CONTINENTE Como a pandemia te impulsionou nesse processo de organização, composição e curadoria das músicas?
DORALYCE Olha, eu sou semente. Então, toda vez que me enterram, eu floresço. E o que eu acho é que a gente descobriu maneiras bonitas de transformar o luto em luta. A gente perdeu muita gente. A gente não perdeu as pessoas só para a Covid-19, a doença trouxe uma série de outras consequências com esse governo desumano e genocida que quer mesmo que as pessoas morram e enlouqueçam. Então, muita gente se matou, a gente viu. As pessoas não falam sobre isso porque se tem o medo de criar uma onda, um movimento de impulsionar outras pessoas a seguirem, a cometerem suicídio também, mas o que aconteceu foi que nós fomos exterminados por falta de vacina, por fome, pobreza, miséria, falta de saneamento básico e violência policial pra caramba. O nosso povo morreu muito na mão da polícia desde que a pandemia começou. Não foi só a Covid-19. É um plano. Por isso que eu falo na última música do disco: “Não deixe te alienar, detone os planos, rompa com a ideia, é uma guerra, o que você tá esperando pra assumir o play, tomar o comando e não deixar barato, que já tão te roubando há anos?”; então, eu acredito que eu transformei luto em luta.
CONTINENTE A primeira faixa do seu álbum é a música Terreno fértil e nela você faz uma análise da conjuntura política e social do país repetindo diversas vezes a frase “Quem tem fome tem pressa”, do sociólogo Herbert de Souza, o Betinho. Já em Batida salve todes, a última música do disco, você faz referência a Milton Santos, com a frase: “E a quem destina a fome? Milton Santos me diria, pobreza de milhões é fato, quem beneficia”. Como a afirmação desses grandes pensadores dialogam com o Brasil de hoje?
DORALYCE Olha, Terreno fértil é uma canção que eu produzi com Chris Beats Zn e VilãoduBeat. A música fala sobre tudo o que eu conseguia ver naquele momento. Eu falo sobre os banqueiros, os garimpeiros e questiono por que a gente passa fome. Aí eu explico: banqueiros, garimpeiros, a turma do agronegócio, é bala Bíblia, bala boi, bala que só atinge os nossos. E se a gente se rebela, quem impede de vencer? Os Fardados que são pagos pra mantê-los no poder. Então, na música, eu falo sobre o intelectual e faço uma análise de conjuntura, pois em momento algum, na música, a gente se coloca como quem carrega as dores dessa sociedade. A gente sai da base da pirâmide para se colocar no centro pensante. Então, trazer uma análise de conjuntura para falar sobre Milton Santos na última música do disco, a Batida salve todes, que é onde eu faço uma alusão à brincadeira de esconde-esconde. A última pessoa consegue salvar todo mundo e, pra salvar todo mundo, eu falo sobre orixá, eu falo sobre a importância de a gente estar conectada com a nossa fé, porque a gente não é só um corpo, a gente é espírito. A gente é alma, a gente não veio para esse planeta só para existir, reproduzir e morrer. A gente veio com a missão. A gente veio para transformar vidas, a gente veio para compartilhar afetos e eu acho que, em Dádiva, eu consigo imprimir isso tudo.
CONTINENTE Seria importante que todas as pessoas ouvissem a sua música, incluindo, principalmente, os estudantes do ensino fundamental e médio. Através da canção, você consegue educar e explicar muita coisa importante.
DORALYCE Está chegando. Só que eu estou tentando fazer músicas com menos palavrões. Eu preciso ter mais cuidado porque eu me torno educadora e uma influenciadora de criança também. Isso é muito massa. Eu fico muito feliz e desejo e prospecto para que, em 2022, aconteça realmente uma revolução na minha vida.
CONTINENTE Mas essa revolução já está acontecendo, né Doralyce? A sua música já apareceu no BBB, que é o maior reality show do Brasil e foi a trilha sonora de participantes como Marcela McGowan, Lumena Aleluia e na voz de Jessilane Alves.
DORALYCE Faz quatro anos que sempre entro com um participante. Eu fui a trilha da Lumena no ano passado, fui a trilha da Marcela em 2020 e, em 2022, a Jessi, a nossa professora, meteu um Miss Beleza Universal dentro da casa, mas só que olha o que ela estava cantando: “A queda da hierarquia é anarquia (...) a democracia é uma ditadura disfarçada” [risos]. Eu acho chocante e fico muito feliz, porque eu ainda sou muito pequena para o mercado, mas sempre tem alguém no BBB que me conhece lá dentro e isso é muito especial. Como foi o caso de Gabriela Hebling que hoje é minha amiga de vida.
CONTINENTE Nesse novo disco, você também fala sobre afetos, amor e a questão da sonoridade, principalmente quando se trata de mulheres pretas. Você traz a questão da autoestima e do empoderamento em pauta. O cantor baiano Baco Exu do Blues não faz diferente, em seu novo álbum ‘Quantas Vezes você já foi amado?’(QVVJFA), o rapper também traz a questão do afeto e expõe sentimentos profundos sobre a dor de um homem preto. Qual a importância de discutir essas relações afetuosas das pessoas pretas na sociedade?
DORALYCE Eu acho que o amor cura. Eu acho que o amor preto é cura. Eu acho que já está rolando um movimento muito bonito de afrocentrar os afetos e tem vários casais lindos, como Ludmilla e Brunna, Yuri Marçal e a Jeniffer Dias, Lázaro Ramos e Taís Araújo, Jada Pinkett e Will Smith e muitos outros casais pretos que existem e que inspiram a gente a construir outros tipos de relações afetuosas. Eu acho que é muito importante que a gente tenha cuidado mais uma vez, entre nós pessoas pretas, a gente já sabe que existe um padrão, já sabemos que as mulheres brancas casam e nós acabamos sendo mães solteiras. Então, assim, eu acho que o mínimo que eu tenho tido de um cuidado e troca com a galera do movimento negro é: "Ó, se você está defendendo o discurso afrocentrado, você não pode trair sua gata ou seu gato com uma pessoa branca, porque você vai fuder a autoestima dessa pessoa", a gente precisa falar sobre essas coisas. Porque ou você se entende nessa sociedade como uma pessoa livre, disposta a amar qualquer corpo, mas você toma como compromisso devolver simbolicamente o afeto que lhe foi negado.
Eu não penso no país segregado, não quero ter um país segregado, eu acho que a gente precisa encontrar um equilíbrio entre todas as forças atuantes que tem no país e abraçar essa diversidade. No entanto, a gente tem feridas históricas de abandono, de traição e de ser trocada por pessoas brancas, que é uma realidade que eu acho que é de todas as mulheres pretas, não é só uma visão individual minha. Então, assim, vamos ter um cuidado especial de se relacionar com pessoas pretas. Porque essas pessoas vêm do mesmo lugar, que é de um campo de muita vulnerabilidade. Esse meu papo é para as pessoas pretas. Porque eu acho que as pessoas brancas têm que pensar 20 vezes antes de se relacionar com a gente. Quantos privilégios você vai abrir mão pra gente? Eu acredito em relações interraciais, mas quantos privilégios você vai abrir mão pra gente ficar de igual para igual? Porque a gente não é igual. O supermercado que você entra e passa, eu sou seguida. E quando a gente chega no mesmo prédio, vamos pela portaria principal e as pessoas me perguntam se eu vou fazer faxina no apartamento. Então, eu acho que Dádiva vem pra falar disso tudo, vem pra abrir. É uma caixa que se abre para as mulheres pretas, é uma caixa que se abre para a população preta, para saber quem são os nossos inimigos, quem são nossos aliados.
A música é meu instrumento para levar informação para as pessoas. A música é a minha arma nessa guerra. É como eu consigo trazer à tona sentimentos que outrora não foram debatidos e o que está sem ser visto mata no silêncio, na sua sutileza e isso precisa ser debatido; o afeto precisa ser debatido. O afeto preto precisa ser debatido, o lugar da mulher preta na sociedade, do corpo da mulher precisa ser debatido, precisa trazer essas pautas à tona para que a gente consiga se posicionar coletivamente e se proteger, a gente precisa se proteger porque a gente está morrendo.
Foto: Lilo Oliveira/Divulgação
CONTINENTE Você também fez uma participação no clipe Melô das musas empoderadas da Ilha Grande, da banda pernambucana Mundo Livre S/A com o Fred Zero Quatro. Conta para a gente como foi dividir essa experiência no novo álbum do artista intitulado Walking dead folia.
DORALYCE Eu fiquei muito honrada com o convite. Eu acho que o Fred Zero Quatro está fazendo um movimento muito importante com o Manguebeat, que é devolver a cultura pra de onde eles aprenderam. Achei uma iniciativa genial eles trazerem Barbarizejá e Doralyce, pra mim o que isso significa é o Mundo Livre S/A devolvendo pros pretos a cultura preta. E a capa do disco do Mundo Livre S/A é histórica, sabe? É um protesto contra a displicência do governo quanto aos cuidados sobre a Covid-19 e o plano cruel do país que é privatizar o Carnaval. Você falava assim: “Ó, a rua não pode ocupar. Por que não pode ocupar a rua? Porque se ocupar a rua, vai contaminar outras pessoas com Covid, então o que a gente vai fazer? Confinar as pessoas em espaços fechados pagando para ter Carnaval, uma festa que é conhecida mundialmente por ser um espetáculo de rua”.
CONTINENTE Doralyce, qual a mensagem que você deixa de reflexão para os jovens e as pessoas que te acompanham nas redes sociais, sobre o novo disco e a situação política do Brasil?
DORALYCE Olha, Brasil, o que eu posso falar pra vocês é: jovens com mais de 16 anos, é pela internet, é muito fácil, vai lá e tira seu título de eleitor. Você consegue fazer online e não tem muito esforço. Vamos lá tirar o título. Sobre o Brasil, o que eu posso falar hoje é: eu acho bonito o movimento de unificação das esquerdas, acho bonito a gente começar a pensar nessa diversidade coletiva e trazer mistura de partidos. Lula hoje parece ser a única esperança nesse 2022, mas eu queria falar para vocês e a minha mensagem é que um presidente não governa sozinho.
A gente precisa ter uma Câmara dos Deputados e um Senado que contemple e acredite na diversidade que a gente quer ver. Então, precisamos eleger mulheres pretas, indígenas e LGBTQIA+. Nós precisamos eleger essas mulheres e criar um parlamento diverso, que abrace todas pessoas com deficiência. Então, este ano é um ano importantíssimo pra gente entender se o Brasil entra numa derrocada fascista ditatorial ou se a gente consegue ter algum respiro e começar a reconstruir uma possível democracia sem que ela seja uma ditadura disfarçada. Agora é o momento de a gente se alinhar ideologicamente para que possamos caminhar juntes. Por fim, eu só posso te falar uma coisa no Dádiva, a gente tem rap, pagode, trap, samba e funk. Só dá o play, dança e compartilha que é importante.
Foto: Lilo Oliveira/Divulgação
CARINA BARROS, jornalista em formação pela UFPE e repórter estagiária da Continente.