Entrevista

"O processo": 2016, ano que não tem fim

TEXTO Luciana Veras

22 de Maio de 2018

Maria Augusta Ramos, diretora de

Maria Augusta Ramos, diretora de "O processo", em Berlim, onde seu filme estreou em fevereiro

FOTO Anna Luiza Müller/Primeiro Plano/Divulgação

Na primeira vez em que escrevi sobre O processo, documentário de Maria Augusta Ramos em cartaz no Recife (Cinema São Luiz e em uma sala do UCI Ribeiro Recife, horários aqui) e em diversas capitais do Brasil, ainda se tratava de um projeto sem nome, à espera de um período de decantação. Publicamos, na Continente de outubro de 2016, uma matéria sobre os filmes que estavam sendo rodados a respeito do processo de impeachment de Dilma Rousseff. Naquele momento, a diretora assim se colocava: "Senti a necessidade de refletir sobre esse processo histórico. Como documentarista, quero desconstruir as narrativas que, para mim, não conseguem dar conta de toda a complexidade do momento”.

Um ano e quatro meses depois, voltei a me encontrar com O processo, dessa vez com o filme pronto em Berlim. Nele, exibido numa tarde/noite de clima a -4C, Gleisi Hoffman, Janaína Paschoal, Lindbergh Farias, Cássio Cunha Lima, José Eduardo Cardozo, Vanessa Grazziotin, Ronaldo Caiado e, claro, Dilma Rousseff entravam e saíam de cena nas reuniões do Senado que avaliavam a denúncia de crime de responsabilidade fiscal contra a presidenta reeleita em 2014.

Era a primeira (e antológica) sessão do documentário na Panorama, importante mostra da Berlinale - Festival Internacional de Cinema de Berlim. De lá, escrevi novamente sobre o filme, dessa vez num contexto que o relacionava a outras obras em exibição na Berlinale - filmes esses, como o filipino Season of the devil, de Lav Díaz, que revisitavam transformações históricas ou percursos de ruptura em seus países.

Foi ainda na capital alemã, três meses antes de O processo estrear no Brasil, que Maria Augusta conversou pela segunda vez com a Continente. Diretora de Justiça (2004) e Futuro junho (2015), entre outros, ela é inteligente, aguda e concisa como seus filmes. Uma parte da entrevista transbordou para um outro texto, esse publicado na nossa edição deste mês de maio. A outra parte (as filmagens, a catarse da montagem, escolhas e polarizações) está reunida aqui e se torna acessível num momento em que o documentário atinge cerca de 22 mil espectadores em cinco dias de exibição - índice de extrema relevância para o gênero e para os padrões do cinema nacional.

Em tempo: no primeiro fim de semana em cartaz, O processo se tornou o documentário brasileiro mais visto em 2018, numa prova de que 2016, e tudo que nele aconteceu, está a ecoar e repercutir no imaginário e no cotidiano do país.

CONTINENTE Quando lhe entrevistei em 2016, você me disse que iria se separar do material, pois precisava deixá-lo decantar. O processo de decantação lhe ocupou durante 2017?
MARIA AUGUSTA RAMOS Sim, eu e minha montadora, Karen Akerman, começamos a editar em abril. Na verdade, fiquei um tempo afastada do material. Em dezembro, voltei e filmei durante três dias. Em maio de 2017 já, quando saiu a história do Temer, fui filmar de novo. O epílogo são dois acontecimentos separados por pouco tempo: o dia em que o então procurador-geral da República Rodrigo Janot denuncia o presidente Michel Temer e, alguns dias depois da denúncia, a tentativa de ler o relatório da reforma trabalhista - filmamos e teve até confusão. Quando da denúncia e da leitura do relatório, nós já estávamos editando. Ficamos de maio até agosto e em setembro tínhamos uma primeira versão. A Karen estava grávida. A gente parou e, duas semanas depois, ela teve neném. Uma criança gestada durante o processo.

CONTINENTE Deve ter sido uma experiência incrível.
MARIA AUGUSTA RAMOS Foi, mas exaustiva também. Quando chegamos a uma versão, vim para Holanda. Antes, estava full time no Rio de Janeiro. Quando estava filmando em Brasília, estava na casa dos meus pais, que são de lá. Também foi por isso que consegui fazer o filme, pois se fosse pra pagar hotel, não teria dinheiro. Comecei a filmar com recursos próprios.

CONTINENTE Quer dizer que você é de Brasília?
MARIA AUGUSTA RAMOS Sim, sou de lá. Quer saber de que ano eu sou? 1964, ano do golpe. Sou um dos filhos da revolução (risos). Vivi, por exemplo, as Diretas Já. Aos 18 anos, estava debaixo do Congresso Nacional cercado por militares, esperando Ulysses Guimarães pedir para a polícia sair. Conheço bem aquela esplanada.

CONTINENTE Como foi mergulhar na edição com essas memórias todas então?
MARIA AUGUSTA RAMOS Logo no início, depois do tempo de distanciamento, fui pensando no material captado. Propus a Karen que a gente focasse no processo do Senado. Da Câmara dos Deputados, usaríamos apenas a votação. Ela achou uma ótima ideia e, logo de cara, portanto, descartamos 150 horas de material filmado.

CONTINENTE E o que estava nesse material, que decerto renderia um outro filme?
MARIA AUGUSTA RAMOS Tinha a Dilma discursando no Planalto, antes dela ser afastada, em vários outros lugares aonde ela ia durante o processo… Mas logo ficou claro que eu não queria usar aquilo, pois o material mais interessante e poderoso eram as reuniões da liderança da minoria e da defesa com José Eduardo Cardozo e seus assessores. E, claro, as comissões e as interações com as comissões, que meio que contavam o que estava acontecendo. Fomos começando a trabalhar, comissão a comissão, reunião a reunião, eu e Karen vendo tudo juntas. De fato, nós editamos todas as reuniões e depois fomos cortando.

CONTINENTE Ficaram quantas?
MARIA AUGUSTA RAMOS Muitas. Na primeira versão, em que o filme tinha cerca de 4h, tinha mais umas quatro reuniões.

CONTINENTE Como foi a transposição do primeiro corte para a versão final?
MARIA AUGUSTA RAMOS Uma depuração. Escolhemos o que é mais importante. Tivemos que fazer escolhas, na lógica do “menos é mais”. Realmente tentamos chegar a 2h, mas ficamos em 2h17 – apesar de que acho que é longo demais. Não foi por vontade de fazer um filme longo… Enxugamos tudo que era possível.

CONTINENTE Não acredito que o filme fique longo. Dentro de sua estrutura minimalista, até, o filme é rigoroso, inclusive no didatismo, com as informações aparecendo em cartelas.
MARIA AUGUSTA RAMOS Didático? Mas o filme não é didático. É difícil pra burro…

CONTINENTE Mas há uma tendência do povo brasileiro não reter memória do que lhe aconteceu, por isso é importante o didatismo. As pessoas pedem a volta da ditadura militar e não lembram do que aconteceu durante o impeachment de Dilma...
MARIA AUGUSTA RAMOS Mas ele não é didático! A cartela seria didática se fosse explicativa. Ela entra ali, no momento cronológico, mas logo depois o filme entra em uma reunião cabeludíssima, em comissões densas, e nada é explicado.

CONTINENTE Nada é explicado em excesso, mas acho que é importante ter aquelas informações nas cartelas para servir de guia. Mas vamos falar de como você condensou tudo aquilo. Uma tarefa nada fácil, por tudo que vimos ao longo de 2016 e pelo que se vê em tela.
MARIA AUGUSTA RAMOS O processo em si já era complicado, então tinha que descomplicar. Era preciso tirar todas as pseudoinformações, todos os ruídos, as distorções, tudo que estava no meio do caminho que impedia você de chegar à essência do que aconteceu. Para chegar à essência, era preciso perguntar: o que são essas acusações? A presidenta está sendo acusada de quê? O que é que são essas pedaladas fiscais? Tinha o decreto e tinha a pedalada – o que eram? Isso tudo tinha que ser desconstruído e, para fazer isso, tínhamos que ver o que eram exatamente esses crimes de responsabilidade. Minha vontade era fazer a desconstrução dessa narrativa da “maior fraude da História”, dos “dois graves crimes”.

CONTINENTE Até porque essa era a narrativa que a mídia colocava todo dia na casa do cidadão, não?
MARIA AUGUSTA RAMOS Sim, sim, você tinha que se distanciar e olhar para aquilo para desconstruir aquela narrativa. Por isso que digo: é preciso pensar, repensar e reconsiderar nossos preconceitos, todos nós. Falo isso com relação à direita também. Alguém pode falar que o filme é desequilibrado, que eu não abro espaço para quem defendia o impeachment. Existe essa possível crítica.

CONTINENTE E como você lida com isso?
MARIA AUGUSTA RAMOS No fundo, o que o filme está fazendo é justamente gerar um equilíbrio maior para uma situação que era completamente desequilibrada. Isso pode ser visto dessa maneira. Agora é claro que, se a direita ou o grupo pró-impeachment tivesse me possibilitado acesso, tivesse me dado entrada às reuniões estratégicas, é óbvio que eu teria filmado.

CONTINENTE Imagino uma reunião com Jucá, Heráclito, Aécio... Alguns comentários surgiram na sessão de ontem sobre essa questão de acesso, mas você chega junto de Janaína Paschoal.
MARIA AUGUSTA RAMOS O argumento pró-impeachment está colocado ali pelo melhor expoente da direita, o senador paraibano Cássio Cunha Lima. Ele fala bem, se coloca com precisão, é eloquente e sem dúvida um dos mais articulados da direita. Não estou colocando o pior de lá. A Janaína é a figura mais importante, não é? Se ela tem essa importância, até por ser uma das autoras do pedido de impeachment, não tem como não dar esse espaço a ela, entendeu? Se para ela ser tão importante assim, alguma razão tem que ter, não é?

CONTINENTE Você acha que o filme, de uma certa forma, dá uma antagonizada entre ela e Dilma? Tem aquele discurso final de Janaína, em que ela diz que fez tudo aquilo para o bem dos netos da presidenta.
MARIA AUGUSTA RAMOS De uma certa forma… Mas você sabe que aquele momento foi surpreendente para todos? Para todo mundo que estava ali no Senado. Quando estamos documentando, é muito interessante, pois naquele momento tudo é visto pela primeira vez. Depois, na montagem, vejo uma segunda vez, mas é uma redescoberta do material, então um pouco como se tivesse vendo pela primeira vez também.

CONTINENTE Você via algo quando estava filmando? Tipo, chegava em casa e ia dar uma olhada no material daquele dia?
MARIA AUGUSTA RAMOS Não. Nunca. Não consigo ver durante, tampouco editar. Me dá um nervoso enorme. Também não tinha tempo de ver. Mesmo que quisesse, não teria visto. Tinha dias de ficar até 18 horas filmando… Em alguns momentos, 24 horas direto. Aliás, fiquei muito surpresa com a quantidade e a capacidade de trabalho daquelas pessoas, principalmente na defesa. Eram horas e horas, com reuniões até tarde, e todos eles acordavam cedo para começar a comissão. Eu ficava exausta.

CONTINENTE Olhando para a sua filmografia – Justiça (2004), Juízo (2007), Futuro junho (2015) e, agora, O processo (2018), é possível perceber que os filmes estão completamente interligados, como se fizessem uma crônica do Brasil dos últimos anos. Em especial, se pegarmos Futuro junho e as manifestações de 2013, os protestos durante a Copa do Mundo...
MARIA AUGUSTA RAMOS Sim, a gênese do impeachment estava ali, nas Jornadas de Junho. Futuro junho lida com isso, com aquele movimento em direção à direita; o país já estava se encaminhando para tudo isso mas naquele momento ninguém sabia muito bem o que estava acontecendo. O filme deixa isso aberto, pois ninguém sabia para onde o país iria, quais as forças e os movimentos que estavam no embate de ideias.

CONTINENTE Talvez, alguns anos mais na frente, quando a Berlinale fizer uma retrospectiva do seu trabalho, Justiça, Juízo, Morro dos Prazeres (2013), Seca (2015), Futuro junho e O processo serão exibidos como vários capítulos de uma mesma narrativa sobre o Brasil contemporâneo. Aqui, o cineasta filipino Lav Díaz disse, a respeito de Season of the devil, que fazia sempre o mesmo filme.
MARIA AUGUSTA RAMOS Drummond falava a mesma coisa: que escrevia o mesmo poema, o mesmo livro. Nesse sentido de um filme só, um determinado filme, concordo plenamente com isso. Em todos esses filmes, desde Justiça, vemos que não é sobre aquele determinado assunto. Nem Justiça nem Juízo, por exemplo, são sobre o sistema criminal. Eles dão conta de uma complexidade muito grande, de um rito, de um mecanismo… São sobre a sociedade brasileira através do teatro da justiça. Através dele, uma reflexão sobre a sociedade brasileira.

CONTINENTE Com diferentes personagens, O processo também é sobre a sociedade brasileira e como vimos, todos, uma presidenta passar por uma grande orquestração.
MARIA AUGUSTA RAMOS Através do processo, temos acesso a quê? Posições políticas, discursos políticos, maneiras de pensar conservadoras, algumas progressistas… Mas sobretudo tudo que está acontecendo no conservadorismo da sociedade. Uma figura como Janaína Paschoal, como Jair Bolsonaro, existe nesse teatro, nesse estado de coisas. Então, O processo me permite falar de algo que existe na sociedade: as contradições, os dilemas, os antagonismos, as personalidades, as discussões de classe, as relações de poder, a falta de diálogo e de comunicação… Essas são questões que têm a ver com a polarização que vivemos. São vários Brasis.

CONTINENTE Sim, vários Brasis, todos muito distintos.
MARIA AUGUSTA RAMOS Finalmente, nos últimos quinze anos, permitiu-se uma ascensão de uma classe trabalhadora mais bem-remunerada. Taí o conto da classe média, o conto do vigário: a ascensão da classe C não é só uma questão financeira, é uma questão cultural também. Onde você estudou, de que maneira você vive, tudo que a classe média tomava para si como sinal de requinte – estudar numa universidade, mas aí entram as cotas, por exemplo – entra nesse caldeirão, nesse espaço que a classe média tinha. A classe média, portanto, começou a se sentir lesada.

CONTINENTE E começou a sair às ruas, nas Jornadas de Junho, e depois a bater panela, a usar uma imagem da presidenta de pernas abertas nos carros… Como documentarista mulher, você acha que o impeachment foi um rito machista?
MARIA AUGUSTA RAMOS Sim, claro. A Dilma mesma fala, a Gleisi também… A Dilma fala sobre como a mídia a tratou, como ela foi extremamente desumanizada. Se há um golpe misógino? Sim, acredito que sim. O machismo teve um papel importante, mas é mais importante ainda a gente observar tudo que está por trás da sociedade. O que permitiu que chegássemos até ali... Vejo, por exemplo, as questões que aquelas pessoas que estavam na defesa da Dilma se colocavam. A autoavaliação do campo da esquerda, para refletir mesmo, para ver os perigos no mesmo momento em que estavam tentando se salvar.

CONTINENTE Nesse sentido, o depoimento de Gilberto Carvalho é luminoso. Com o filme pronto, e essa história toda sendo revisitada, inclusive com a autocrítica da esquerda, lanço uma pergunta: você voltaria a filmar Dilma se ela se candidatasse?
MARIA AUGUSTA RAMOS Não. Não tenho mais energia... Acho que tem que ter alguém filmando o processo do Lula (em fevereiro, em Berlim, o ex-presidente ainda não havia sido preso). E acho que Dilma não se candidata. Agora, nesse exato momento, só quero lançar esse filme em todo o Brasil e tirar um tempo para mim. Foi um filme muito pesado, muito difícil… Um material muito cabeludo. Não foi fácil de filmar. Não é fácil de digerir.


A repórter especial viajou ao Festival de Berlim com o apoio do Centro Cultural Brasil-Alemanha.

 

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