Entrevista

"Toda vez que me enterram, eu floresço"

Novo disco de Doralyce traz 13 faixas, entre inéditas e remixes, com ritmos latinos e brasileiros que revelam a versatilidade da artista e o compromisso com o afeto entre as pessoas pretas

TEXTO Carina Barros

25 de Abril de 2022

“É um disco pra mexer o corpo e a mente juntos”, diz Doralyce sobre 'Dádiva', seu terceiro disco autoral

“É um disco pra mexer o corpo e a mente juntos”, diz Doralyce sobre 'Dádiva', seu terceiro disco autoral

FOTO Lilo Oliveira/Divulgação

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Dona de hinos como Miss Beleza Universal e a versão feminista da música Mulheresa cantora e compositora Doralyce lança Dádiva, o seu terceiro disco autoral. No álbum, contemplado pelo Rumos Itaú Cultural 2019-2020 com o projeto Dassalu: da descolonização ao afrofuturismo, a pernambucana traz temas que dialogam com a conjuntura socioeconômica do Brasil, permitindo um olhar profundo sobre as raízes históricas, o descaso do sistema político, as relações e afetos, o amor e o autocuidado.

Nesse novo trabalho, a artista, ativista e produtora cultural relata a importância do tempo como cura e discute a questão da autoestima e do empoderamento feminino com enfoque nas mulheres pretas, latinas e LGBTQIA+. No disco, ela divide canções com a rapper Preta Rara, Bione, Luê, Amanda Pacífico e outros artistas de diferentes gerações que dialogam com a diversidade e a multiplicidade étnica de gênero presente no país. 

Com muita diversidade de ritmos latinos e brasileiros, em Dádiva, Doralyce transmite muita luz e revolução. Em entrevista à Continente, a cantora, bastante emocionada, conta como foi o processo de composição do disco que já está disponível em todas as plataformas de streaming. Confira a seguir.

CONTINENTE Doralyce, quando surgiu a ideia de lançar Dádiva, o seu terceiro álbum autoral?
DORALYCE Olha, Dádiva é a primeira parte de Dassalu. Dassalu é um macro projeto que foi aprovado em 2019/2020, pelo Rumo Itaú Cultural, que é uma filosofia de emancipação para pessoas pretas, latinas e LGBTQIA+. Nele, a gente fala da importância de se reconhecer e trocar afetos e pensar coletivamente como construir uma sociedade isonômica. Ou seja, uma sociedade que não tenha abismos sociais e que as pessoas consigam encontrar pontos comuns para as suas narrativas, ideias e vivências. Com base nessa ideia, vem Dassalu, que é um manifesto e o disco. Só que, durante a pandemia, eu vivi vários episódios que me vulnerabilizaram; não só o nosso trabalho, mas o corpo físico e a mente. Então, a depressão chegou, bateu e deu uma sacolejada na minha vida, e eu comecei a entender que eu não conseguiria fazer uma revolução afetuosada, afrocentrada e coletiva sem curar o individual. E é daí que vem Dádiva. Dádiva é o significado do meu nome. É o que significa Dora, que é o presente e o agora. A música que é a terceira faixa do disco, eu falo que sou o novo e que meu nome é Dora, aí eu começo a falar sobre mim num lugar que a mulher preta normalmente não ocupa. Normalmente, quando nós somos colocadas em lugares de protagonismo, estamos sempre sendo objetificadas e, assim como em Miss Beleza Universal, eu contesto esse padrão hegemônico de beleza, com Dádiva eu contesto o lugar da Diva. Eu falo: "Mano, eu sou uma diva preta".

CONTINENTE Como a pandemia te impulsionou nesse processo de organização, composição e curadoria das músicas?
DORALYCE Olha, eu sou semente. Então, toda vez que me enterram, eu floresço. E o que eu acho é que a gente descobriu maneiras bonitas de transformar o luto em luta. A gente perdeu muita gente. A gente não perdeu as pessoas só para a Covid-19, a doença trouxe uma série de outras consequências com esse governo desumano e genocida que quer mesmo que as pessoas morram e enlouqueçam. Então, muita gente se matou, a gente viu. As pessoas não falam sobre isso porque se tem o medo de criar uma onda, um movimento de impulsionar outras pessoas a seguirem, a cometerem suicídio também, mas o que aconteceu foi que nós fomos exterminados por falta de vacina, por fome, pobreza, miséria, falta de saneamento básico e violência policial pra caramba. O nosso povo morreu muito na mão da polícia desde que a pandemia começou. Não foi só a Covid-19. É um plano. Por isso que eu falo na última música do disco: “Não deixe te alienar, detone os planos, rompa com a ideia, é uma guerra, o que você tá esperando pra assumir o play, tomar o comando e não deixar barato, que já tão te roubando há anos?”; então, eu acredito que eu transformei luto em luta.

CONTINENTE A primeira faixa do seu álbum é a música Terreno fértil e nela você faz uma análise da conjuntura política e social do país repetindo diversas vezes a frase “Quem tem fome tem pressa”, do sociólogo Herbert de Souza, o Betinho. Já em Batida salve todes, a última música do disco, você faz referência a Milton Santos, com a frase: “E a quem destina a fome? Milton Santos me diria, pobreza de milhões é fato, quem beneficia”. Como a afirmação desses grandes pensadores dialogam com o Brasil de hoje?
DORALYCE Olha, Terreno fértil é uma canção que eu produzi com Chris Beats Zn e VilãoduBeat. A música fala sobre tudo o que eu conseguia ver naquele momento. Eu falo sobre os banqueiros, os garimpeiros e questiono por que a gente passa fome. Aí eu explico: banqueiros, garimpeiros, a turma do agronegócio, é bala Bíblia, bala boi, bala que só atinge os nossos. E se a gente se rebela, quem impede de vencer? Os Fardados que são pagos pra mantê-los no poder. Então, na música, eu falo sobre o intelectual e faço uma análise de conjuntura, pois em momento algum, na música, a gente se coloca como quem carrega as dores dessa sociedade. A gente sai da base da pirâmide para se colocar no centro pensante. Então, trazer uma análise de conjuntura para falar sobre Milton Santos na última música do disco, a Batida salve todes, que é onde eu faço uma alusão à brincadeira de esconde-esconde. A última pessoa consegue salvar todo mundo e, pra salvar todo mundo, eu falo sobre orixá, eu falo sobre a importância de a gente estar conectada com a nossa fé, porque a gente não é só um corpo, a gente é espírito. A gente é alma, a gente não veio para esse planeta só para existir, reproduzir e morrer. A gente veio com a missão. A gente veio para transformar vidas, a gente veio para compartilhar afetos e eu acho que, em Dádiva, eu consigo imprimir isso tudo.



CONTINENTE Seria importante que todas as pessoas ouvissem a sua música, incluindo, principalmente, os estudantes do ensino fundamental e médio. Através da canção, você consegue educar e explicar muita coisa importante.
DORALYCE Está chegando. Só que eu estou tentando fazer músicas com menos palavrões. Eu preciso ter mais cuidado porque eu me torno educadora e uma influenciadora de criança também. Isso é muito massa. Eu fico muito feliz e desejo e prospecto para que, em 2022, aconteça realmente uma revolução na minha vida.

CONTINENTE Mas essa revolução já está acontecendo, né Doralyce? A sua música já apareceu no BBB, que é o maior reality show do Brasil e foi a trilha sonora de participantes como Marcela McGowan, Lumena Aleluia e na voz de Jessilane Alves.
DORALYCE Faz quatro anos que sempre entro com um participante. Eu fui a trilha da Lumena no ano passado, fui a trilha da Marcela em 2020 e, em 2022, a Jessi, a nossa professora, meteu um Miss Beleza Universal dentro da casa, mas só que olha o que ela estava cantando: “A queda da hierarquia é anarquia (...) a democracia é uma ditadura disfarçada” [risos]. Eu acho chocante e fico muito feliz, porque eu ainda sou muito pequena para o mercado, mas sempre tem alguém no BBB que me conhece lá dentro e isso é muito especial. Como foi o caso de Gabriela Hebling que hoje é minha amiga de vida. 

CONTINENTE Nesse novo disco, você também fala sobre afetos, amor e a questão da sonoridade,  principalmente quando se trata de mulheres pretas. Você traz a questão da autoestima e do empoderamento em pauta. O cantor baiano Baco Exu do Blues não faz diferente, em seu novo álbum ‘Quantas Vezes você já foi amado?’(QVVJFA), o rapper também traz a questão do afeto e expõe sentimentos profundos sobre a dor de um homem preto. Qual a importância de discutir essas relações afetuosas das pessoas pretas na sociedade?
DORALYCE Eu acho que o amor cura. Eu acho que o amor preto é cura. Eu acho que já está rolando um movimento muito bonito de afrocentrar os afetos e tem vários casais lindos, como Ludmilla e Brunna, Yuri Marçal e a Jeniffer Dias, Lázaro Ramos e Taís Araújo, Jada Pinkett e Will Smith e muitos outros casais pretos que existem e que inspiram a gente a construir outros tipos de relações afetuosas. Eu acho que é muito importante que a gente tenha cuidado mais uma vez, entre nós pessoas pretas, a gente já sabe que existe um padrão, já sabemos que as mulheres brancas casam e nós acabamos sendo mães solteiras. Então, assim, eu acho que o mínimo que eu tenho tido de um cuidado e troca com a galera do movimento negro é: "Ó, se você está defendendo o discurso afrocentrado, você não pode trair sua gata ou seu gato com uma pessoa branca, porque você vai fuder a autoestima dessa pessoa", a gente precisa falar sobre essas coisas. Porque ou você se entende nessa sociedade como uma pessoa livre, disposta a amar qualquer corpo, mas você toma como compromisso devolver simbolicamente o afeto que lhe foi negado.

Eu não penso no país segregado, não quero ter um país segregado, eu acho que a gente precisa encontrar um equilíbrio entre todas as forças atuantes que tem no país e abraçar essa diversidade. No entanto, a gente tem feridas históricas de abandono, de traição e de ser trocada por pessoas brancas, que é uma realidade que eu acho que é de todas as mulheres pretas, não é só uma visão individual minha. Então, assim, vamos ter um cuidado especial de se relacionar com pessoas pretas. Porque essas pessoas vêm do mesmo lugar, que é de um campo de muita vulnerabilidade. Esse meu papo é para as pessoas pretas. Porque eu acho que as pessoas brancas têm que pensar 20 vezes antes de se relacionar com a gente. Quantos privilégios você vai abrir mão pra gente? Eu acredito em relações interraciais, mas quantos privilégios você vai abrir mão pra gente ficar de igual para igual? Porque a gente não é igual. O supermercado que você entra e passa, eu sou seguida. E quando a gente chega no mesmo prédio, vamos pela portaria principal e as pessoas me perguntam se eu vou fazer faxina no apartamento. Então, eu acho que Dádiva vem pra falar disso tudo, vem pra abrir. É uma caixa que se abre para as mulheres pretas, é uma caixa que se abre para a população preta, para saber quem são os nossos inimigos, quem são nossos aliados.

A música é meu instrumento para levar informação para as pessoas. A música é a minha arma nessa guerra. É como eu consigo trazer à tona sentimentos que outrora não foram debatidos e o que está sem ser visto mata no silêncio, na sua sutileza e isso precisa ser debatido; o afeto precisa ser debatido. O afeto preto precisa ser debatido, o lugar da mulher preta na sociedade, do corpo da mulher precisa ser debatido, precisa trazer essas pautas à tona para que a gente consiga se posicionar coletivamente e se proteger, a gente precisa se proteger porque a gente está morrendo.

Foto: Lilo Oliveira/Divulgação

CONTINENTE Você também fez uma participação no clipe Melô das musas empoderadas da Ilha Grande, da banda pernambucana Mundo Livre S/A com o Fred Zero Quatro. Conta para a gente como foi dividir essa experiência no novo álbum do artista intitulado Walking dead folia
DORALYCE Eu fiquei muito honrada com o convite. Eu acho que o Fred Zero Quatro está fazendo um movimento muito importante com o Manguebeat, que é devolver a cultura pra de onde eles aprenderam. Achei uma iniciativa genial eles trazerem Barbarizejá e Doralyce, pra mim o que isso significa é o Mundo Livre S/A devolvendo pros pretos a cultura preta. E a capa do disco do Mundo Livre S/A é histórica, sabe? É um protesto contra a displicência do governo quanto aos cuidados sobre a Covid-19 e o plano cruel do país que é privatizar o Carnaval. Você falava assim: “Ó, a rua não pode ocupar. Por que não pode ocupar a rua? Porque se ocupar a rua, vai contaminar outras pessoas com Covid, então o que a gente vai fazer? Confinar as pessoas em espaços fechados pagando para ter Carnaval, uma festa que é conhecida mundialmente por ser um espetáculo de rua”. 

CONTINENTE Doralyce, qual a mensagem que você deixa de reflexão para os jovens e as pessoas que te acompanham nas redes sociais, sobre o novo disco e a situação política do Brasil?
DORALYCE Olha, Brasil, o que eu posso falar pra vocês é: jovens com mais de 16 anos, é pela internet, é muito fácil, vai lá e tira seu título de eleitor. Você consegue fazer online e não tem muito esforço. Vamos lá tirar o título. Sobre o Brasil, o que eu posso falar hoje é: eu acho bonito o movimento de unificação das esquerdas, acho bonito a gente começar a pensar nessa diversidade coletiva e trazer mistura de partidos. Lula hoje parece ser a única esperança nesse 2022, mas eu queria falar para vocês e a minha mensagem é que um presidente não governa sozinho.

A gente precisa ter uma Câmara dos Deputados e um Senado que contemple e acredite na diversidade que a gente quer ver. Então, precisamos eleger mulheres pretas, indígenas e LGBTQIA+. Nós precisamos eleger essas mulheres e criar um parlamento diverso, que abrace todas pessoas com deficiência. Então, este ano é um ano importantíssimo pra gente entender se o Brasil entra numa derrocada fascista ditatorial ou se a gente consegue ter algum respiro e começar a reconstruir uma possível democracia sem que ela seja uma ditadura disfarçada. Agora é o momento de a gente se alinhar ideologicamente para que possamos caminhar juntes. Por fim, eu só posso te falar uma coisa no Dádiva, a gente tem rap, pagode, trap, samba e funk. Só dá o play, dança e compartilha que é importante.


Foto: Lilo Oliveira/Divulgação

CARINA BARROS, jornalista em formação pela UFPE e repórter estagiária da Continente.

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