Entrevista

"Nossa turma de hippies estava muito fora da caixa, em outros espaços"

Doug McKechnie marcou o mundo da música com o uso do sintetizador Moog no Altmont Speedway Free Festival, em 1969. Ele lembra dessa década vanguardista em entrevista

TEXTO José Teles

26 de Abril de 2021

Doug McKechnnie, músico que integrou o Altmont Speedway Free Festival

Doug McKechnnie, músico que integrou o Altmont Speedway Free Festival

FOTO DIVULGAÇÃO

[conteúdo exclusivo Continente Online]

O festival Altmont Speedway Free Festival, que se convencionou chamar “a tampa no caixão dos anos 60”, foi um evento gratuito que os Rolling Stones bancaram para festejar o fim da sua turnê americana de 1969. Teve o Crosby, Stills, Nash & Young, The Flying Burritos, Jefferson Airplane, Santana Band, The Grateful Dead, e os Rolling Stones fechando, o que seria o festival mais desorganizado e baixo astral da década. Culminou com um jovem negro morto a facadas diante das câmeras por integrantes dos Hell’s Angels - grupo de brutamontes motociclistas - que faziam a segurança do local mas acabaram violentos, baixando o sarrafo na plateia e até nos artistas. Os irmãos Albert e David Maysles fizeram um documentário do festival, o elogiadíssimo Gimme shelter (1970). Eis que em 2017, registros de um cassete do festival de Altmont foi postado no Youtube. Uma das faixas tem apenas o título Moog. Mas quem seria o misterioso Moog que tocou em Altmont?

O lançamento do álbum Doug McKechnie - San Francisco Moog 1968-1972 desvenda o mistério ao mesmo tempo em que disponibiliza o link perdido entre a música eletrônica e o rock progeressivo dos anos 70. McKechnnie reuniu tapes de gravações de shows apresentados em quatro anos de lucubrações, basicamente, na Califórnia, e os lançou no citado disco, cercado de críticas elogiosas no EUA e Europa.  De Oakland, na California, onde mora, Doug McKechnie concedeu entrevista à Continente sobre sua carreira, e sobre como um sintetizador Moog Modular Series III, de maneira nada convencional, lhe chegou às mãos, comprado por um amigo com quem dividia apartamento.

CONTINENTE Antes de mais nada, me satisfaça a curiosidade, como você conseguiu levar o Moog para os palcos? Aqueles modelos eram enormes.
DOUG MCKECHNIE Sim, era muito grande, a gente levava uma equipe de três pessoas, às vezes quatro, quando tocávamos em locais diferentes. Meu amigo montou e depois me chamou pra explicar com funcionava

CONTINENTE Com que finalidade seu amigo comprou o Moog, ele planejava usá-lo como? Então lá esta você em casa e, de repente, aquele bocado de caixas, como foi montar o quebra-cabeças?
DOUG MCKECHNIE Bruce Hatch [o amigo] era fascinado por eletrônica, sobre a física que havia nela. Era filho de um rico capitalista e tinha liberdade financeira pra fazer o que quisesse. Ele não era um artista. Esperava atrair atenção pra si e criar oportunidades de negócio, o que ele eventualmente conseguiu em 1972, vendendo o Moog para fundar uma companhia chamada Sound Genesis.

CONTINENTE O que era SF Radical Laboratory, muito citado em matérias sobre seu disco?
DOUG MCKECHNIE Criei o SF Radical Laboratory como um jogo de palavras, quando o Moog chegou. Radical quer dizer “raiz”, e nos estávamos procurando a raiz do próprio som.  Nossa turma de hippies estava muito fora da caixa, soltos em outros espaços, explorando nossas novas maneiras de ser, com as raízes na comunidade, sem seguir as normas.  Eu fui ensinado desde criança a cantar e também a ser ator. Porém, quando me debrucei sobre o Moog não tinha experiência com o piano, ou qualquer outro instrumento. Mas tinha um ouvido extraordinário e uma a inclinação para estar à frente e inspirar outros a me seguirem.

CONTINENTE Nas matérias que li sobre seu disco não me lembro de citações sobre os Beatles, que começaram a usar o Moog mais ou menos quando você também começou. Alguma influência deles? Também nesta época Walter/Wendy Carlos lançou o álbum Switched on Bach, que foi um sucesso tremendo. A propósito, você gosta da forma como as bandas dos anos 60 usavam o Moog?
DOUG MCKECHNIE Não fui influenciado pelos Beatles. Acho a maioria das músicas criadas com Moog horrível, incluindo Switched on Bach. Me impressionei pela arquitetura construída com habilidade por Carlos, mas tudo aquilo soava minúsculo e esquisito pra mim. Por outro lado estava fascinado por ser capaz de formatar aquelas tonalidades soltas. A maioria dos troços criados com o Moog tinha tonalidades fixas, opostas aos movimentos dinâmicos e as mudanças tonais. 

CONTINENTE Na época o Moog era uma nova ferramenta para se fazer música, quanto tempo você levou para encarar uma plateia com o instrumento? E qual era sua expectativa? Afinal, seria a primeira vez que as pessoas no concerto iriam ver um sintetizador desses.
DOUG MCKECHNIE Muitas das nossas primeiras apresentações foram em escolas e universidades, palestras e demonstrações. Começava as palestras anunciando: “Todas as coisas se manifestam em formas ondulares", daí mostrava a extensão de sons micro/macro, do instrumento e explicava como se poderia fazer os mesmos sons com a boca. Comecei a tocar em público depois de duas semanas explorando o instrumento. Daí, parti pra rua. Claro, as pessoas ficavam estupefatas e intrigadas com os sons. 

CONTINENTE San Francisco estava então efervescente, muitas bandas, cantores etc A imprensa se interessou em seus concertos?
DOUG MCKECHNIE Sim, tivemos matérias, não grandes, mas sempre alguma onde quer que a gente tocasse. Como esse Moog era o único verdadeiramente portátil, o som que se podia criar nele eram tão cru que atraímos um bocado de atenção de várias áreas, rádio, TV, escolas, locais de shows. 


Capa do disco Doug McKechnie - San Francisco Moog 1968-1972. Imagem: Divulgação

CONTINENTE Então você tocou em Altmont, em 1969, o malfadado concerto bancado pelos Rolling Stones. Quem lhe convidou e como foi estar lá? Essa participação impulsionou sua carreira?
DOUG MCKECHNIE Altmont foi uma oportunidade perdida pra mim. O convite foi feito através do Grateful Dead, com quem tinha trabalhado numa gravação em estúdio. Me convidaram para ajudar a montar o palco e o som. Eu disse: "vou, mas com uma condição, tocar". Disseram que tudo bem, então empacotamos as peças, pusemos numa van e subimos a ladeira até chegarmos em um descampado no meio do nada. Montei o Moog e deixei tudo no ponto para tocarmos durante o nascer do sol no dia seguinte. E toquei durante vinte minutos e alguma coisa. O destino tem os seus caprichos. No segundo show que faria, o som ficou com Owsley, o químico de ácido do Grateful Dead, que estava numa espécie de cadafalso, na mesa de som, no meio do público. Ele gritou para eu começar. Ele não sabia o que eu iria fazer. Começei leve, com 55 ciclos, e iria subir até 20.000, pra deixar todo mundo enlouquecido. De repente, ele não escutava nada, porque estava em baixa freqüência, quando começava a ficar audível, os osciladores de frequência bateram no vermelho, ele diminuiu rapidamente o volume, ninguém escutava nada... Tive meus 15 segundos, é isso aí.  

CONTINENTE Quantas fitas você ainda tem para nos presentear com mais discos?
DOUG MCKECHNIE O restante do arquivo, que será o volume 2, sairá daqui a 15 ou 16 semanas. Também haverá uma reedição do volume 1. O volume 2 terá a mesma duração do Volume 1.

CONTINENTE Então seu amigo vendeu o Moog para o pessoal do Tangerine Dream [um dos mais importantes grupos de rock eletrônico alemão], o que foi fantástico. Você parou com o Moog desde então?
DOUG MCKECHNIE Perder o Moog foi como se me cortassem um braço. No entanto, eu tinha um arquivo de sons e músicas do Moog, que usei em muitas coisas, filmes e músicas para dança nos últimos quatro ou cinco anos, culminando com uma trilha sonora indicada ao Oscar em 1977, feita para o Spaceborne, de Phillip Dauber, o primeiro filme extraterrestre. Nenhum fotograma foi feito no planeta Terra. Depois desse filme, criei uma companhia chamada Soundtracks [trilhas] e comecei fazer música para filmes e televisão e continuei nisso por 17 anos.

CONTINENTE Depois do Moog você passou a tocar outro instrumento?
DOUG MCKECHNIE Comprei um piano no ano em que perdi o Moog. Comecei a tocar aquele instrumento quase imediatamente.

CONTINENTE O Moog hoje é um instrumento antigo, mas ainda estranho. Você adquiriu nesses anos seu próprio Moog, ou o deixou lá no passado mesmo?
DOUG MCKECHNIE Não adquiri outro sintetizador até o início dos anos 1980, quando fundei a San Francisco Synthesizer Ensemble. Depois disso tive muitos synths, DX-7, Emulators, etc. 

CONTINENTE Como você vê tudo aquilo com a distância desses 50 anos?
DOUG MCKECHNIE “Foi um tempo de milagres e maravilhas”, para citar Paul Simon, do Simon & Garfunkel [cita a canção The Boy in the Bubble, de 1986], um tempo que abriu as mentes e corações de muitos da minha geração para a expansão da consciência do ser. Tenho apenas uma sensação de prazer em lembrar aquela época. Muitas pessoas me ajudaram a fazer com que aquilo acontecesse, a elas sou eternamente grato. 

***

O sintetizador não foi invenção de Robert Moog (1934 - 2005), o criador do instrumento batizado com seu sobrenome (que é holandês e deveria ser pronunciado “môg” não “mug”). Até então ele chamava seu invento de “módulos de música eletrônica” ou apenas “sistema”. Em 1957, dois engenheiros Herbert Belar e Harry construíram o primeiro sintetizador na Universidade de Princeton, para a RCA Victor. Porém, apenas um exemplar para a gravadora, que nunca foi desenvolvido. O sintetizador foi fabricado para vendas por Robert Moog a partir de 1965. Na mesma época, em Berkeley, Califórnia, Don Buchla também começou a criar sua marca de sintetizador, mas que não teve o destaque do Moog.

O instrumento que revolucionaria a música pop, que levou ao rock progressivo, foi criado em Trumansburg, cidadezinha do estado de New York. Inicialmente era construído artesanalmente num espaço onde funcionou uma movelaria. A facilidade do nome Moog contribuiu para a rápida disseminação da marca, que se tornou, até o começo dos anos 70, sinônimo de sintetizador.  Um instrumento caro, cujo modelo mais sofisticado chegava a o 8 mil dólares, o preço de uma boa casa na época. Keith Emerson (do Emerson, Lake & Palmer) foi o segundo músico e levar um Moog para o palco (o primeiro, claro, foi Doug McKechnie). Mas insistiu por um bom tempo para ganhar um de graça. Mick Jagger, quando quis comprar, chegou a o preço muito alto, mas terminou ainda assim adquirindo um, assim como os Beatles, Grateful Dead, The Doors e Frank Zappa. O cineasta Stanley Kubrick também fez proveito do som do Moog em seu clássico Laranja Mecânica (1971).

Porém, outros modelos de sintetizadores, com muito mais recursos, foram chegando ao mercado. Em 1971, a empresa de Robert Moog quase não recebia mais encomendas. Ele a vendeu em 1972, coincidentemente mesmo ano em que Doug McKechnie parou de usar o Moog do amigo dele.

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San Francisco Moog 1968-1972 é um disco marcante tanto nos temas criados por Doug McKechnie, quanto por ser o primeiro com o sintetizador a ser gravado ao vivo (quem possuía um Moog não se arriscava a usá-lo fora de ambientes fechados). Embora alguns temas possam ser confundido com o krautrock (o rock progressivo alemão dos anos 70), McKechnnie fez mais músicas com transpiração do que com inspiração. Não teve estudo formal de música, não tocava nenhum instrumento, aproximou-se do Moog por curiosidade. 

Ele foi dominando o sintetizador à medida que explorava suas sonoridades, com riffs feitos num sequenciador, tocados enquanto ele continuava suas explorações no teclado. Os temas do disco foram batizados com nomes que remontam a 1968, The First Exploration @ SF Radical Laboratory, Meditation Moog 1968, Baseline, Berkeley Art Museum, Crazy Ray. Este último é uma homenagem a Ray Anderson, uma lenda em San Franisco, dono de uma das três empresas que cuidada das  luzes nos concertos promovidos Billy Graham, o produtor e empresários mais importante do rock na época.

JOSÉ TELES é escritor e jornalista especializado em música. Foi crítico de música do Jornal do Commercio de 1987 a 2020 e já escreveu sobre o assunto em diversas publicações do país.

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