Entrevista

"A música de qualidade resiste"

Um dos pioneiros da música experimental de vanguarda no Recife, Múcio Callou, que lança o disco "Suíte Capibaribe", fala sobre os bastidores da realização da obra e analisa o mercado musical

TEXTO José Teles

10 de Outubro de 2024

Foto Fred Jordão/Divulgação

Múcio Callou milita na música pernambucana desde os últimos anos da década de 1970. Pertenceu a uma geração talentosa, mas de exíguos espaços para mostrar seu trabalho. Tempos em que os principais eventos musicais da cidade aconteciam na Unicap, desde certames de MPB até festival de inverno. Nos anos 1980, Callou continuou pelos palcos, estúdios. Incursionou pela música experimental e tornou-se professor de violão no Conservatório Pernambucano de Música. Na década seguinte, desacelerou, e, nas duas primeiras décadas deste século, passou a aparecer pouco na mídia, a fazer projetos em doses homeopáticas.

Mais recentemente, Múcio Callou voltou a trazer sua música ao público. Em 2018, veio um disco com uma suíte celebrando os 200 anos da Revolução Pernambucana de 1817. Em agosto, lançou a Suíte do Capibaribe, parte de uma trilogia completada pela Suíte Josué de Castro, que ainda não foi gravada em estúdio. Múcio concedeu entrevista à Continente sobre sua trajetória musical, no geral, e a Suíte do Capibaribe, em particular.

CONTINENTE Para criar a suíte, você fez um trajeto de catamarã para se inspirar, ou os temas vieram de suas memórias afetivas com o rio? Afinal todos nós que moramos aqui temos ligações de convivência com o Capibaribe.
MÚCIO CALLOU - Minha paixão pelos rios vem desde minha infância e adolescência em Pesqueira, onde passa o Rio Ipojuca. Lá, contemplava, pescava, tomava banho. Viajando de trem de Pesqueira a Caruaru, tinha o deleite de observá-lo margeando os trilhos em seu percurso. Ao vir morar no Recife, ainda adolescente recém-chegado de Pesqueira, me aventurei a caminhar por toda pela Avenida Conde da Boa Vista até à ponte Duarte Coelho. Lá, me deparei com a exuberância desse rio em pleno centro do Recife.

Nos anos 1970, presenciei a grande mobilização contra a poluição do rio pelo vinhoto das usinas de açúcar. Pude perceber, a partir daí, a importância desse rio, seu significado simbólico de pertencimento não só por suas belezas naturais, mas também pelos seus aspectos ecológicos e socias. As memórias afetivas me levaram a escrever os primeiros temas. Os passeios de catamarã sob as suas belas pontes, também em barcos por diversos trechos onde se vê belas paisagens bucólicas, mas também palafitas, barcos de pescadores e sua população ribeirinha, em contraste com as edificações luxuosas e seus belos casarios amadureceram a percepção afetiva desse rio metropolitano.

A Suíte do Capibaribe em cinco partes distintas e complementares, representam em cada uma, os seus aspectos inerentes. A idéia é sensibilizar, através da música, as pessoas e autoridades para resolução dos problemas ecológicos e socias, navegabilidade, mobilidade urbana potencial turístico.

CONTINENTE Você arregimentou um timaço de músicos para o disco. Qual o critério das escolhas, e como conseguiu vaga na atribulada agenda de Spok? O disco foi feito quando?
MÚCIO CALLOU Dos músicos participantes, Rogério Acioli (flauta), Leo Guedes (violoncelo), Fernando Rangel (contrabaixo) e Ricardo Fraga (bateria), tenho honra e alegria de tê-los comigo em vários trabalhos, em especial as duas suítes citadas, que, como a Suíte do Capibaribe, mantêm a mesma estética de interface do erudito com o popular, tendo, neste caso, um elemento jazzístico. Daí o convite ao maestro Spok que, com seu saxofone, completa de forma brilhante o sentido diferencial de peça. O fato de gravarmos os instrumentos separadamente em dias e horas diferentes foi possível, na agenda de Spok, graças a essa mobilidade de gravação, inclusive em estúdios diferentes. Essa maneira de gravar a suíte foi diferente das outras, pois essas tiveram oportunidades de ensaios e diversas apresentações vivo. A escolha de Sandra Arraes para o solo (voz) se deu pelo envolvimento emocional com a obra, fator essencial para densidade interpretativa da canção.

CONTINENTE Escutando-se os temas, dá a impressão de ser a trilha sonora de um filme. Houve esta intenção? Por exempo, um doc sobre o Capibaribe?
MÚCIO CALLOU A Suíte do Capibaribe era a base principal de um projeto maior que envolvia vídeo e exposição imersiva, tendo como protagonista a própria música e seus intérpretes. Esse projeto, que envolvia inclusive apresentação ao vivo, está suspenso por enquanto no aguardo de patrocínio.

CONTINENTE Você foi o pioneiro, ou um dos pioneiros, na música experimental de vanguarda no Recife. Pode contar sobre esta fase de sua carreira nos anos 1980?
MÚCIO CALLOU A idéia da música experimental veio de um convênio entre a Funarte e UFPE chamado de Projeto Elos. Propunha três temas, dentre eles, um tema livre que chamei de ConcertoExperimental. Realizado por um ano em em diversos ambientes que vão da UFPE ao Morro da Conceição, passando a cumunidades como o Coque e o Coelhos, Sesc escolas, centro socias e etc. Um grupo formado por colegas do curso de Música da UFPE com composições minhas e também composições coletivas e composições improvisativas com participação do público. Eram flautas doce, violões, instumentos indígenas de sopro, instrumentos de percussão e instrumentos não catalogados, como tubos plásticos, folhas de zinco e outros. Foi uma fase na minha trajetória entre a fase de cantor/compositor, e a fase em que comecei a escrever trilhas para vídeo, cinema e publicidade. Daí, as composições de suítes que perpassam por todas essas experiências acumuladas ao longo de uma trajetória de 50 anos.

CONTINENTE Um elemento recorrente na música que se faz no Recife (e em Pernambuco) é o regionalismo, os ritmos da cultura popular são onipresentes em tudo que é autor daqui. Elas estão ausentes da não apenas desta suíte, mas de outros trabalhos seus que escutei. Recife musa é sutilmente carnavalesca. Na Suíte 1817, há um maracatu, porém suave, melódico. A música dos anos 1980, 1990 também era assim?
MÚCIO CALLOU As Suítes Pernambucanas tentam escapar do regionalismo óbvio, propõe uma música mais intimista, voltada tematicamente para as questões pernambucanas. Representam uma viagem musical que não está posta no que se entende por música pernambucana. É fruto de uma releitura, uma vivência que perpassa todo um trabalho, que como pernambucano, contruí ao longo de uma trajetória de 50 anos.

CONTINENTE Mas, em compensação, o Recife está presente nas suas composições. O que há de mais inspirador na cidade?
MÚCIO CALLOU A cidade do Recife, a exemplo do single "Recife Musa", continua sendo uma fonte inesgotável de estímulo à criação musical.

CONTINENTE A classe média aderiu ao brega em ponderado pelo politicamente correto. Não gostar de, por exemplo, o Conde do Brega, é elitismo e preconceito. Música como a da Suíte do Capibaribe é feita cada vez menos. O brega, outros estilos assemelhados, de letras toscas melodias pobres, com intérpretes que ignorar os avanços a MPB desde a bossa nova é o futuro da música brasileira?
MÚCIO CALLOU É uma pena que uma grande parte da nossa classe média, presumidamente mais intelectualizada, consuma música apenas como entretenimento, não como arte. Termina consumindo o mais fácil e absorvendo uma música descartável, de baixa qualidade. Esquecem a música de concerto, a música instrumental e até a nossa gloriosa MPB, hoje infelizmente entendida com mera música de massa, sem a qualidade para ser chamada como tal. Contudo, a música de qualidade resiste e vem crescendo, embora sem o incentivo necessário para que chegue aos ouvidos dos interessados.

CONTINENTE Na Suíte do Capibaribe, só há uma canção, mas os outros temas têm melodias que parecem esperar uma letra. Você pensou nisso, ou melhor, isso pode acontecer.
MÚCIO CALLOU Embora possa sugerir, as peças instrumentais na minha concepção se bastam em sua linguagem abstrata e propositiva não carecem de letras, se tornarem canções. A inclusão da última música da suíte, a Canção do Capibaribe, foi uma ideia da minha produtora e esposa Sandra Arraes para finalizar a suíte. Foi inspirado em Condimentum, poema de VirgíniaLeal. A letra da canção sintetiza, nela própria, todo o conteúdo temático da obra. Mas não me interessa ser hermético nas letras das minhas canções, nem tampouco me interessa a assimilação fácil por parte do público.

JOSÉ TELES, jornalista, crítico musical e escritor.

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