Entrevista

"É um filme que representa muito do nosso tempo"

Em conversa com a Continente, Lázaro Ramos fala sobre a realização e os bastidores de 'Medida provisória', sua estreia como diretor de cinema, em cartaz em todo país

TEXTO Luciana Veras

13 de Abril de 2022

Lázaro Ramos concedeu entrevista durante a pré-estreia do filme no Recife, no dia 4 de abril

Lázaro Ramos concedeu entrevista durante a pré-estreia do filme no Recife, no dia 4 de abril

Foto Breno Laprovitera

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Luís Lázaro Sacramento de Araújo Ramos tem 43 anos e detém uma carreira que lhe permite ser chamado de várias formas: é ator, apresentador, produtor, escritor e dublador. Foi integrante do Bando de Teatro Olodum, na sua Salvador natal, e percorreu um caminho de personagens que até hoje o acompanham - é comum ser chamado de Madame Satã, protagonista do longa-metragem de Karim Aïnouz que estrelou em 2002, e de Foguinho, da novela Cobras & lagartos (2007) ou ainda lembrado como um dos Antônios de A máquina, espetáculo teatral em que contracenou com Wagner Moura, Vladimir Brichta e Gustavo Falcão em 2000, como o arguto entrevistador do programa Espelho, exibido desde 2006 pelo Canal Brasil, e pelas séries Sexo frágil (2003-2004) e Mister Brau (2015-2018). Para além disso tudo, em 2022 ele amplia seu repertório de credenciais: com Medida provisória (2020), entra em cartaz no Recife e em centenas de outras cidades a partir desta quinta (14), Lázaro Ramos se torna, também, um cineasta.

Com roteiro escrito por ele e Aldri Anunciação, Elísio Lopes Jr. e Lusa Silvestre, a partir da peça Namíbia, não!, concebida por Aldri em 2011, Medida provisória se ambienta no futuro não tão distante do Brasil. Antônio (Alfred Enoch, do seriado How to get away with murder e dos filmes Harry Potter) e André (Seu Jorge, de Marighella) são primos que moram em um apartamento no Rio de Janeiro, com Capitu (Taís Araújo, esposa e parceira criativa do diretor, que fez Elza Soares no filme Garrincha – Estrela solitária e todas as temporadas de Mister Brau), médica que trabalha em um hospital da cidade. Apesar das eventuais rusgas com vizinhas como dona Izildinha (Renata Sorrah), a vida do trio espelha um cotidiano tranquilo – Capitu e Antônio são um casal apaixonado e em sintonia, André namora com Sarah (Mariana Xavier, de Minha mãe é uma peça) - até que o governo brasileiro promulga a MP do título, de número 1888 em referência direta ao ano da abolição da escravatura, com a determinação de que todos os cidadãos de “melanina acentuada” terão que voltar aos seus países africanos de origem, em um ato de “reparação histórica”.

Apoiado em figuras como a servidora pública Isabel (Adriana Esteves) e como o ministro da Devolução (Cláudio Gabriel),  o governo, em um primeiro momento, sustenta que “ninguém é obrigado a ir”. Logo em seguida, contudo, a população negra começa a ser arrancada da sua rotina, jogada por policiais mascarados em camburões e agredida com covardia, tudo em nome da lei. Capitu consegue escapar e chega a um Afrobunker, onde negras e negros se protegem e se fortalecem. Já Antônio e André, confinados em casa e se arriscando em eventuais saídas e encontros com “cidadãos de bem” armados, viralizam como os rostos da resistência negra. Enquanto a narrativa progride, a ficção escalona para níveis que, por mais surreais e absurdos que possam soar, se assemelham assustadoramente ao que já vemos e vivemos agora.

“Todo exercício era assim: ‘vamos pensar em coisas que a gente não quer que aconteçam’”, observa Lázaro Ramos em entrevista concedida à Continente no início deste mês, quando veio apresentar Medida provisória em uma pré-estreia lotada no Cine São Luiz, no centro da capital pernambucana. “O que a gente queria: esse filme tem que ser um alerta, tem que ser coisas absurdas. A distopia é isso. Mas o Brasil foi para caminhos em que aconteceram coisas piores e aí acho que agora o filme ganha um outro sentido, né? Um sentido de alerta maior porque a realidade está sendo mais cruel do que a ficção”, complementa o diretor, que há poucos meses deixou a Globo após um contrato de quase duas décadas para trabalhar, como realizador e showrunner (a pessoa que decide tudo em uma série, da escolha do elenco à direção), na Amazon. “Eu estava cansado de pedir, como se fosse um pedinte”, revelou para as mais de 900 pessoas que foram lhe ver e ouvir na sala da Rua da Aurora. “Mudei de vida”, completou, “para que a pretitude possa aparecer mais e ser mais vista”.

Essa sua atitude de confrontar os parâmetros vigentes na produção audiovisual nacional o levou, por exemplo, a escalar quase 80 negras e negros no elenco de Medida provisória e a ultrapassar os índices de representatividade racional no set. Entre profissionais consolidados como Flávio Bauraqui e participações especiais como o cantor e compositor Emicida, vemos também Diva Guimarães, que ganhou notoriedade ao contar sua história durante uma mesa na Festa Literária de Paraty – Flip em 2017, justamente diante de Lázaro, que ali falava sobre seu livro então recém-lançado Na minha pele (Companhia das Letras), e no filme recebe o significativo papel de dona Elenita. “Fizemos o filme brasileiro com mais pessoas pretas, na frente e atrás das câmeras, de toda história”, sintetiza o diretor.

Com a estreia acontecendo quase dois anos depois da primeira exibição, no festival norte-americano South by Southwest, Medida provisória chega a um número menor de telas do que o desejado pelo diretor, pelas produtoras Lereby e Lata Filmes e pela distribuidora Elo Company. "A gente queria estrear em 350 salas, como Marighella, mas acontece que vai estrear também um blockbuster no mesmo dia do nosso filme, e outro na semana seguinte, e eu não vou nem falar o nome deles! Então quem quiser e puder assistir a Medida provisória, tente ir nessa primeira semana, porque é importante", alinhava Lázaro Ramos. 

Os protagonistas Antônio, Capitu e André. Foto: Mariana Vianna/Divulgação

CONTINENTE
Medida provisória deriva da peça Namíbia, não!, de Aldri Anunciação, que você dirigiu para o teatro. Como foi o processo para adaptá-la? Porque você dirigiu a peça em 2017 e filmou em 2019, então teve um percurso aí.
LÁZARO RAMOS
Sim. E foi um processo longo e de aprendizado. Os primeiros roteiros que a gente fez tinham muito a cara de teatro mesmo. Muito. Era uma peça muito legal, mas era teatro. Depois a gente foi passando por vários processos de parceria. Anna Muylaert foi a primeira pessoa: ela entrou e fez um primeiro script doctor, que foi muito legal, mas um pouco assustador. Porque a avaliação dela é de que o filme tinha que passar pelo Brasil todo, pois era uma história grandiosa. O lado bom foi que a gente viu que tinha cinema ali. O lado ruim foi porque eu não tinha nem coragem de fazer um filme gigantesco. E acho que, justamente por esse medo, a gente acabou conseguindo dar uma grandiosidade ao filme, mas sem pegar aquele perrengue que é “ah, estou dirigindo um filme gigante”. Depois entrou o Luiz Bolognesi, mas a escrita dele não era o que a gente queria. Acho, também, que ele entendeu a distopia, além do que a gente acreditava, que era parecer com hoje em dia. Aí entrou Elísio Lopes Júnior. Então ficamos eu, Aldri Anunciação e o Elísio e nós escrevemos um roteiro com a identidade muito própria: já não tinha mais tanto teatro, mas tinha a voz desses três caras pretos querendo falar sobre esse assunto. E, no finzinho, a gente tinha certeza que, além do conteúdo, queria também brincar com a linguagem. Aí entra o Lusa Silvestre, que é o cara que escreveu Estômago, um filme de que gosto tanto. Eu achei que o nosso tinha que namorar com esse filme. E aí se juntaram essas oito mãos e deu roteiro. E tu sabes que eu escrevi um livro sobre isso?

CONTINENTE Não! Que livro?
LÁZARO RAMOS
Desde a pré-produção, todo dia eu me gravava. Sobre minhas dúvidas. Como se fosse um diário mesmo. A gente transcreveu e transferiu para um livro falando sobre o processo, que saiu pela editora Cobogó, da Isabel Diegues. E ficou massa, porque, quando eu fui ouvir os áudios, achei tudo muito legal. E não é um livro para arrotar vitória, é para falar de aprendizado mesmo. Se chama Medida provisória – Diário de um diretor.

CONTINENTE
Na peça, havia dois atores no palco – Aldri Anunciação e Flávio Bauraqui que, tenho certeza de que não por acaso, também estão no filme. Como foi trabalhar a transposição de um espetáculo com apenas duas pessoas em cena para a polifonia de um filme bem coral? Medida provisória tem seus protagonistas bem definidos, mas também vários outros personagens bastante relevantes para a trama.
LÁZARO RAMOS
Eu acho que teve um momento determinante, que foi quando saiu uma pesquisa sobre o que era a inserção das pessoas negras no cinema nacional. Foi muito engraçado porque essa pesquisa bateu forte na gente… E a gente começou a criar parâmetros. Por exemplo, queríamos uma mulher negra, protagônica, de um tamanho ideal, que não tivesse uma profissão de trabalhar apenas com o serviço, né, que é o que a gente tem contado nos últimos anos todos. E aí a gente decidiu logo que Capitu ia ter o mesmo destaque que os dois primos na peça. Os outros personagens naturalmente apareceram porque já estavam na peça, como áudio, e a gente quis dar corpo para eles. Talvez o maior desafio tenha sido o Afrobunker, que é um núcleo que não existia na peça e é um núcleo que é uma opinião. Além de ser esse núcleo de resistência, é um núcleo também para dar conta de uma coisa… Eu tenho a sensação que, às vezes, quando tem um grupo grande de pessoas negras em cena, vira um coral uniforme, sem identidade. Em alguns casos, inclusive, com roupas parecidas. O Afrobunker surgiu para isso: sabendo que tinha uma limitação de tempo para mostrar aquilo, mas a gente escolheu 26 atores do teatro carioca. Tatiana Tibúrcio, na verdade, escolheu. Ela fez a preparação de elenco também com a gente. Eu, Flavinha Lacerda (a pernambucana Flavia Lacerda, que deu consultoria de direção ao projeto) e Tati fomos para uma sala de ensaio e ensaiamos com esses atores. Mesmo sem ter textos, a gente queria que eles trouxessem personalidade, opinião, atitude, diversidade, dentro da negritude. E isso foi muito legal.

CONTINENTE Tipo um ensaio vivência?
LÁZARO RAMOS
Sim, foi uma vivência, um ensaio vivência. Um experimento de personagem, de interação, de composição… de cada um escrever um pouquinho da sua biografia. E eu, pelo menos assim, acho que quando as pessoas assistem ao filme pela primeira vez, nem percebem isso, mas eu que já vi várias, quando vejo o Afrobunker ali, sinto que deu certo, sabe? É um filme para ser visto mais de uma vez, eu acho… É tanta mensagem subliminar, tanto easter egg (expressão que significa, literalmente, ovo de Páscoa, mas que em filmes, séries e games simboliza segredos escondidos nas imagens) que é importante rever.

CONTINENTE Interessante você falar do Afrobunker logo agora, porque tem uma passagem no filme na qual, assim que Capitu chega lá, ela pergunta algo como “isso é um novo quilombo?” e alguém responde “que nada de quilombo, quilombo é muito século XVIII”. Ou seja, não é só a atualização de vocabulário, mas de ideia também.
LÁZARO RAMOS É, porque a peça é toda essa imaginação do que será o futuro, não é? Tem desde o Afrobunker, que é o “neo” quilombo, até chamar negro de “cidadão de melanina acentuada”. Tudo isso já vem da peça. Agora o mais doido de tudo é o seguinte: essa é uma peça de 2011, que a gente escreveu, como base para o filme, em 2015, e todo exercício era assim “vamos pensar em coisas que a gente não quer que aconteça”. Sabe? O que a gente queria: esse filme tem que ser um alerta, tem que ser coisas absurdas. A distopia é isso. Mas o Brasil foi para caminhos em que aconteceram coisas piores, inclusive do que o que está ali. Muitas delas aconteceram. E aí eu acho que agora o filme ganha um outro sentido, né? Um sentido de alerta maior porque a realidade está sendo mais cruel do que a ficção.

CONTINENTE E vocês filmaram em 2019?
LÁZARO RAMOS Eita, em 2018 ou 2019? 2019, sim. No início já… Acho que fomos até maio.

CONTINENTE Ou seja, Jair Bolsonaro já tinha sido eleito e empossado como presidente do Brasil. Como você está dizendo, lançar o filme em 2022 traz muita coisa que já aconteceu. Essa distopia está menos distopia e mais próxima da realidade. Inclusive, eu acho o processo de escalação do elenco perfeito também nesse sentido. Porque olho para Adriana Esteves, incrível no papel de Isabel, e vejo nela um tanto da ministra Damares Alves.
LÁZARO RAMOS
Olha aí o que é a realidade! [risos]. Não foi planejado, não. Se eu tivesse mais tempo, até planejava aqui, pois estão merecendo, né, que a gente conte muitas histórias falando da quantidade de crueldade que eles fizeram no país ao longo desses anos todos. E olha como são as coisas: o inimaginável, o que para a gente era inimaginável, aconteceu. Cabe a gente agora votar direito na próxima eleição.


Pré-estreia de Medida provisória no Cine São Luiz, no Recife.
Foto: Breno Laprovitera

CONTINENTE Lázaro, me fala mais sobre o processo de escalação de elenco. Vocês fizeram esse processo para compor o Afrobunker, por exemplo, mas e os outros papéis?
LÁZARO RAMOS
O primeiro elenco era o Luís Miranda e Seu Jorge. Porque eu queria que fossem primos com energias diferentes. O Luís Miranda, muito por essa compreensão do humor que ele tem, e o Seu Jorge, muito por essa firmeza. Quando Luís Miranda saiu para fazer o espetáculo de teatro, Seu Jorge foi para o lugar de Luís Miranda, o que para mim foi um ganho, porque ele surpreende fazendo comédia, é um lugar que as pessoas viram muito pouco, e a força dele, junto com a comédia, eu acho que é uma coisa muito interessante. O Alfred Enoch, que estava nos sonhos de muito tempo, entrou no radar um ano antes das filmagens porque, olha como são as coisas, por uma frase que ele disse numa entrevista, falando português. Eu não sabia que ele falava. E ele falou assim que queria muito conhecer a origem brasileira dele. “Eu acho que o Brasil também é meu”. E no filme o personagem dele acaba gritando essa frase! Aí já era um recado, então o convidei. Taís é escalação natural e não por ser minha esposa, mas por ser uma atriz que eu acho que traz tudo que Capitu precisa, que é uma impulsividade, uma inteligência cênica, uma paixão em tudo que ela faz. Agora a parte mais íntima: é uma parceira que eu amo trabalhar por admiração e respeito por tudo que ela vem construindo ao longo da carreira dela e tudo que ela representa. E eu acho que tê-la nesse lugar, nesse filme, que tem uma pretensão, sim, de ser, uma convocação e um chamado, acho que é lugar comum. Os outros todos foram vindo por diversos motivos. Alguns poucos fizeram testes, mas, por exemplo, eu não queria ter Adriana Esteves e Renata Sorrah nesse lugar. Não tinha pensado nelas, apesar de serem amigas queridas. Eu estava num outro lugar: eram Ana Lúcia Torre e Fernanda Torres. Porque tinha uma coisa do tom que eu queria no filme, e elas são duas atrizes que fazem comédia muito bem e também fazem a transição para o drama muito bem. E como o filme tinha esse desafio de conseguir sair da comédia para o thriller e para o drama, eu sempre pensei que os atores tinham que trazer em si essa capacidade. As duas não puderam fazer por motivos diferentes. E aí os deuses do cinema então trouxeram Adriana e Renata, que eu acho que são um brinde. O filme ganha pela inteligência que elas trouxeram para fazer essas personagens.

CONTINENTE
E elas duas juntas dão muita verdade e credibilidade àquelas mulheres que, digamos assim, toda e qualquer pessoa do campo progressista, da esquerda, que acredita numa sociedade mais justa e igualitária, vai querer odiar.
LÁZARO RAMOS
E tem uma outra coisa também que, eu não vou mentir, me importa bastante: a opinião de quem trabalha. Não queria atores que somente fizessem Medida provisória para ser mais um filme na carreira. Eu queria pessoas que tivessem compromisso com a causa. Porque esse filme tem uma causa. Não tem como você falar que esse filme não é para a gente se fortalecer na luta antirracista. É, também, para isso. Então, assim, todo mundo que está ali de alguma maneira, além das dos seus talentos artísticos, tem envolvimento e acredita na importância dessa luta.


Lázaro Ramos e Alfred Enoch no Cine São Luiz. Foto: Breno Laprovitera

CONTINENTE Quando eu estava fazendo pesquisa para essa entrevista, cheguei aos dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, e acho que é o censo de 2020, que atestam que 54% da população do Brasil são negras e negros. No entanto, somos um país que insiste muito nessa ideia de que somos uma nação cordial, não é? Nós somos um país racista, mas negamos até mesmo esse racismo que está entranhado no nosso país e no filme, que mostra essa violência, Queria que você falasse disso, como homem negro e cidadão negro, pai de duas crianças negras, e agora um cineasta negro envolvido na luta antirracista.
LÁZARO RAMOS
Pois é. Na verdade, hoje em dia eu tenho feito um exercício que é de falar assim que dizem que somos cordiais, não é mesmo? Mas também dizem que nós somos um país em conflito, que somos um país violento e somos um país fascista racista. Essa narrativa não é a única e eu tenho me preocupado muito com isso. Porque não existe apenas uma voz no Brasil, tem mais voz e tem uma galera que precisa ser reconhecida. O filme termina, inclusive, com aquela homenagem para reconhecer as vozes que estão aí, trazendo esse desassossego para gente reconhecer em que país a gente vive, reconhecer os problemas que a gente tem. E enfrentar com coragem e com justiça. Estamos longe do ideal, não é? Mas essas vozes estão aí e o filme também é para homenagear essas vozes. Não é à toa que, nos cenários todos, tem muitas fotos bem específicas para valorizar esse país porque ele também é nosso.

CONTINENTE E, ao mesmo tempo em que utiliza o recurso dessas fotografias, o filme também traz frases muito fortes, como na sequência em que Antônio grita, da varanda da sua casa, algo como “Vocês querem meu corpo? Pois venham me buscar”.
LÁZARO RAMOS
Sabe de onde vem isso? É outra coisa bem importante. Quando o roteiro estava pronto, a gente encontrou uma antropóloga e pesquisadora chamada Aline Maia. Pedi para ela ler o roteiro e trazer coisas da vida real para alimentar equipe técnica, atores, o roteiro, a reescrita. E ela fez um trabalho massa, pegando de treta de internet, de briga de Facebook, à poesia de Conceição Evaristo e à tese de uma universidade. O filme é todo embasado, na verdade, no nosso dia a dia. Um dia eu queria que as pessoas tivessem acesso, inclusive, a esse documento dela porque tem 180 páginas e, para mim, é um retrato do Brasil atual. Ela foi muito legal porque fez isso olhando desde a camada poética até a camada mais cotidiana que é a briga de internet.

CONTINENTE
Ela fez isso especificamente para o filme?
LÁZARO RAMOS
Sim, ela fez isso para o filme. É um documento de 180 páginas que, inclusive, nem é uma coisa nova. Porque eu acho que uma das coisas que temos hoje em dia, de muita qualidade, são essas possibilidades de diagnósticos. Uma pessoa que queira ter letramento racial, Djamila Ribeiro, Sílvio Almeida, nos livros aí você vai para Sueli Carneiro lá no passado, você tem esse material. O diacho é que a gente não está se sensibilizando. Porque, para conscientizar, a gente tem material. E hoje em dia, se tu quiser pensar nesse assunto, até no BBB, que é conteúdo de massa, é possível discutir isso. Agora, as pessoas não estão se sensibilizando, então talvez por isso o filme flerte tanto com técnicas de entretenimento, para se aproximar com a comédia, com o melodrama… Sim, porque tem o melodrama mesmo. É para isso mesmo, é para aproximar. E, a partir daí, a pessoa se sentir convocada a fazer alguma coisa. 

CONTINENTE
Falando nesse flerte com a comédia e com o melodrama, você, como ator, já passeou por todos esses gêneros. Mas como foi essa experiência na direção? Depois de duas décadas no teatro, no cinema, na televisão, como foi estar nesse outro lugar de diretor?
LÁZARO RAMOS
A experiência de dirigir? Bem, eu não queria dirigir. Ofereci o filme para um monte de amigo diretor: Sérgio Machado, Joel Zito Araújo e pra todo mundo eu dizia “gente, é uma peça que pode dar cinema”, aí as pessoas respondiam “isso daí vai dar muito trabalho, não dá pra fazer, eu já tenho meu projeto” [risos]. Aí eu fui ficando e comecei a dirigir apavorado. Mas, ao mesmo tempo, eu tive a sorte de me cercar de muita gente que me deu suporte. Desde as aulas que tomei com um amigo que é corretor de cor e professor da universidade, para entender de lente e não sei mais o quê, até a presença de Flavinha Lacerda, que, assim, muito generosidade, para além do trabalho, compartilhou o conhecimento dela como diretora. Às vezes, ela tinha paciência só para ouvir e estimular. E estava ali sempre o tempo todo, em qualquer área, desde a preparação do elenco até na hora de decidir planos. Quando tinha uma cena difícil no set, eu ligava e dizia “Ô, Flavinha, venha hoje”. Ela vinha. Também tive a sorte de contar com Tatiana Tibúrcio, que preparou elenco pela primeira vez. Ela é uma grande atriz, muito inteligente, e deu suporte nesse trabalho com os atores. 

CONTINENTE
E o restante da equipe?
LÁZARO RAMOS
É, tem a equipe técnica que não tem jeito de não citar. É até injusto eu não citar nomes. A equipe de Medida provisória fez o filme brasileiro com mais pessoas pretas, na frente e atrás das câmeras, de toda a história. Isso teve um sentido prático também, pois, na hora de fazer, era muita paixão e dedicação para que tudo desse certo. Então, em momento nenhum eu me sentia sozinho ou sem recurso do que fazer, porque sempre alguém vinha lá e oferecia uma coisa para a gente contar essa história. Esse é um filme que não foi feito com muita grana, mas tem um tamanho que, na tela, parece que foi muito maior. E só foi possível realizar isso por causa da dedicação dessas pessoas, que sabiam que esse encontro era especial e esse filme era especial. E aí o que foi que aconteceu? Eu pensei assim, “poxa, se eu estiver bem acompanhado, eu vou conseguir ser diretor”. E aí eu quis e fiz e agora quero ser diretor também, mas sempre tenho que estar bem acompanhado [risos].

CONTINENTE
Mas tanto você é diretor agora como já até lançou um livro! Como foi essa experiência de gravar esse diário todo dia?
LÁZARO RAMOS
Não era todo dia. Alguns dias, sim, e outros dias eu estava muito agoniado e não conseguia gravar. Mas eu entendi, naquele momento, que tinha uma oportunidade de contar uma história preta com outros parâmetros. E quis registrar isso. Muitas coisas eram intuitivas e outras coisas eram convicções. Aí eu comecei a gravar, mas a minha intenção era escutar isso anos depois. Depois que o filme estreasse, depois que tivesse crítica, depois que o público falasse… Para ver o que eu aprendi com o tempo. Só que também entendi que é um registro importante de ser compartilhado. Porque dentro das escolhas todas do filme, seja do gênero, do jeito de fazer, do jeito de escalar o ator, do jeito de preparar, do jeito de montar, era uma informação que eu acho que tem algo de único no que foi possível para pessoas pretas fazendo cinema no país. Então registrei aí para compartilhar essa informação. Porque acho que é um filme que representa muito do nosso tempo. Mas eu sonho muito que, após esses passos que a gente deu, a gente dê outros. Então eu queria deixar isso aberto para todo mundo.

CONTINENTE Sim, abrindo caminhos. Nem que seja meio na marra, né? Aliás, tem uma frase que aparece no final do filme, que é super impactante, que diz: “Em uma cultura de morte, viver é uma desobediência”.
LÁZARO RAMOS
É uma frase do Murilo Araújo, que é um youtuber do Muro Pequeno. Estava assistindo a uma live dele sem saber como terminar o filme. E de repente ele falou essa frase. Eu falei “entendi o que é o filme”. E como isso foi já na época da montagem, então eu coloquei no final.

CONTINENTE O filme sai no momento em que o Brasil vive sob um governo de extrema direita e, por tudo que você já contou, é pioneiro em vários aspectos: a primeira produção com número expressivo de protagonistas e personagens negros e com uma equipe majoritariamente preta por trás das câmeras. Como você, um negro nascido na Bahia, um dos estados brasileiros com maior população negra, percebe esse momento em que Medida provisória está sendo lançado?
LÁZARO RAMOS Eu acho que o filme, necessariamente, precisa ser um alerta para um novo pacto que precisamos fazer. O Brasil escolheu um caminho trágico com a escolha desse Messias, desse dito Messias, e de um monte de gente incompetente e perversa. Queria que o filme tivesse saído antes, mas acho que vem em boa hora porque estamos no momento do pacto, de um novo pacto. Espero que as pessoas, ao assistirem a esse filme, levem para uma reflexão política. Para a gente saber que precisa fazer uma escolha melhor para o nosso país. O Brasil é bom demais para a gente desistir dele, levando para um lugar trágico, como levamos.

CONTINENTE A palavra “trágico” ganha ainda mais força quando olhamos para as estatísticas, que são muito desfavoráveis para a população negra. Sabemos que existe um genocídio da juventude preta, pobre e periférica e que, nas estatísticas do sistema carcerário brasileiro, a maior parte dos detentos e detentas vem da população negra. Seu filme tem uma mensagem de resistência e luta, mas também de esperança. As cenas transcorridas durante os créditos dão a entender que a história segue…
LÁZARO RAMOS Não queria que o filme fosse um fetiche com nosso sofrimento, não. O filme tem dor, mas eu queria oferecer alguma alternativa. Eu, por exemplo, estou muito cansado de ver histórias com o sofrimento preto, sem me dar uma alternativa, um lugar que às vezes me dá a sensação de que o público pode desistir ou sair sem reconhecer sua força. E nós somos muito fortes. Esse filme é para falar sobre isso também. Nós somos forte pra caramba. O alimento dele é esse, é para a gente se alimentar dele, não é só para ficar no fetiche de ver nosso sangue, nossos corpos… Tanto é que é um filme que não tem corpo de preto sangrando. Tanto que é um filme que não tem arma na mão de preto, como se aquilo fosse o seu destino. Aparece uma arma duas vezes, num contexto muito específico, e isso é uma opinião. São essas coisas que a gente viu ali naquela pesquisa e que a gente entendeu que era importante para abrir essa janela. E o filme faz isso, tem esse propósito e tem várias coisas. Se eu fosse ficar falando com você aqui, ia comentar desde o enquadramento, como na hora em que Taís e Alfred estão encostados na banca de revista, até as músicas que estão no filme. Tudo tem uma mensagem, que é para a gente abrir outras janelas. Porque a janela do fetiche somente com o sofrimento do preto não me interessa. 

CONTINENTE
Falando na trilha sonora, o filme tem Liniker, Baco Exu do Blues...
LÁZARO RAMOS Agnes Nunes cantando Cartola, Elza Soares em dois momentos…

CONTINENTE E em um deles dizendo “meu país é meu lugar de fala”. Nada parece aleatório.
LÁZARO RAMOS E não é. Não tem nada aleatório. E eu podia ficar falando para você de um monte de outros easter eggs, como uma foto que aparece bem rapidinho na geladeira da Izildinha e de uma fala do André, logo no começo do filme, que reverbera lá na frente, em outra sequência. Não tem nada de aleatório mesmo.

CONTINENTE Em sua primeira experiência como diretor, mesmo dizendo que não queria dirigir, parece que tudo está se encaminhando bem.
LÁZARO RAMOS Tá vendo só? [risos].

LUCIANA VERAS
, repórter especial da Continente e crítica de cinema. 

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