Entrevista

"Paulo Freire não tem sucessor"

Filósofo, escritor e professor Mário Sérgio Cortella fala sobre vida, obra e legado do educador pernambucano e também sobre avanços e retrocessos na educação brasileira

TEXTO Débora Nascimento

30 de Setembro de 2021

Mário Sérgio Cortella foi secretário-adjunto de Paulo Freire em São Paulo e seu último orientando no doutorado da PUC

Mário Sérgio Cortella foi secretário-adjunto de Paulo Freire em São Paulo e seu último orientando no doutorado da PUC

Foto Tomás Arthuzzi / Divulgação

[Conteúdo exclusivo Continente Online]

Antes de conhecer Paulo Freire presencialmente, Mário Sérgio Cortella o conheceu como autor. Em 1973, ingressou no primeiro ano da Faculdade de Filosofia Nossa Senhora Medianeira, em São Paulo. Lá, durante uma aula, recebeu um texto de autoria do educador pernambucano. O texto estava mimeografado, pois os seus livros ainda não podiam circular com tanta facilidade no Brasil, durante a ditadura militar. Somente em 1974, Pedagogia do Oprimido, escrito em 1968, chegou ao país. Então estudante, Cortella ficou encantado com a noção freiriana de conscientização política. Em 1977, já formado, o filósofo paranaense começou a dar aulas na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC). Tinha 22 anos e lá ensinou por 35 anos.

Em novembro de 1979, quando Paulo Freire veio ao Brasil momentaneamente, antes de sua volta definitiva do exílio no ano seguinte, foi recebido por Dom Paulo Evaristo Arns e por um público de 6 mil pessoas no Teatro da PUC. Mário Sérgio Cortella era uma dessas pessoas presentes. Mas não conseguiu falar diretamente com ele. No retorno definitivo, no ano seguinte, Paulo Freire não retornou às aulas na Universidade Federal de Pernambuco, como gostaria, mas para a PUC, pois Dom Evaristo Arns só conseguiria garantir sua segurança em São Paulo. Então, Freire e Cortella, ao trabalharem na mesma instituição de ensino, passaram a fortalecer a amizade.

Em 1988, Paulo Freire foi escolhido por Luiza Erundina, recém-eleita prefeita da cidade de São Paulo, como seu secretário de Educação, no mandato que se iniciou em 1o de janeiro de 1989. Freire, então, organizou uma equipe e Cortella fez parte dela – no primeiro ano, era assessor especial; no segundo, passou a ser secretário-adjunto e chefe de gabinete. Como Freire avisara que passaria apenas cerca de dois anos no cargo, para poder voltar às suas atividades intelectuais, Cortella foi o escolhido para ocupar o cargo, ficando até 31 de dezembro de 1992.

“Enquanto eu estava ainda como secretário, ele foi meu orientador no doutorado. Fui o último orientando de Paulo Freire e fui o único orientando nos dez anos finais de sua vida. A minha defesa estava marcada para o mês de maio de 1997. E infelizmente no dia 2 de maio, o professor Paulo Freire faleceu. E aí aconteceu o desfecho dessa circunstância. Eu que, a primeira vez que o vi foi no teatro da Universidade Católica, quando ele estava voltando do exílio, ali também me despedi dele, porque o velório foi feito no saguão desse mesmo teatro. Ali nos encontramos em 1979 e em 1997 nos despedimos. Esse longo caminho, falado desse modo, é um pouco menos triste do que ele foi”, conta o filósofo, escritor e professor Mário Sérgio Cortella, em entrevista à Continente Online, na qual fala sobre a personalidade, a obra e o legado de Paulo Freire, como também de avanços e retrocessos na educação brasileira.

CONTINENTE Como era trabalhar com Paulo Freire?
MÁRIO SÉRGIO CORTELLA Paulo Freire, primeiro, era esperançoso. Alguém que nos animava o tempo todo, mas não era ingênuo. Ele tinha uma experiência séria, seja por conta do trabalho que fez em Pernambuco, e depois a presença dele em Brasília, com o trabalho no Ministério da Educação, no início dos anos 1960. E claro, depois de 1964 e até 1979, passou 15 anos pelo mundo, numa experiência em vários continentes, na qual adquiriu também uma experiência em gestão de pessoas. Embora nunca tenha dirigido nada de gestão pública, ele tinha experiência em relação a outras circunstâncias. Paulo Freire era afetivo. Ele tinha uma capacidade imensa de escuta. Ele era capaz, de fato, de prestar atenção em alguém, independente de quem fosse a fala. Mas ele era implacável com relação ao descuido, à fratura ética. Eu tive uma experiência que poucas pessoas tiveram. E dela falo sempre com alegria. Em 1990, ele como secretário de Educação e eu como secretário-adjunto e chefe de gabinete, nós tínhamos uma tarefa burocrática, todos os dias, ao final da tarde, por volta das 17h, era o momento em que ele deveria assinar os documentos, os despachos, os decretos, os processos, as normas. Era uma rede de ensino muito grande, 1 milhão de alunos, 65 mil funcionários. Ele tinha que assinar por volta de 400 documentos todos os dias. Obviamente que ele não teria que ler cada um deles porque toda a assessoria tinha feito a checagem para que houvesse lisura naquilo que ele estava fazendo. E, portanto, era uma atividade, entre aspas, “quase automática”. Ficavam os 400 processos numa mesa ao lado. Ele sentava diante de mim. E eu passava cada processo numa folha aberta. Ele assinava, eu guardava. Isso durava, em média, uma hora e meia. Evidentemente durante aquele tempo, eu ficava conversando com ele sobre vida, trabalho, educação, morte, política, afeto, religião, e eu costumo dizer que tive o melhor curso de educação de adultos que alguém pode ter. Porque tive o privilégio de ficar horas com ele ali ouvindo ele falar, podendo dialogar, trazer percepções. No entanto, volto ao ponto, ele era disciplinado. Alguém que tinha uma capacidade democrática expressiva. Ele era capaz de ser derrotado em relação à postura que trazia num debate num grupo que teria que votar, como era o caso do colegiado que ele organizou, sem que entendesse isso como uma ofensa. Mas, sim, implacável. Jamais aceitava a negligência, desatenção ou descuido. Trabalhar com ele era algo especial. Eu insisto, Paulo Freire era uma liderança, era muito mais do que uma chefia. A um chefe você obedece, a uma liderança você quer alegrar, quer servir, quer fazer com que ele aprecie. A um chefe cumpre o que for tarefa, se for só chefe. A um líder, como era Paulo Freire, você segue, admira, quer fazer o melhor naquela circunstância e não apenas cumprir a obrigação. Então, essa condição dele, que não é de idolatria, mas é, sim, de admiração imensa. Ela é especial pra mim e todas as pessoas que com ele estiveram. É interessante porque Paulo acabou vivendo na cidade de São Paulo, onde eu moro. Sou paranaense de Londrina. Mas moro em São Paulo há 53 anos. Ele nesta cidade está sepultado. Foi recebido aqui quando voltou do exílio, convidado para dar aula na PUC São Paulo, por Dom Paulo Evaristo Arns, que, aliás, nasceram no mesmo mês e no mesmo ano. Dom Paulo no dia 14 e Paulo Freire no dia 19. E o interessante é que Paulo Freire é cidadão paulistano e tem um grande viaduto na área leste da cidade chamado Educador Paulo Freire. Então, esses paulos todos se juntam. E por último, mera curiosidade, paulus, em latim, significa pequeno. Mas Paulo Freire era imenso. Ele apenas sabia que era pequeno em relação à necessidade de continuar aprendendo e sabendo. Por isso, trabalhar com Paulo Freire era trabalhar com uma pessoa que era muito grande porque sabia que era pequena pra poder continuar crescendo.

CONTINENTE O que você aprendeu com ele que levou para o seu trabalho e para sua vida?
MÁRIO SÉRGIO CORTELLA Duas coisas são decisivas em relação ao aprendizado com Paulo Freire: a humildade pedagógica, não a subserviência, não a humilhação, mas a humildade, a capacidade de saber que não se sabe tudo, mas que é possível, sim, partilhando com outras pessoas que sabem, aumentar o vigor do saber que se pode ter. Portanto, essa humildade é decisiva, especialmente quando se ocupa uma posição de poder, como era o caso dele. Essa é uma lição muito forte, que com ele tive. Em segundo lugar, a possibilidade de colocar alegria, mesmo em meio à dificuldade. Não a tolice, não a tontice. Não aquela pessoa que fica o tempo todo em estado de ridículo. Mas de não perder a animação alegre. Não perder o que ele chamava de a esperança ativa, que é aquela que vai buscar e coloca dentro da vida. Algo muito curioso, ele passou todo o tempo que o conheci falando português, inglês, francês com o sotaque recifense da (do bairro de) Casa Amarela, depois de Jaboatão. Sem dúvida, ele falava da importância da buniteza, que é uma expressão muito bonita. Ele a utilizava com um sotaque muito curioso, para quem, como eu, vem de outra região e se encantava e até hoje com essas lembranças, especialmente da humildade e da alegria. Alegria eu sempre tive comigo, sempre carreguei, tenho a expressão do humor. Mas humildade tive que aprender mais com ele. Em alguns momentos da vida, eu olhava de lado e pensava: “Se o Paulo Freire, que é o Paulo Freire, está conduzindo dessa maneira, eu tenho um território grande ainda pra crescer pra baixo pra poder subir”.

CONTINENTE Como foi sucedê-lo na Secretaria Municipal de Educação São Paulo? Os projetos foram os mesmos ou você teve liberdade para pensar em outros projetos?
MÁRIO SÉRGIO CORTELLA Já me perguntaram, como foi suceder Paulo Freire? Eu disse, eu não sucedi Paulo Freire. Eu sucedi o cargo de secretário municipal de Educação. Paulo Freire não tem sucessor. Ele tem, sim, admiradores, pessoas que ele inspira. Ele não tem um sucessor nesse sentido. Sem aí simular uma modéstia desnecessária. Como nós éramos uma equipe que ele organizou no final de 1988, e boa parte dela durante os quatro anos da gestão, quando o grupo decidiu, com ele, que seria eu a ficar no cargo de secretário, aquilo não era uma marca de ruptura e sim de continuidade, tanto que, embora Paulo Freire tenha saído em maio de 1991, ele continuou como presidente de honra do nosso colegiado, que se reunia semanalmente para as principais decisões na área de educação pública municipal, e, em vários momentos, ele vinha às reuniões e participava conosco das conversas. É claro que eu tinha liberdade, junto com o grupo, de fazer mudanças, mas não havia necessidade de fazê-las. Durante dois, ele estruturara uma equipe e um caminho que é reconhecido até hoje e que tem parte do mérito de pessoas que continuaram, como é o meu caso, mas em larga escala da figura simbólica e carismática e ao mesmo tempo de propostas que ele pôde carregar. Evidentemente que eu fui beneficiado por uma razão. Muitas vezes as pessoas não levam isso em conta. Na gestão pública, você tem alguns atrapalhadores, quando você é o gestor, relativo ao calendário. Por exemplo, no primeiro ano de gestão, você está muito atrapalhado como gestor porque o orçamento foi feito por quem estava no ano anterior. Portanto, a mobilidade é muito travada e também algumas das armadilhas, a depender de quem veio antes, podem ser deixadas no caminho. No segundo ano, tem eleição. Em 1989, primeiro ano de Paulo Freire, é um ano em que o governo de Janio Quadros, pra você ter uma ideia, nem a transição de governo fez. Ele não passou o cargo. E na área de educação, eles não nos receberam. Nunca o secretário de educação de Janio Quadros nos recebeu depois da vitória de Luiza Erundina pra fazer a transição. Quem nos recebia era o chefe da assessoria jurídica do antigo secretário. Então nós entramos no dia 1 de janeiro de 1989 sem tanta clareza de como estavam as coisas, porque a transição foi exatamente o inverso do que Luiza Erundina exigiu de nós quando, em 1992, a eleição foi vencida por Paulo Maluf e toda a transição foi feita com toda a clareza com muitas reuniões de maneira a não prejudicar a cidade. Por que estou te contando isso? Porque 1989 é o ano da herança anterior. Em 1990, que seria o primeiro ano de um orçamento próprio e de uma autonomia maior, teve a eleição no Brasil para governador. Em 1992 também teve eleição. Qual foi o ano que não teve eleição nenhuma? 1991, quando eu assumi como secretário titular. Portanto, um ano inteiro, com aquilo que Paulo Freire já havia estruturado, sem nenhum tipo de obstáculo que calendário eleitoral coloca, evidentemente que meu 1991 foi muito mais facilitado, junto com a equipe. Por isso, costumamos chamar a gestão de 1989 a 1992 de “Gestão Paulo Freire”, mesmo eu tendo sido secretário nos dois últimos anos. Eu mesmo muitas vezes me refiro assim.

CONTINENTE Do que se pode falar de legado dele para a educação no Brasil?
MÁRIO SÉRGIO CORTELLA Paulo Freire tem uma presença como um filósofo da educação. Muita gente o vincula exclusivamente como um tipo específico de método na organização da educação de jovens e adultos. Ele propôs muito mais uma metodologia. Isto é, uma filosofia do método que é usada em várias circunstâncias. Não é casual que ele seja alguém absolutamente expressivo em relação a referências bibliográficas pelo mundo afora, constitua uma das três pessoas mais citadas na área de Ciências Humanas. Alguém que não é uma figura imune a polêmicas. Aliás, como dizia ele, educação tem lado. Evidentemente que o lado que é aquele com o qual Paulo Freire não concordava, contra ele reagirá. Paulo Freire jamais seria contra que alguém contra ele fosse. Paulo Freire seria contra que quem contra ele fosse não pudesse ser contra ele. Paulo Freire era um democrata. E nesse sentido, o legado de respeito à divergência, da capacidade dialógica que não supõe submissão, da necessidade de se levar em conta o universo circunstancial do aluno para que se possa construir um ensino que tenha eficácia. E, ao mesmo tempo, a percepção da cidadania como relevância social. Paulo Freire é um filósofo da Educação. Um dos equívocos que algumas pessoas que não o conhecem bem – que é um equívoco colateral, pequeno – é imaginar que ele era pedagogo. Mas ele era advogado formado na Faculdade de Direito do Recife. Ele vai entrar na Educação em busca de duas coisas, justiça e liberdade. O grande legado dele é ser capaz de trazer uma filosofia incorporando outros autores pelo mundo afora e também a percepção brasileira. Vai dar à Educação uma visão em que a gente não pode desconectar da realidade das crianças, dos jovens e dos adultos. E que a gente também tem que entender que só é um bom ensinante quem é um bom aprendente. E, em última instância, também que a Educação tem a finalidade de elevar as pessoas e não de humilhá-las. Paulo Freire não tem uma avaliação unânime. Não era o interesse dele. Ele não estranharia se assim fosse. Mas ele é alguém imprescindível para pensarmos a educação mundial na contemporaneidade, razão pela qual assim ele é entendido e estudado em outros lugares. Paulo Freire não simulou estudar em Harvard. Paulo Freire ensinou em Harvard sobre ele mesmo. Portanto, ele tinha noção do valor que carregava e nós temos noção hoje do valor que ele tem. Dizendo, por último, algo que ele, sem dúvida, inspirou, fazer como Paulo Freire não é fazer o que Paulo Freire fez, é fazer o que ele faria se ele estivesse agora nesta situação. Paulo Freire hoje ficaria bastante, extremamente agoniado imaginando o que nosso país possa ter perdido na área de educação escolar pública, um fôlego imenso que vinha constituindo, de alguma maneira, nos 30 anos mais recentes, uma decolagem em que se saía de uma miserabilidade exclusiva, para patamares que pudessem ser mais avançados, mas que perdeu muito desse fôlego por um grande modo de desnorteamento de um desvio de um foco central na área de Educação. Paulo Freire aparecia não como um polo de divergência. Ele aparecia como aglutinador de algumas reflexões e análises que mostram que a nossa população não merece o grau de educação pública que se conseguiu nos últimos tempos produzir como redução.

CONTINENTE Paulo Freire sofreu críticas na década de 1960 e agora parecem ser em maior quantidade. Quais são as motivações desses dois momentos de crítica?
MÁRIO SÉRGIO CORTELLA Nós temos três tipos de críticos de Paulo Freire: os que têm como intenção uma análise séria da obra dele e com ela não concordam, apontando algum tipo de divergência em relação aos caminhos, aos métodos ou até ao substrato daquilo que ele entende. Portanto, é uma crítica que a gente chama de decente, porque ela tem uma intenção construtiva e analítica. Existe uma segunda crítica, que é má intencionada, feita conhecendo a obra dele e, de maneira geral, fazendo com que haja um desvio daquilo que ele produziu de maneira a dar um passo pra além do que ela significaria, isto é deturpando a concepção que ele carrega de forma intencional. E essa crítica que não deve ser valorizada, mas tem que ser levada em conta por ser mentirosa. E há uma terceira crítica, que é ingênua. A pessoa ouviu falar, não tem uma noção clara do que significa a concepção e a prática de Paulo Freire, mas como ela adere a algumas pessoas. Evidentemente que a mais perigosa é a má intencionada, porque ela faz mal à concepção educacional em geral. E não apenas a quem, como é o meu caso, adere às ideias de Paulo Freire. Toda vez que se tem uma crítica que ela desvia aquilo que de fato está ali contido, ela produz uma fratura na concepção da ciência. Ela não contribua para que a gente faça melhor. Paulo Freire não é imune à crítica. Aliás, seria estranho se ele assim considerasse. Mas ele não pode ser deturpado. Quer ver um exemplo concreto? Sua obra mais conhecida, Pedagogia do Oprimido, tem um subtítulo ‘Ninguém educa ninguém, ninguém se educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo’. A frase é completa. Muita gente para a frase na primeira sentença. E isso é má-fé. “Tá vendo? Paulo Freire diz que não tem autoridade do professor, que ninguém aprende nada, que é só ideologia”. A frase quer dizer que a Educação é uma reciprocidade de conteúdos, possibilidades, habilidades e competências. Ora, isso é um exemplo banal, não da má crítica, porque é mau feita, mas é da crítica feita com má intenção. E desde os 1960, havia muito mais crítica em relação ao Paulo Freire no primeiro bloco, daqueles que têm uma intenção analítica e que não concordavam com a maneira como ele constituía a sua percepção dentro da semântica, da semiologia, dos estudos de letramento. Hoje nós temos menos pessoas que fazem essa leitura crítica, que é embasada com honestidade, mas pessoas que ou falam porque ouviram dizer ou são mal-intencionadas. Interessante que esse grupo que tem a intenção não-construtiva contribui imensamente para a difusão das ideias de Paulo Freire. Nunca, em 30 anos, dei tantas entrevistas falando sobre Paulo Freire. Nunca tantos livros de Paulo Freire tiveram uma difusão tão grande. E não é apenas pelo centenário. Mas especialmente porque algumas pessoas decidiram: “Bom, fala-se isso desse educador. Então vamos ver o que é”. Houve uma ressurreição do pensamento freiriano com essa força, especialmente quando dizem: “Tá vendo? Ele é o culpado pela questão da educação brasileira”. Isso não faz o menor sentido. Vamos imaginar desde que Paulo Freire foi exilado. Vamos imaginar desde que ele retornou, em 1979, o único cargo que ele ocupou de atividade que pudesse ter alguma permanência de gestão dentro do ensino público foi na cidade de São Paulo por dois anos e três meses. Vou dar o nome de alguns ministros da Educação que o país teve, Marco Maciel, ligado ao PFL de Pernambuco; Hugo Napoleão, PFL do Piauí; Carlos Chiarelli, PFL do Rio Grande do Sul; Jorge Bornhausen, PFL de Santa Catarina, etc etc etc… Até olharmos os desastres mais recentes. É estranho. Não é só que não é verdadeiro. É tolo fazer esse tipo de vínculo colocando Paulo Freire como sendo essa a causa. Aliás, dizem alguns que “a esquerda domina a educação brasileira pública. Todas as salas de aula têm docentes esquerdistas!”. Se assim fosse, essa esquerda seria de uma incompetência brutal e esse povo que vem sendo formado por esses professores “esquerdistas” acaba votando nas pessoas que vota, seria uma falha de formação e uma magnífica falta de êxito naquilo que se faz.

CONTINENTE Gostaria que você elencasse alguns avanços e retrocessos da educação no Brasil.
MÁRIO SÉRGIO CORTELLA O brasileiro tem quatro grandes questões em relação à educação pública. A primeira delas é a democratização do acesso e da permanência. Nós tivemos muitos avanços na democratização do acesso nos dois governos de Fernando Henrique, nos dois de Lula, no governo e meio de Dilma. Nós conseguimos no Brasil nesses últimos 30 anos, pegando o final do governo Itamar, um avanço grande na democratização do acesso, mais de 97% das crianças matriculadas no ensino fundamental. Mas a democratização da permanência falhou. Embora a gente tenha esse ingresso por matrícula, a gente tem essa evasão forte, que Paulo Freire chamava de expulsão. Porque “evasão” parece que a pessoa saiu porque quis. E esse momento pandêmico aumentou imensamente essa retirada do processo escolar. Sim, saímos de uma indigência no campo da matrícula, mas permanecemos com um abandono muito forte na educação básica, mais ainda no ensino médio. Outro bloco é em relação à democratização da gestão. O Brasil teve avanços significados nos governos de Fernando Henrique, Lula e Dilma quanto às organizações de conselhos municipais, estaduais e o próprio Conselho Nacional de Educação, numa configuração que tivesse uma presença maior da sociedade civil, mas isso vem sofrendo retrocessos. Quase nenhum conselho de educação tem fala. A ideia de participação popular foi muito abafada dentro daquilo que foi o governo Temer e agora o atual governo federal. A terceira é uma nova qualidade de ensino com estrutura, com condições de formação docente, de trabalho e remuneração para os docentes. Houve tentativas, primeiro com o Fundef, com o ministro Paulo Renato, depois o Fundeb, com o ministro Fernando Haddad. Houve um avanço imenso para que se fizesse um piso nacional salarial, a organização do magistério. Existe inclusive a plataforma Paulo Freire dentro do Ministério da Educação, para a formação docente. Mas isso perdeu fôlego. E essa nova qualidade acabou ficando lateralizada. Inclusive porque aquilo que é a nossa base nacional comum curricular que seria um passo adiante, dado que foi discutida por muito tempo, ela não teve ainda estrutura de implantação na atual gestão pública na área de educação nacional, que teria a tarefa de conduzir esse processo e se dedica mais a questões laterais, dedicadas ao campo da moralidade religiosa do que, de fato, à percepção daquilo que tem relevância pedagógica e, ao mesmo tempo, cidadã. Por último e além, a educação de jovens e adultos, que passou um momento muito expressivo. Embora no governo FHC, educação de jovens e adultos, estivesse junto à gestão da professora Ruth, com a Comunidade Solidária, conectada ao campo da assistência social. Depois nos governos Lula e Dilma, voltaram para sua área específica, que é a educação stricto sensu, e tiveram avanço forte. Mais recentemente não foram prioridades. E agora, com esse momento pandêmico, se é difícil crianças manterem a atenção e possibilidade de manter um espaço escolar com tudo que está à volta, a presença de jovens e adultos se torna cada vez mais rara, porque ganha uma secundarização muito forte. Nosso país saiu da indigência, abandonou a UTI na área de educação, passou pra enfermeira, onde está até agora. Independentemente do governo federal, que se ausentou daquilo que seria sua tarefa em gestão pública, os municípios e estados têm que ter autonomia. Mas cabe ao governo federal, isso é uma tarefa constitucional, fazer não só o provimento, como a articulação dos vários entes federados, e não vem fazendo isso. Aliás, mais recentemente até o ministro da educação fez uma fala em rede nacional conclamando ao retorno presencial às aulas. Isso se assemelha a alguém com aquele casaquinho no qual está escrito: “Posso ajudar?” Essa pessoa fica escondida durante dois anos e na hora que a encrenca está grande, ela aparece não para ajudar, mas para dizer o que tem que se fazer e é exatamente aquilo que ela não está ajudando para que seja feito. 

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