Dentro de casa, inclusive, os estímulos de sua mãe, dona Alba, para que se dedicasse a desenvolver seu talento artístico, sempre foram de suma importância. Atualmente, com uma carreira solo consolidada de mais de três décadas, ele conta com 10 discos lançados e também integra o projeto Hermanos Irmãos, desenvolvido em parceria com Rodrigo Texeira e Márcio de Camillo, além de ser autor de mais de uma centena de canções.
No terraço de sua casa, localizada em Campo Grande (MS), Jerry e seu violão receberam a Continente para uma conversa sobre a música do Mato Grosso do Sul, a história da polca-rock – gênero baseado em ritmos fronteiriços –, seus processos de criação e influências e também sobre como percebe a relação da cultura de nosso país com a de outros da América Latina. A entrevista presencial, inclusive, tornou-se possível devido à nossa ida à capital sul-mato-grossense, a partir do convite da Secretaria de Cidadania e Cultura do MS, para a realização da cobertura do Festival Campão Cultural.
Em sua primeira edição, o megaevento, que é o primeiro destinado à cultura na capital, aconteceu entre os meses de novembro e o início de dezembro deste 2021. Além de Jerry, vários e várias profissionais do campo da Cultura de seu estado e de outras regiões brasileiras realizaram apresentações e participaram de mesas de debate.
CONTINENTE Vou começar pedindo para você contar sobre os caminhos percorridos pela polca-rock até hoje.
JERRY ESPÍNDOLA Acho que a polca-rock começa em 1985, quando fiz Colisão, com Ciro Pinheiro, considerada a primeira. Mas, dentro do contexto da polca-rock, a gente começou a olhar para trás e viu que ela já estava presente na música daqui antes da Colisão, que acabou dando o nome “polca-rock”. Depois, vimos que tinha polca-rock no disco Tetê e o lírio selvagem; Geraldo Roca já tinha lançado uma polca-rock, Japonês tem três filhas, em 1976; O próprio Trem do Pantanal (1982), podemos dizer que é uma polca-rock. Então, assim, na verdade, a polca-rock é mais um passo da influência que a gente tem aqui da música do Paraguai, que era muito forte. Hoje, acho que não é tanto. Mas, no nosso tempo, era muito forte, tanto que os ritmos, as batidas de violão acabaram entrando aqui. Desde o sertanejo com Délio e Delinha, que transformaram em rasqueado uma batida que é um chamamé, até o pessoal da música regional – Almir Sater, família Espíndola –, que fizeram muitas músicas ternárias já com essa batida também. Até chegar na polca-rock, que foi um olhar mais pop para essa fusão, vamos dizer assim. Com letras mais urbanas e tal.
CONTINENTE De que forma a polca-rock dialoga com a música fronteiriça?
JERRY ESPÍNDOLA Basicamente, a batida da polca paraguaia, do chamamé e da guarânia, que são batidas desses ritmos que foram apropriadas aqui por nós, no Mato Grosso do Sul. Então, costumo dizer que a polca-rock é a batida de uma polca paraguaia de quem não sabe tocar polca paraguaia (risos). É mais ou menos isso, porque é até engraçado que “o pessoal raiz” acha exatamente isso. “Os caras não sabem nem tocar polca vêm falar de polca.” Então, a gente faz uma “batida estragada”, porque a gente não é paraguaio para fazer a batida 100%.
CONTINENTE Estava escutando polca-rock esses dias por aqui e meus ouvidos pernambucanos percebem algo incomum – para mim – nessa cadência. Me fala um pouco desse ternário.
JERRY ESPÍNDOLA É porque assim… Na música pop brasileira, não é comum o ritmo ternário. Onde que a gente vê muito o ritmo ternário? No Clube da Esquina. Eles já usavam bastante o ternário. A gente aqui, o Rio Grande do Sul e Minas, acho que são os três estados que usaram bastante o ternário em suas músicas. A diferença nossa aqui para Minas é que a gente parte do ritmo ternário a partir da batida mesmo da polca paraguaia. Porque era muito comum aqui. A gente via os caras fazendo a batida e a gente aprendia a batida ou tentava aprender. Então, a nossa vem do Paraguai. De escutar muito, está muito presente aqui. Até, naturalmente, o pessoal começou a fazer o ternário. Lembro que o meu filho quando tinha 10 anos, a gente ia visitar meu sogro que morava no interior e um dia ele pegou um baixo e começou a fazer: “Tum, tum, tum”. Eu falei: “Ué, de onde você tirou isso?”. Ele fez: “Ah, lá do som que toca lá na chácara do vô”.
CONTINENTE Já que você falou de seu filho e sua família é bastante musical, queria que você contasse como a música lhe chamou para perto dela.
JERRY ESPÍNDOLA Eu já estava dentro, né? Porque sou o caçula de oito. São sete artistas, seis músicos. Eu sou o temporão. Sete anos mais novo que a Alzira, que é a sétima filha. Quando cheguei, as coisas já estavam acontecendo em casa. Eu já fui envolto nesse esquema muito artístico, a minha mãe já puxou isso. Meus irmãos quando eram crianças, minha mãe fazia eles fazerem peças de teatro para apresentarem no fim do ano. Minha mãe cantava, pintava, gostava muito de música, então, já tinha o clima lá em casa. Falam que a Elis Regina veio aqui em 1968 e ela perguntou depois do evento: “Aonde que é a balada?”. Falaram: “Você vai ter que ir para a casa da dona Alba”. E ela foi (risos). Era a casa dos malucos. Eu lembro de mim cantando com cinco anos, cantava Primavera, do Tim Maia. Baladas que tinham em casa. Sempre alguém dizia: “Jerry, vem cantar!”. Eu sentava na rodinha e cantava com cinco anos. Depois, comecei a tocar violão, aprendi uma música aqui e outra ali, mas nunca achei, nem nunca tive essa preocupação, que eu ia ser artista. Eu só realmente descobri que ia ser artista quando toquei aos 15 anos. Aí, eu quis começar a tocar violão, comecei a aprender uma música atrás da outra. Ali, que peguei o caminho, o meu caminho, mas já estava no sangue.
CONTINENTE Me conta quais suas principais influências artísticas.
JERRY ESPÍNDOLA Acho que meus irmãos em primeiro lugar. Têm um peso muito grande, né? Porque convivi com quatro compositores de primeira linha, vamos dizer assim. Uma música muito diferenciada e com muita identidade. E bebi muito nessa fonte primeiro, aprendi muitas músicas dos meus irmãos no violão. Comecei a compor com eles. A participação deles é fundamental. Até acho que, no meu trabalho, tenho um pouquinho de todos os irmãos do lado da composição. Não nasci com a voz privilegiada que todos têm. Por ser o caçula, deve ter faltado um Toddy no leite (risos). Mas, aí, consegui achar o meu caminho, que demora um pouco porque acho que comecei a amadurecer na música lá pelos 30 anos. Primeiro, fui vocalista de banda de rock, então, tem um monte de faculdade para a gente fazer, tocar em barzinho. Depois de um bom tempo de estrada, que acho que começo a pegar um rumo de uma consolidação no meu trabalho como compositor.
CONTINENTE E o Hermanos Irmãos, fala desse projeto.
JERRY ESPÍNDOLA Ah, é um projeto muito legal com dois amigos. O Rodrigo Teixeira e o Márcio de Camillo. A gente se conhece há muito tempo. Em 2005, nos juntamos para fazer um show chamado Terceiras intenções. Essa foi a primeira vez que nos juntamos, já tínhamos parcerias entre a gente, um com o outro. Nos juntamos para fazer tipo uma apresentação coletiva de pessoas que têm a mesma fonte musical, no Teatro Prosa, que é lá no Sesc. Em 2010, quando o Márcio retornou para Campo Grande, que ele foi morar na Espanha, surgiu a proposta de fazer mais um show juntos. Nesse show, que foi em um festival de teatro, a gente se tocou que era muito fácil para a gente fazer esse trabalho. Aí, começamos a bolar todo esse conceito do Hermanos Irmãos. Esse nome nasce de uma canção coletiva, de nós três mais o Rodrigo Sater, que é da nossa geração. E do Paulo Simões e Geraldo Roca, que são de uma geração que somos fãs. Dessa canção, nasce o nome e o conceito de a gente se voltar para a América do Sul e fazer o que Mato Grosso do Sul obviamente sempre foi: a porta para a América do Sul. Acho que até no livro do Álvaro Neder, Enquanto este novo trem atravessa o litoral (Mauad X, 2016), ele descreve que, na época da ditadura, e quando acabaram com o porto de Corumbá (MS), que era muito forte comercialmente, existia um projeto do governo brasileiro de virar as costas para a América do Sul. Isso acaba influenciando aqui no Mato Grosso do Sul, porque a gente ficou para o Brasil como se fosse os caras da beira da América do Sul. Ele conta que talvez por isso a gente não tenha conseguido entrar. Essa primeira turma da qual o Almir (Sater) entrou com um instrumento que é a viola, que é brasileiro, que não traz a coisa sul-americana. Muito legal esse livro. Os Hermanos Irmãos vêm e retomam isso. “Não, a gente é sul-americano, caramba. Por que a gente vai para São Paulo se Assunção é tão perto daqui?” O Hermanos Irmãos, no disco Por América, em 2013, que foi gravado por uma gravadora paraguaia, em Assunção, foi produzido por um argentino, com direção de voz de um argentino; com músicos brasileiros, venezuelanos, argentinos e paraguaios. Então, considero que o Hermanos Irmãos chegou com o objetivo que a gente queria, que era essa integração.
CONTINENTE Como você percebe os diálogos da música brasileira com os outros países sul-americanos, atualmente?
JERRY ESPÍNDOLA Atualmente, acho que a gente ainda está longe da América do Sul, sabe? O Brasil poderia estar muito mais dentro da América do Sul. Os nossos artistas, a nossa música. Acho que esse trabalho não é feito talvez por considerarem um mercado fraco, principalmente. Não tem um investimento da música brasileira do restante da América do Sul. Acho uma pena porque é um público que adora música brasileira. Com os Hermanos Irmãos, a gente teve a oportunidade de tocar no Paraguai, na Bolívia e no Peru e a gente viu isso. A música brasileira é muito querida. Então, acho que é mais uma questão de falta de iniciativa, de falta de expediente, de saber que a gente tem um mercado aqui, que a gente é sul-americano, que é a nossa casa. E o trabalho sempre começa dentro de casa. Não consigo entender como o mercado brasileiro ainda não percebeu isso.
CONTINENTE Suas letras costumam vir primeiro ou são as melodias?
JERRY ESPÍNDOLA É variado.
CONTINENTE E como é que surge uma ideia para uma música?
JERRY ESPÍNDOLA Olha, ontem fiz uma música com uma cantora gaúcha que está aqui em Campo Grande, a Luana Fernandes. Ela cantou comigo lá no bar. Vi no Stories uma letra dela e ela falando: “Ah, uma letra saindo, quem sabe vira uma canção?”. E aquela letra bateu, saca? Eu peguei o violão na hora e saiu a música. Então, a própria letra deu o start para a inspiração. Acontece de várias formas, tenho também feito muitas letras e passado para outros compositores musicar. Então, é bem variado.
CONTINENTE Mas o que lhe convoca à criação, da melodia ou da letra?
JERRY ESPÍNDOLA É a inspiração, né? De onde que vem essa inspiração? (cantarola os versos: 'A inspiração vem de onde, de onde?'). A gente nunca sabe direito o que vai trazer a inspiração. É louco porque eu estava pensando nessa música de ontem e foi só ler o Stories, que foi automático correr e pegar o violão. Eu já sabia que estava ali no ar. Às vezes, alguma coisa à toa do cotidiano acaba puxando o link ou uma notícia, uma coisa que um amigo falou, uma pessoa que a gente conheceu... São várias coisas que podem dar esse link para essa inspiração.
CONTINENTE A pandemia foi um período bastante difícil para a classe artística. Não só aqui no MS, mas no Brasil e no mundo. Como foi esse momento para você?
JERRY ESPÍNDOLA Olha, nesse ponto, a pandemia foi muito bom para mim. Eu estava bem estressado, cansado e a pandemia obrigou a gente a dar uma parada e ficar em casa. Nesse ficar em casa, eu particularmente pude me voltar mais para mim. Então, consegui fazer coisas que estava postergando, enrolando, como lançar todo o meu trabalho nas plataformas (digitais), que é uma coisa que consegui durante a pandemia. Coisas que eu achava que não dava tempo, deu tempo na pandemia. Era justamente trabalhar mais o meu trabalho. A pandemia me colocou em um trilho que talvez eu não tivesse mais. Hoje, eu me sinto bem-colocado no trilho, a pandemia me fez voltar mais para o meu trabalho, dar mais importância ao meu trabalho.
CONTINENTE Como é ser um artista no Mato Grosso do Sul no cenário da música brasileira?
JERRY ESPÍNDOLA Mato Grosso do Sul ainda não conseguiu, eu acho, aparecer no Brasil. Então, ser um artista daqui é ser invisível ainda. O Almir Sater brinca: “Que azar que o Brasil não conhece a nossa música”. Acho que é bem por aí. A gente ainda tem esse chão para ganhar, sabe? Aqui tem uma cena muito forte. Considero a música de Mato Grosso do Sul a melhor do Brasil, sou meio bairrista (risos). As bandas daqui acho que são as melhores do Brasil, mas, infelizmente, a gente tem que ir embora daqui. Fui para São Paulo quando era novo, morei lá por nove anos, tive banda lá, mas, hoje, a gente sabe como é difícil essa realidade para o artista novo, para você sobreviver em uma cidade como São Paulo, ser mais um lá onde está todo mundo. Hoje, ao mesmo tempo, a gente tem toda essa abertura com a internet, que acho que MS tem essa chance agora de aparecer como uma cena, depende muito dos próprios artistas, dessa galera nova porque a minha geração já “está feita”, vamos dizer assim. A gente já está colhendo. Então, o pessoal que vem, infelizmente, acho que ainda vem com essa missão de colocar o Mato Grosso do Sul na cena brasileira.
CONTINENTE Já que você falou dessa nova cena do Mato Grosso do Sul, o que chama atenção aos seus ouvidos? O que você curte muito?
JERRY ESPÍNDOLA Vejo vários artistas com trabalhos consistentes na cena urbana atual, vamos dizer assim, e muitos outros no caminho de chegar em todo o seu potencial. Falo de uma cena que tem rock, reggae, rap, samba-rock, mistura de ritmos, MPB, e outras vertentes, o que hoje, no mercado, é chamado de “cena alternativa”. Vejo a cena atual começando com a volta do Curimba, a banda que, na verdade, começou esse movimento e hoje retoma seu lugar trazendo um público que ainda está “na ativa”, se juntando a artistas com um bom tempo de estrada e trabalhos muito consistentes como a Marina Peralta, Brô MC's, Ju Souc, Begèt de Lucena, Winchester, Renato Jackson, Erika Espíndola. E temos as últimas novidades. Artistas e bandas que, neste exato momento, estão se colocando na cena com trabalhos também em evolução constante, que já se vê conceito e identidade, como a Pilar, o Projeto Kzulo, Vozmecê, Os Alquimistas, General R3, Karla Coronel, SoulRa, Dovalle, Ton Alves, entre os que venho acompanhando mais de perto. Além desses, tem os artistas novos que já poderiam estar nesta lista da minha cabeça, se não tivessem apenas recomeçando pós-pandemia, que atrapalhou a sequência principalmente desses novos trabalhos. Se podemos chamar essa cena de “cena alternativa”, estamos bem na fita, de novo.
CONTINENTE De que forma você, enquanto artista, em Campo Grande, percebe a importância de um festival como o Campão Cultural para a cidade?
JERRY ESPÍNDOLA Importantíssimo, né? Demorou! Espero que esse festival tenha todo ano porque o que faz falta, aqui, para a gente, são as referências. Campo Grande nunca teve grandes eventos, então, a gente não vê shows e isso é uma coisa que prejudica muito. Se você tem um festival desse, que vem um monte de gente de fora para tocar, para você, que é artista, poder assistir é um aprendizado importantíssimo. Ter outras referências. E também o próprio fato de o festival estar dando muito espaço para a música daqui. São muitos artistas daqui no festival, isso também é importante porque movimenta essa produção. No pós-pandemia, ainda está difícil de buscar trabalho, ter lugar para tocar, então, o festival também preenche esse espaço. Dá os espaços que estão em falta.
CONTINENTE Me diz um ou dois álbuns que você sempre volta para eles.
JERRY ESPÍNDOLA São vários que eu volto, mas ultimamente… Sempre volto no A página do relâmpago elétrico (1977), do Beto Guedes; o Alfagamabetizado (1996), do Carlinhos Brown. E o primeiro disco que escutei e fez a minha cabeça, que foi o do Pink Floyd, aquele lá do triângulo (risos). São discos que volta e meia estou colocando no meio das coisas novas que estou ouvindo. Me dá uma saudade e volto para esses discos aí.
CONTINENTE Para finalizar, por que a gente precisa de arte nessa vida?
JERRY ESPÍNDOLA Porque se não, a gente não vive. O principal da vida é a arte. Então, acho que agora, nessa época Bozonaro, a cultura, os artistas… Falaram muito mal da gente, mas quem vive sem escutar uma música e sem ver um filme? É impossível viver sem a arte em geral. A arte nos traduz como seres humanos e traduz o momento que a gente está vivendo. Então, não tem como. O principal peso da vida é a arte.
ERIKA MUNIZ, jornalista com graduação em Letras.
*A repórter viajou como correspondente da Continente, a convite da Secretaria de Cidadania e Cultura do Governo do Estado do Mato Grosso do Sul.