Para o Brasil deste início de 2018, ano de eleições presidenciais (será?), talvez não haja filme mais urgente e necessário do que O processo, o documentário que Maria Augusta Ramos apresentou na Panorama com sessões lotadas na quarta (21/2) e na quinta (22/2), no CineStar 7 (cerca de 300 pessoas em cada exibição). Jornalistas, realizadores, brasileiros que moram no exterior, todos que se encaixavam nessas categorias, e os que as transcendiam, ficaram magnetizados durante as 2h17 em que a diretora remontava o rito do julgamento da presidenta Dilma Rousseff no Senado Federal, entre os meses de abril e agosto de 2016.
Presidenta Dilma Rousseff. Foto: Reprodução
“Se somos incapazes de nos lembrar de tudo, somos ainda mais incapazes de tudo narrar; a ideia de narrativa exaustiva é uma perfeita insensatez”, prossegue Ricoeur. Com O processo, Maria Augusta presta um serviço a um país que se orgulha de não preservar/incentivar a memória e, ao recontar o impeachment, consegue, com a mesma linguagem rigorosa dos seus filmes anteriores (Justiça, Juízo, Futuro junho, entre outros), erigir uma narrativa que não exaure. “Eu precisava contar essa história, mostrar o que aconteceu. Fui a Brasília para passar duas semanas, achando que o impeachment não passaria na Câmara. Mas passou. E eu senti que tinha que ficar, tinha que filmar aquilo. Logo, ficou claro que o filme era sobre o julgamento, o processo, que acontece todo no Senado. Então, joguei fora as 150 horas de material que eu já tinha das sessões da Câmara”, revelou a diretora.
Gleisi Hoffman, Janaína Pascoal, Lindbergh Farias, Cássio Cunha Lima, José Eduardo Cardozo, Vanessa Grazziotin, Ronaldo Caiado e, claro, Dilma Rousseff entram e saem de cena enquanto a câmera acompanha reuniões e sessões da comissão do Senado que decidiria sobre o prosseguimento da denúncia de crime de responsabilidade fiscal contra a presidenta reeleita em 2014. Mais importante do que o acurado resgate de todo o rito que o filme faz, vale ressaltar, é o filme em si. O processo nos impele a, desde já, olhar para a História recente do país e tentar responder: como tudo isso aconteceu em menos de dois anos? E o que dirão os livros escolares daqui a meio século?
TEMPORADA DO DIABO O cinema como forma de luta e ferramenta para criar outras narrativas para além da História oficial irrompeu na seleção oficial da Berlinale na obra do cineasta filipino Lav Díaz. Vencedor do Leão de Ouro em Veneza/16 com A mulher que se foi, ele voltou a capital alemã com Ang panahon ng Hallimaw, intitulado em inglês Season of the devil, ou a temporada do diabo. Entre 1965 e 1986, o país asiático viveu sob a égide da ditadura de Ferdinand Marcos (nós, brasileiros com tendência a nada lembrar, talvez recordemos os mais de 200 pares de sapatos da sua mulher, Imelda). Season of the devil é ambientado no final dos anos 1970, quando Marcos criou uma espécie de exército popular, ou brigadas militares, formada por cidadãos comuns com o objetivo de “patrulhar” (intimidar) a população.
Season of the devil é ambientado em ditadura de Ferdinand Marcos. Foto: Reprodução
Díaz, em preto e branco, concebeu o que ele definiu como “ópera rock” para narrar a trajetória de um grupo de pessoas afetadas por essa violência cotidiana. Muitos dos jornalistas presentes à entrevista coletiva não faziam ideia de que se tratava de uma ficcionalização de fatos reais. “Houve milhares de vítimas da ditadura Marcos. Todas as culturas têm a mesma luta e todos nós precisamos lidar com o passado. Cinema é resistência, é lugar de memória. A História tende a se repetir”, disse o diretor à Continente, durante a entrevista coletiva.
Seu registro é poético, seus diálogos vêm em versos, seu filme tem quatro horas de duração e oferece uma experiência cinematográfica bem distinta da do norueguês Utøya 22. Juli – também na competição pelo Urso de Ouro e também a revisitar um fato histórico –, mas, em comum, existe o desejo pelo não-esquecimento. “Todos os meus filmes são um só. Cinema é minha vida e faço meus filmes como uma carta de amor ao povo filipino”, expressou Lav Díaz. Sua produtora Bianca Balbuena foi taxativa sobre o componente político de suas obras: “Eu adoraria dizer que rodamos na Malásia para incentivar a cooperação entre os países do sul da Ásia, mas, na verdade, a instabilidade política das Filipinas nos impediu de fazer o filme lá. Nos arriscaríamos muito”. E a atriz Pinky Amador resumiu: “Todos nós assumimos o risco para enfrentar o diabo”.
Confrontar a História foi o que motivou Erik Poppe, o diretor de Utøya 22. Juli, a recriar o atentado terrorista na Noruega ocorrido na data expressa no título em 2011 – explosões perto de prédios do governo em Oslo e um ataque a um acampamento de jovens em uma ilha, resultando em 77 mortos. “Não podemos nos esquecer de que, sete anos atrás, uma pessoa de extrema-direita planejou e executou esses ataques. Quis fazer um filme sobre isso para que não possamos nos esquecer”, disse. Sua narrativa tensa se desenvolve quase em tempo real; somos transportados à pele de Kaja (Andrea Berntzen), uma adolescente que, tão logo descobre que estão todos sob ataque, decide procurar a irmã. A câmera é colada, os planos são longos, há um sentido de espera e, ao mesmo tempo, de urgência. “Usamos os relatos dos sobreviventes para narrar com fidelidade tudo que aconteceu na ilha”, acrescentou o diretor.
Talvez um dos aspectos mais fascinantes de um festival como a Berlinale seja a chance de estabelecer elos entre produções tão díspares. O que sobra em O processo e Season of the devil falta em Utøya 22. Juli – um senso de profundidade, de contextualização, ou a própria ideia do cinema como algo que vai além e transcende a realidade.
Em outros dois filmes exibidos na seleção oficial – o mexicano Museo e a coprodução anglo-americana 7 days in Entebbe, com direção do brasileiro José Padilha –, a História atuou como gatilho, porém a revisão que lhe foi feita ganhou mais liberdade. Como se a arte, nesse caso, não precisasse desempenhar seu papel no “dever de memória” de Ricoeur.
Filme dirigido por José Padilha é sobre sequestro de avião. Foto: Liam Daniel/Cortesia
O filme 7 days in Entebbe revisita o rapto de um voo da Air France, de Tel-Aviv para Paris, arquitetado por militantes da Frente pela Liberação da Palestina em 1976. Uma vez sequestrado, o avião é levado até Uganda. Padilha foi convidado pelos roteiristas e produtores para assumir o projeto e se interessou pelo que “você não encontra nos registros oficiais”. “Para mim, o filme também era sobre a relação que se estabelece entre os sequestradores e os reféns naqueles dias de tensão”, apontou na entrevista coletiva.
Há uma tentativa de sua parte de inserir um comentário contemporâneo: uma encenação de um número de dança se entremeia à narrativa dos sete dias transcorridos no país africano e das estratégias militares montadas em Israel. Mas 7 days in Entebbe é fraco, tanto do ponto de vista da ação como do desenvolvimento dos personagens. Daniel Bruhl e Rosamund Pike, que interpretam os dois principais sequestradores, parecem anestesiados; a direção de Padilha, que, em 2008, saiu da Berlinale com o Urso de Ouro por Tropa de elite, é burocrática.
Burocracia não combina com a linguagem que o mexicano Alonso Ruizpalacios utiliza em Museo, exibido nesta quinta (22/2). A trama do filme: em 1985, quatro meses após o terremoto que matou milhares na Cidade do México, dois amigos (Gael Garcia Bernal e Leonardo Ortizgris) decidem roubar relíquias do povo maia expostas no Museu de Antropologia Nacional. Ruizpalacios optou por se distanciar completamente dos perpetradores da “vida real”. “É como o personagem Juan diz em uma determinada hora: se uma história é muito boa, para que estragá-la com a verdade? Quisemos tomar distância das pessoas envolvidas no episódio que marcou a história do México e, assim, ter liberdade para construir o filme a partir da relação entre os dois amigos”, explicou.
Cena do filme Museo, com Gael Garcia Bernal (no centro). Foto: Divulgação
Não é que ele quisesse evitar o embate entre realidade e ficção – há filmes que desviam dessa encruzilhada. Museo, ao adotar uma via de “apropriação” de um episódio histórico com total liberdade, envereda por uma seara em que se sobressaem elementos da cultura e da tragicomédia mexicana, mas envoltos em uma linguagem pop que parece liquidificar as ruínas de Palenque e a orla de Acapulco em um cenário só.
Questionado sobre as memórias que carregava desses dois episódios cruciais da História mexicana recente – o terremoto e o roubo –, o ator Gael Garcia Bernal brincou ao responder à Continente: “Não sou assim tão velho!”. Depois emendou: “O terremoto definitivamente foi algo que nos marcou. Me lembro de, dois dias depois, as pessoas irem comprar os jornais para saber algo mais sobre o que aconteceu. Isso já não acontece mais hoje em dia. Já o roubo no museu... Bem, naquela época, eu, aos 6 anos, mal sabia o que era um museu, não tenho absolutamente memória alguma do roubo. A primeira vez em que soube do roubo foi através de Alonso. Talvez o roubo seja que nem o voo da Challenger, que aconteceu na mesma época. Todo mundo lembra, mas ninguém fala disso”.
Para Alonso Ruizpalacios, foi essencial “livrar-se dos elementos da história real que estavam prejudicando a nossa trama”. Museo, pois, filia-se às “novas espécies de escrita da História” pensadas por Paul Ricoeur. Funciona na lógica “cinema é a maior diversão”, portanto empalidece numa Berlinale de filmes que, ao mergulhar no passado recente dos seus países, deles emergem como um farol.