percussionista do Mar Revolto, Vicente, saiu e aí me chamaram pra entrar na banda. A gente tava ensaiando pra gravar um disco, que o Linconl Olivetti ia produzir, mas não tinham passagem pra eu ir gravar. Terminei não gravando no disco, mas tenho uma amizade linda com eles até hoje, porque são pessoas incríveis, grandes músicos.

Um dia, os chamei para participar de um álbum meu. Quando chegaram, a gente tocou e foi tão bom. Eles são músicos, que tocam e sai som fácil na hora. Daí, pensei: “Poxa, a gente devia gravar um álbum, né?”. A gente fez umas coisas do Mar Revolto, botou umas coisas novas e fomos fazendo, mas tinham umas coisas que a gente precisava amadurecer. Vamos refazer umas letras, refazer esses textos aqui. O melhor é que tinha uma música forte, mas o que a gente fez ainda não tava bom. Vamos fazer uma coisa pra que o Mar Revolto venha como ele merece, porque eles que acompanhavam Zezé Motta, que acompanhavam Fábio Jr. quando ele tinha um nome gringo [Mark Davis e Uncle Jack eram pseudônimos usados pelo cantor, no início de sua carreira]. Daí, teve um momento que pensei: "Vou recuperar isso!". Foi quando falei com Tarja [Turunen], com Rita [Lee], e depois falei com Rafa e Bruno, do Angra. Meu filho Miguel tava sempre ali, foi o primeiro disco em que ele gravou um instrumento. Começamos a seguir isso.

E aí, rapaz, apareceu o momento certo, algo que realmente parece com o ambiente do disco: o Dolby Atmos, com a Apple. Fui convidado pra lançar uma coisa, com Beto Neves, com Rodrigo... Vamo bora! É esse o momento! Quando eu entrei na sala do Dolby Atmos, eu disse: “Isso nasceu pra esse álbum”. Ou seja, o álbum demorou pra nascer na melhor das tecnologias. E soa muito bem, porque é atemporal. E a capa, que todo mundo imaginava que foi feita agora? Tudo aquilo foi feito com 15 anos atrás, todo aquele conceito [...] Os conceitos de rock estão ali. Por isso que fui atrás de Sullivan, de Rita Lee, de Arnaldo [Antunes], de Raquel Jacobs, que já era minha parceira e tinha uma banda de rock aqui – Raquel é parente de Aldo, baterista do Camisa de Vênus. Ela é minha parceira de rock, temos uma filha juntos, Nina, que é cantora e mora nos Estados Unidos, convivemos bem até hoje. E tem [Gilberto] Gil, que não poderia estar fora, com É, composição dele, bem legal.


Capa do álbum Carlinhos Brown é Mar Revolto.
Imagem: Reprodução

CONTINENTE Quem é o Brown que chega, agora, aos 60 anos?
CARLINHOS BROWN Evoluiu muito mais a minha criança do que o adulto. O adulto tem erros e não tem espaço nenhum de criatividade, é racional. A criança, não, é espontânea. Então, eu busco essa maturidade, mas com um olhar de liberdade que também um adulto possa ter. Eu vejo tudo isso e sou grato pela oportunidade que a música popular me deu, porque me trouxe formação. A música me formou. Por exemplo, esse disco que tô fazendo agora, pros 60 anos, é parte de uma trilogia. Nas próximas semanas, eu vou tá lançando um próximo álbum. Você pode ver que começa no rock. Daí, eu vou pro axé. E quando eu vou pro axé, é com um propósito de renovação de repertório, já que quando eu olho pra trás, pro axé dos anos 1980, foram minhas músicas que continuaram e que ficaram. Selva branca, quando Bell canta, ou Maimbê Dandá, ou Dandalunda, essas músicas ficam, mantêm o Carnaval. Inclusive, quando chega no Carnaval, me colocam – não sei esse ano – como número 1 de arrecadação, porque essas músicas estão no inconsciente coletivo. E isso é muito difícil de conquistar. E isso se conquista com a coletividade. Não é nenhum mérito meu, é um mérito da coletividade. Essa coletividade chama-se axé music, e ela merece renovação de repertório, só que agora eu vou dar um axé muito mais amadurecido, com um conhecimento melhor sobre minha origem.

Então, eu posso cantar os orixás e o que eles estão dizendo, em iorubá, fundindo com as línguas matrizes e com as línguas atuantes, fazendo textos que soam – tem gente que vai ouvir onomatopaicamente, tem gente que vai ouvir como um neologismo, mas vai ouvir aquilo que é o contato primal, ou ventral, que é o verdadeiro balbuciar da criança. A gente pode não entender imediatamente o que a criança tá dizendo, mas sente, e a gente vê que sempre tem uma reação de sorriso e alegria, essa manifestação infantil, e é nisso que eu acredito.

LEONARDO VILA NOVA, músico e jornalista cultural.

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