Cobertura

O cinema como dever de memória

Variando entre um mergulho crítico e um mergulho disperso na História, filmes desta edição da Berlinale recontam fatos de seus países, como 'O processo', sobre o impeachment de Dilma Rousseff

TEXTO LUCIANA VERAS, DE BERLIM*

23 de Fevereiro de 2018

Em 'O processo', a diretora Maria Augusta Ramos remonta o rito do julgamento de Dilma Rousseff

Em 'O processo', a diretora Maria Augusta Ramos remonta o rito do julgamento de Dilma Rousseff

Foto Divulgação

Um dos escritos que mais notabilizou o filósofo francês Paul Ricoeur (1913-2005) foi Memória, história, esquecimento. Nele, principalmente a partir do Holocausto, Ricoeur falava do “dever da memória” e também de estratégias de esquecimento – do que se evita, daquilo que se foge. O pensamento de Ricoeur é mais vasto do que pode ser encerrado aqui, mas a ideia de que é preciso lembrar, sempre, para que a História não se repita e a possibilidade de que essa mesma História seja reinventada quando reenquadrada pela arte, encontrara eco em vários dos filmes em exibição nesta 68ª edição da Berlinale. Em diferentes formatos, sob distintas perspectivas, e em múltiplos recortes, histórias “reais” ou “oficiais” foram revistas.

Para o Brasil deste início de 2018, ano de eleições presidenciais (será?), talvez não haja filme mais urgente e necessário do que O processo, o documentário que Maria Augusta Ramos apresentou na Panorama com sessões lotadas na quarta (21/2) e na quinta (22/2), no CineStar 7 (cerca de 300 pessoas em cada exibição). Jornalistas, realizadores, brasileiros que moram no exterior, todos que se encaixavam nessas categorias, e os que as transcendiam, ficaram magnetizados durante as 2h17 em que a diretora remontava o rito do julgamento da presidenta Dilma Rousseff no Senado Federal, entre os meses de abril e agosto de 2016.


Presidenta Dilma Rousseff. Foto: Reprodução

“Se somos incapazes de nos lembrar de tudo, somos ainda mais incapazes de tudo narrar; a ideia de narrativa exaustiva é uma perfeita insensatez”, prossegue Ricoeur. Com O processo, Maria Augusta presta um serviço a um país que se orgulha de não preservar/incentivar a memória e, ao recontar o impeachment, consegue, com a mesma linguagem rigorosa dos seus filmes anteriores (Justiça, Juízo, Futuro junho, entre outros), erigir uma narrativa que não exaure. “Eu precisava contar essa história, mostrar o que aconteceu. Fui a Brasília para passar duas semanas, achando que o impeachment não passaria na Câmara. Mas passou. E eu senti que tinha que ficar, tinha que filmar aquilo. Logo, ficou claro que o filme era sobre o julgamento, o processo, que acontece todo no Senado. Então, joguei fora as 150 horas de material que eu já tinha das sessões da Câmara”, revelou a diretora.

Gleisi Hoffman, Janaína Pascoal, Lindbergh Farias, Cássio Cunha Lima, José Eduardo Cardozo, Vanessa Grazziotin, Ronaldo Caiado e, claro, Dilma Rousseff entram e saem de cena enquanto a câmera acompanha reuniões e sessões da comissão do Senado que decidiria sobre o prosseguimento da denúncia de crime de responsabilidade fiscal contra a presidenta reeleita em 2014. Mais importante do que o acurado resgate de todo o rito que o filme faz, vale ressaltar, é o filme em si. O processo nos impele a, desde já, olhar para a História recente do país e tentar responder: como tudo isso aconteceu em menos de dois anos? E o que dirão os livros escolares daqui a meio século?

TEMPORADA DO DIABO
O cinema como forma de luta e ferramenta para criar outras narrativas para além da História oficial irrompeu na seleção oficial da Berlinale na obra do cineasta filipino Lav Díaz. Vencedor do Leão de Ouro em Veneza/16 com A mulher que se foi, ele voltou a capital alemã com Ang panahon ng Hallimaw, intitulado em inglês Season of the devil, ou a temporada do diabo. Entre 1965 e 1986, o país asiático viveu sob a égide da ditadura de Ferdinand Marcos (nós, brasileiros com tendência a nada lembrar, talvez recordemos os mais de 200 pares de sapatos da sua mulher, Imelda). Season of the devil é ambientado no final dos anos 1970, quando Marcos criou uma espécie de exército popular, ou brigadas militares, formada por cidadãos comuns com o objetivo de “patrulhar” (intimidar) a população.


Season of the devil é ambientado em ditadura de Ferdinand Marcos. Foto: Reprodução

Díaz, em preto e branco, concebeu o que ele definiu como “ópera rock” para narrar a trajetória de um grupo de pessoas afetadas por essa violência cotidiana. Muitos dos jornalistas presentes à entrevista coletiva não faziam ideia de que se tratava de uma ficcionalização de fatos reais. “Houve milhares de vítimas da ditadura Marcos. Todas as culturas têm a mesma luta e todos nós precisamos lidar com o passado. Cinema é resistência, é lugar de memória. A História tende a se repetir”, disse o diretor à Continente, durante a entrevista coletiva.

Seu registro é poético, seus diálogos vêm em versos, seu filme tem quatro horas de duração e oferece uma experiência cinematográfica bem distinta da do norueguês Utøya 22. Juli – também na competição pelo Urso de Ouro e também a revisitar um fato histórico –, mas, em comum, existe o desejo pelo não-esquecimento. “Todos os meus filmes são um só. Cinema é minha vida e faço meus filmes como uma carta de amor ao povo filipino”, expressou Lav Díaz. Sua produtora Bianca Balbuena foi taxativa sobre o componente político de suas obras: “Eu adoraria dizer que rodamos na Malásia para incentivar a cooperação entre os países do sul da Ásia, mas, na verdade, a instabilidade política das Filipinas nos impediu de fazer o filme lá. Nos arriscaríamos muito”. E a atriz Pinky Amador resumiu: “Todos nós assumimos o risco para enfrentar o diabo”.

Confrontar a História foi o que motivou Erik Poppe, o diretor de Utøya 22. Juli, a recriar o atentado terrorista na Noruega ocorrido na data expressa no título em 2011 – explosões perto de prédios do governo em Oslo e um ataque a um acampamento de jovens em uma ilha, resultando em 77 mortos. “Não podemos nos esquecer de que, sete anos atrás, uma pessoa de extrema-direita planejou e executou esses ataques. Quis fazer um filme sobre isso para que não possamos nos esquecer”, disse. Sua narrativa tensa se desenvolve quase em tempo real; somos transportados à pele de Kaja (Andrea Berntzen), uma adolescente que, tão logo descobre que estão todos sob ataque, decide procurar a irmã. A câmera é colada, os planos são longos, há um sentido de espera e, ao mesmo tempo, de urgência. “Usamos os relatos dos sobreviventes para narrar com fidelidade tudo que aconteceu na ilha”, acrescentou o diretor.

Talvez um dos aspectos mais fascinantes de um festival como a Berlinale seja a chance de estabelecer elos entre produções tão díspares. O que sobra em O processo e Season of the devil falta em Utøya 22. Juli – um senso de profundidade, de contextualização, ou a própria ideia do cinema como algo que vai além e transcende a realidade.

Em outros dois filmes exibidos na seleção oficial – o mexicano Museo e a coprodução anglo-americana 7 days in Entebbe, com direção do brasileiro José Padilha –, a História atuou como gatilho, porém a revisão que lhe foi feita ganhou mais liberdade. Como se a arte, nesse caso, não precisasse desempenhar seu papel no “dever de memória” de Ricoeur.


Filme dirigido por José Padilha é sobre sequestro de avião. Foto: Liam Daniel/Cortesia

O filme 7 days in Entebbe revisita o rapto de um voo da Air France, de Tel-Aviv para Paris, arquitetado por militantes da Frente pela Liberação da Palestina em 1976. Uma vez sequestrado, o avião é levado até Uganda. Padilha foi convidado pelos roteiristas e produtores para assumir o projeto e se interessou pelo que “você não encontra nos registros oficiais”. “Para mim, o filme também era sobre a relação que se estabelece entre os sequestradores e os reféns naqueles dias de tensão”, apontou na entrevista coletiva.

Há uma tentativa de sua parte de inserir um comentário contemporâneo: uma encenação de um número de dança se entremeia à narrativa dos sete dias transcorridos no país africano e das estratégias militares montadas em Israel. Mas 7 days in Entebbe é fraco, tanto do ponto de vista da ação como do desenvolvimento dos personagens. Daniel Bruhl e Rosamund Pike, que interpretam os dois principais sequestradores, parecem anestesiados; a direção de Padilha, que, em 2008, saiu da Berlinale com o Urso de Ouro por Tropa de elite, é burocrática.

Burocracia não combina com a linguagem que o mexicano Alonso Ruizpalacios utiliza em Museo, exibido nesta quinta (22/2). A trama do filme: em 1985, quatro meses após o terremoto que matou milhares na Cidade do México, dois amigos (Gael Garcia Bernal e Leonardo Ortizgris) decidem roubar relíquias do povo maia expostas no Museu de Antropologia Nacional. Ruizpalacios optou por se distanciar completamente dos perpetradores da “vida real”. “É como o personagem Juan diz em uma determinada hora: se uma história é muito boa, para que estragá-la com a verdade? Quisemos tomar distância das pessoas envolvidas no episódio que marcou a história do México e, assim, ter liberdade para construir o filme a partir da relação entre os dois amigos”, explicou.


Cena do filme Museo, com Gael Garcia Bernal (no centro). Foto: Divulgação

Não é que ele quisesse evitar o embate entre realidade e ficção – há filmes que desviam dessa encruzilhada. Museo, ao adotar uma via de “apropriação” de um episódio histórico com total liberdade, envereda por uma seara em que se sobressaem elementos da cultura e da tragicomédia mexicana, mas envoltos em uma linguagem pop que parece liquidificar as ruínas de Palenque e a orla de Acapulco em um cenário só.

Questionado sobre as memórias que carregava desses dois episódios cruciais da História mexicana recente – o terremoto e o roubo –, o ator Gael Garcia Bernal brincou ao responder à Continente: “Não sou assim tão velho!”. Depois emendou: “O terremoto definitivamente foi algo que nos marcou. Me lembro de, dois dias depois, as pessoas irem comprar os jornais para saber algo mais sobre o que aconteceu. Isso já não acontece mais hoje em dia. Já o roubo no museu... Bem, naquela época, eu, aos 6 anos, mal sabia o que era um museu, não tenho absolutamente memória alguma do roubo. A primeira vez em que soube do roubo foi através de Alonso. Talvez o roubo seja que nem o voo da Challenger, que aconteceu na mesma época. Todo mundo lembra, mas ninguém fala disso”.

Para Alonso Ruizpalacios, foi essencial “livrar-se dos elementos da história real que estavam prejudicando a nossa trama”. Museo, pois, filia-se às “novas espécies de escrita da História” pensadas por Paul Ricoeur. Funciona na lógica “cinema é a maior diversão”, portanto empalidece numa Berlinale de filmes que, ao mergulhar no passado recente dos seus países, deles emergem como um farol.

*A repórter especial viajou para cobrir o festival através de uma parceira entre a revista Continente e o Centro Cultural Brasil-Alemanha (CCBA).

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