Entrevista

"Deize Tigrona é total amor"

Ela tem história, é uma das primeiras artistas do funk brasileiro a fazer suas letras a partir do desejo e prazer femininos. Abaixo, a gente conversa com ela, que lançou, em 2022, ‘Foi eu que fiz’

TEXTO Erika Muniz

06 de Junho de 2023

Foto Pedro Pinho/Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

A mãe tá on, tá ligada em tudo. O trampo da mãe não para, são anos e anos de canetada. Por isso e muito mais – que ela fala mais abaixo, nesta entrevista –, fé em Deize Tigrona, cujas escritas vão do rap ao funk, passando pelo trap e outras linguagens musicais. Ela é uma das primeiras artistas do funk brasileiro a trazer o tema do sexo em suas letras, a partir do viés do desejo e prazer femininos. Da Cidade de Deus, no Rio de Janeiro (RJ), de um lado, a carioca conviveu com o rap; do outro, com as batidas do funk, que vinham da quadra do Coroado e compunham a paisagem sonora dos arredores da casa de sua mãe. A partir daí, ela mesma iria compor suas linhas, versos e melodias. E escreveria, dali por diante, seu nome na história da música brasileira.

Em 2022, Deize Tigrona lançou o seu Foi eu que fiz, pela Batekoo Records, com hits como Sururu das meninas, Bondage e Sobrevivente de rave. Antes disso, sua arte ganhou o Brasil e fora dele com músicas como Injeção (2008) e Prostituto (2012). O funk, em suas diversas vertentes, foi se consolidando entre os anos 1990 e 2000, para se tornar, cada vez mais, uma das principais expressões artísticas do país. Hoje, já está entre as culturas oriundas da periferia brasileira com o maior destaque.

Entre o disco anterior Garota chapa quente (2008) e o mais recente, Deize fez turnê internacional, participou de documentários e de residência artística, passou por momentos difíceis em sua vida pessoal e também começou a trabalhar na Comlurb (Companhia Municipal de Limpeza Urbana do Rio de Janeiro), onde está hoje como gari.

Com uma agenda de shows que a trouxe para cidades do Nordeste, desde a chegada de Foi eu que fiz, Deize Tigrona conversou com a Continente por videochamada, pouco tempo após se apresentar no palco do festival Rec-Beat, no Carnaval do Recife deste ano. Em um intervalo nas escritas da sua biografia, ela contou sobre o lançamento do álbum, a parceria com a Batekoo, seus processos de criação, a presença feminina no funk, como vê o gênero atualmente e o que lhe inspira a compor.


Capa: Pedro Pinho/Divulgação

CONTINENTE Em 23 de setembro de 2022, Dia da Visibilidade Bissexual, você lançou o álbum Foi eu que fiz. Queria começar lhe perguntando como foi o processo de criação dessas composições.
DEIZE TIGRONA Essas composições foram realmente elaboradas para o impacto. Inclusive, a música com a Malka é uma música para falar abertamente sobre sapatão, sobre lésbicas, sobre gênero. Isso precisa ser abertamente falado, abertamente identificado nas músicas. E quando vejo que tem algumas artistas que são “bi”, mas não falam abertamente e ainda enaltecem a masculinidade nas suas composições, fico: “Pô, vamos fazer uma música falando abertamente. Vamos fazer uma música realmente explícita”. Não é só aquela coisa homem e mulher, é mulher e mulher também. Acho que isso tem que ser falado, tem que ser citado abertamente. O que eu quero, o que eu não quero, o que eu vou fazer, deixar de fazer, em relação a estar com mulheres. Nesse processo (do disco), por exemplo, Bondage, eu quis fazer uma continuação de Sadomasoquista. Foi elaborada pensando também no vogue. A mãe tá on foi uma volta ao meu início musical, que foi de poesia para o rap e, hoje, é trap. Falei assim: “Poxa, preciso realmente fazer uma música assim”. Porque estou voltando lá atrás e mostrando que realmente sei fazer, encaixando nela a minha indignidade em relação a essa fala de que “a Deize Tigrona é foda”, “a Deize Tigrona inspira”, de que sou chamada de “rainha”. Mas, assim, não se tem tantas oportunidades para a Deize Tigrona. Tipo, não estou em todos os festivais, não estou em todos os eventos. Eu me sinto estando porque estou sempre fazendo algo, então, de alguma forma alguém cita o meu nome, alguém cita a minha música, mas e a Deize Tigrona, o corpo, né?

Eu quis, então, fazer essa letra mostrando esse impacto. “Não quero tapinha nas costas/ Meu vulgo não é rainha/ rainha é o caralho/ Que se foda a monarquia.” Literalmente, é verdade. É muito bom ser uma inspiração para todos, mas não estou com todos. Pensando em Ibiza, é realmente essa questão de saudade. Ibiza é essa questão de você estar lá, com saudade, e fazer um vídeo. “Pô, estou aqui, estamos juntos, sei lá, vamos nos tocar de alguma forma.” Esse processo foi bem-elaborado. Pensei bastante, tive que debater bastante, até com a Batekoo, em relação a essas escritas, porque, até então, quando iniciei meu trabalho de produção artística com a Batekoo, não eram essas letras, eram outras. Das letras antigas, de 2019, o que está novo é Ibiza e Sobrevivente de rave, uma música que eu já tinha escrito há anos. Escrevi na Europa. “Está na hora de colocar Sobrevivente de rave num álbum, vambora!” Quer dizer, trabalhei bastante, né? Monalisa vem das artes plásticas porque fiz a residência artística do MAM-Rio e fiquei pensando: “Vamos brincar um pouco com esse quadro e botar essa música em evidência”. Pensando, literalmente, na minha participação da residência, das entrevistas também com o pessoal para o TCC, para a faculdade e trabalhos de escola. Pera aí, já estou há anos nas artes plásticas, então vamos escrever Monalisa e ver no que vai dar. Monalisa me pegou bastante na melodia também. Pensei em melodia, em como seria mostrar essa sensibilidade, porque Deize Tigrona é aquela coisa do duplo sentido, alguns falam pornografia, outros falam proibidões, mas Deize Tigrona é total amor, sensibilidade, sensível.

CONTINENTE Como tem sido essa parceria com a Batekoo para você como artista?
DEIZE TIGRONA Olha, a Batekoo está iniciando o selo-gravadora e isso me pega um pouco, porque nunca fui de produtora. Então, estamos aprendendo. Eu aprendendo a lidar e eles aprendendo a lidar comigo também. Porque é isso, são pessoas mais jovens, eu tenho mais idade (44 anos). Do ramo que está se correndo hoje, em relação à produtora, às vezes me bate uma ansiedade do querer mais e, aí, acabo me pegando nessa lembrança de ver que realmente está sendo um início para mim e para eles também. Então, a gente junta o útil ao agradável, que sou eu, artista preta, periférica, e eles, Maurício (Sacramento), periférico, de Salvador (BA), na gana de transformar uma festa preta em acessível para pretos, principalmente, e, em (certo) nível, para todos também. Mostrando que a diversidade precisa ser mais unida. A gente iniciou o trabalho em 2019, o que pegou foi a pandemia. Mas conseguimos, até mesmo, fazer turnê, em 2019. Conseguimos ter essa calma, essa paciência de esperar e pôr em prática. Esse lançamento com álbum. Então, estamos indo devagar, mas estamos indo. Não costumo desistir. Acho que essa minha paciência faz com que as coisas deem certo. Um passo de cada vez. Para mim, a paciência é a alma do negócio e está dando certo, né? Apesar da minha ansiedade de querer mais. É isso, vivendo e aprendendo (abre um sorriso).

CONTINENTE Como tem sido este início de ano para você?
DEIZE TIGRONA O início deste ano, para mim, está sendo de bastante trabalho e expectativas. Coisas estão acontecendo. A gente conseguiu fechar a próxima turnê deste ano para a Europa. Ter ido fazer Salvador, Recife, para mim, foi épico. Porque Recife, tinha bastante tempo que eu não fazia show. Estive no Recife para o doc Sou feia, mas tô na moda (2005) e, depois 2020, me peguei no Recife, mas numa outra situação. Eu colaborava com outras pessoas, fui chamada para uma live com o (Pedro) Stilo, e voltar para o Carnaval. Foi bem certo de eu sair de mochila, passar pelo Nordeste e cativar as pessoas daí também. Eu esperava, mas não esperava Rec-Beat, sabe? Que, para mim, é um dos nomes de festivais importantes.


Show de Deize Tigrona e DJ Mu540 no Rec-Beat 2023.
Foto: Hannah Carvalho/Rec-Beat/Divulgação

CONTINENTE Você é cantora, compositora, artista visual, fez teatro. Ou seja, você se expressa artisticamente de muitas formas. Como o ser artista chega na sua vida, Deize?
DEIZE TIGRONA Eu sempre quis ser artista, esse que é o barato do negócio. Essa correria de ir atrás é realmente uma gana de querer ser artista. Tentei teatro, tentei passarela. Entrei na (agência) Elite, mas nem deu certo. Entrei, mas logo de cara não deixaram nem eu gastar meu dinheiro (risos). Eu não estava no padrão, não sou o padrão “modelo”, vamos dizer assim. Então, iniciei as escritas de poesias. Das poesias para as rimas e não posso deixar de falar que MV Bill era meu vizinho de porta, lá na minha mãe. Hoje em dia, não moro mais com a minha mãe, mas as nossas mães ainda têm esses apartamentos e ainda são vizinhas. É isso, não teria como eu não ser cantora. Até mesmo porque a quadra onde iniciei, onde tinha a matinê, é do lado do apartamento da minha mãe. Então, era o som rolando, beat do Bill, eu com as minhas poesias escritas transformando em rima e assistindo às minisséries que sou fã até hoje. Hilda Furacão, Engraçadinha, e a TV Manchete, na época. Desde criança, eu já tinha essa gana de querer ser artista. Não teria como não ser.

CONTINENTE E o que lhe motiva a escrever?
DEIZE TIGRONA Vivência! A vivência, a estrada, estar com outras pessoas. Com pessoas diferentes, sabe? Esse contato de estar com os fãs, com o público, com a família. É realmente vivência, a estrada, a pista. É algo transformador você pensar nessa sensibilidade de notar algo e ver que aquilo se transforma, sabe? Pode até ser numa coisa ruim, mas eu consigo transformar em algo que inspire para uma coisa boa. Acho que a arte é transformadora. Se você pensar em algo, ter paciência, você consegue olhar um papel de bala e transformar numa escrita, num verso, sei lá, num poema. Acho que o contato com tudo, com o mundo, com a pista, te leva realmente num algo a mais. Costumo dizer que todos são artistas, porque não é nada fácil você estar viva. Viver é uma arte.

CONTINENTE Já que você falou disso, como é que é ser artista no Brasil, hoje, a partir da sua vivência?
DEIZE TIGRONA Na minha vivência, em relação à minha pessoa, é uma evolução. Mas não é uma evolução para todos, porque você tem que acompanhar, né? Na verdade, em vista do que muitos falam, em vista do que eu vivo e do que eu faço e do que eu entrego, vejo que era para eu ser uma pessoa rica financeiramente. Realmente, ser artista no Brasil, hoje, é você saber acompanhar, saber ter paciência e ter muita força de vontade para poder continuar, porque se não, não vai. A minha sorte é que quero ser artista, gosto de ser artista, gosto de escrever, gosto de evoluir. Na época, lá atrás, não tinha essa divulgação da internet, não tinha essas plataformas todas, então, fico pensando nessa evolução e na minha leitura de Twitter, Instagram, TikTok... Para ser artista no Brasil, hoje, a meu ver, em relação ao meu caso, é uma persistência e um gostar muito do que eu faço.

CONTINENTE Deize, se hoje a gente vê mulheres – e a gente quer ver mais, sobretudo mulheres pretas – no funk, não tem como não mencionar nomes como o seu, o da Tati Quebra Barraco e o de Valesca Popozuda. Como é estar nesse lugar e fazer parte da história da música brasileira?
DEIZE TIGRONA Amiga, às vezes, eu duvido que estou lá, como citei da música A mãe tá on. Mas eu me sinto privilegiada pela luta, por essa ganância minha. Eu me sinto privilegiada, porque é isso, eu não desisti. O que passo para as pessoas é isso, é não desistir. Não achar que é fácil, mas não desistir. Eu me sinto muito orgulhosa porque gosto do que faço, acredito que faço bem, então, mesmo com todos os obstáculos, não posso dizer que não me sinto orgulhosa por ter meu nome nesse ar, vamos dizer assim.


Foto: Pedro Pinho/Divulgação

CONTINENTE Quais os seus compositores e compositoras preferidos?
DEIZE TIGRONA Da antiga... Rita Lee, Lulu Santos! Tony Garrido, o saudoso Charlie Brown Jr., Raimundos, que acho que tem um duplo sentido bem sensível, as melodias cativam e tudo mais. Tem muitos mesmo. Hoje, Kevin o Chris... São tantos nomes, mas do meu início, Lulu Santos, Rita Lee, Lecy Brandão, Bezerra da Silva…

CONTINENTE Deize, o funk é uma música que vivenciou – vou falar no passado, mas ainda vivencia, de certa forma, no presente – o preconceito musical e também o racismo. Hoje em dia, embora esteja entre as mais ouvidas, nas plataformas e nos palcos, a polícia ainda invade festas e bailes. Algumas coisas mudam, mas outras permanecem. Do seu ponto de vista, enquanto artista, como você vê o funk hoje?
DEIZE TIGRONA Amiga, o funk está ganhando uma outra roupagem, né? Acredito que o povo diz ser fã, diz gostar de funk e tudo o mais, mas se você ver a maioria dos artistas, hoje em dia, bota um pouco do funk, mas não 100%. Então, assim, a gente continua na luta. Vejo que ainda há uma resistência, mas também sinto que alguns artistas de grande porte – vamos dizer assim –, do pop, dizem amar, usam ainda um pouco do funk, mas realmente está havendo uma “distanciazinha”. Por exemplo, você vê, hoje em dia, nos grandes festivais, trap, rap... E grandes festivais contratando outros gêneros musicais, mas a maioria não é funk. Então, assim, pô, agradeço muito Ludmilla, até mesmo a Anitta, mas ainda está faltando esse abraço completo no funk. Aqui, ainda tem o (festival) Eu amo baile funk, que acontece uma vez por ano. Queria que o povo abraçasse mais, sabe? Porque esse preconceito, esse racismo em relação ao funk ainda não acabou, ainda existe. E eu vejo que tem pessoas que dizem amar o funk e tudo o mais, mas não é 100% o abraço da defesa. Então, acredito que o funk está tomando realmente uma outra roupagem porque, sei lá, parece que o povo está cansado de lutar. Então, para não dizer que não gosta de funk, ainda usa um pouquinho dele em sua escrita ou então num feat, mas sinto que ainda tem uma distância. Acho que tem que ter a união até mesmo de grandes festivais nas contratações, sabe? É muito bom também ver o Nordeste com o bregafunk, trazendo essa potência de “não, o funk não pode morrer”, mas eu vejo que ainda há uma distância.

CONTINENTE Hoje, o dinheiro chega mais para os artistas que fazem o funk do que no passado? Como você enxerga as mudanças na dinâmica no funk entre os artistas e o mercado?
DEIZE TIGRONA Foi como citei aqui. Vejo que o funk está perdendo um pouco o espaço, sim. Mas, falando em relação à minha pessoa, vejo que o funk está mudando não só o gênero musical, a batida, apesar de que o VHOOR conseguiu trazer o Volt Mix de volta, numa potência com a FBC. Isso me deixou muito feliz porque vai trazendo esse resgate de saber fazer modificações que não deixem de ser funk. Fico muito feliz que o VHOOR conseguiu trazer essa mudança e me impressiona realmente os gringos ainda virem atrás dos beats do funk e o caramba, mas estou sentindo realmente essa mudança nos grandes festivais, porque a maioria é rap, trap, que, para mim, não deixam de ser potências de favela. Mas quando dizem que o funk é uma referência para todos os gêneros musicais de hoje em dia, sinto que (o funk) ainda está ficando para trás em relação às grandes contratações. Em relação à minha pessoa, acredito que muita gente lembra da minha história, fala da minha história, mas há aquele preconceito ainda. É isso, vejo que está mudando total, até mesmo a cor da pele, as produções. Eu tenho a reclamar do mercado (risos). E aí, sempre vem essa fala dos grandes festivais. Dá a entender que tem uma rivalidade em relação à Anitta estar no Rock in Rio e a Ludmilla, não. De um espaço que uma está e o outro, não e de onde esse espaço consegue enxergar o funk para ter mais abertura, sabe? E aí, soa como rivalidade, quando não. Quando literalmente estou falando, né? Estou aqui. Graças a Deus que a Ludmilla está tendo esse espaço para ter essa divulgação no funk. A Anitta falando do funk, falando sobre ela ter levado lá para fora e tudo mais. Soa como rivalidade, mas parece que ainda tenho que dar graças a Deus que estão falando, pelo menos, sobre o funk, né? Quando, na verdade, isso deveria vir da boca de geral, tipo assim: “Vamos abrir mais espaço, vamos fazer um festival de funk convidando outro gênero”. Quando, na verdade, é um festival de outro gênero convidando funk. Aí, soa como rivalidade e acaba que o povo se afasta. É sobre o que eu estava falando. Estou vendo o funk perdendo um pouco de sua potência. Eu me sinto privilegiada de não estar perdendo o flow, vamos dizer assim (risos). O público ainda vê: “A Deize Tigrona é funk”. Mas é isso também, não quero só viver de fama, quero minha grana também. Então, diversifico porque, querendo ou não, também não ouço só funk. Também sou fã de outras artistas.

CONTINENTE Atualmente, você está trabalhando somente com a música?
DEIZE TIGRONA Não, amiga. Sou gari, aqui, no Rio. Ainda estou trabalhando varrendo rua. É isso, me disponibilizando, aqui, me jogando para lá e para cá nas escritas do livro e tudo mais.

CONTINENTE Existe algo que você tem vontade de fazer, mas que ainda não fez?
DEIZE TIGRONA (Risos) Ah, amiga, é muita coisa. Quero fazer muita coisa, por exemplo, a minha bio. Tenho um sonho de terminar a minha biografia, mas toda vez bate um gatilho e não consigo dar continuidade. Aí, começo, termino, inicio de novo, paro… Queria ter o emocional mais seguro para poder terminar logo. Mas é isso, estou me cuidando bastante para poder terminar essa bio. Acho que a minha bio, mais do que nunca, é necessária de ser lançada, porque vejo muitos jovens achando que as coisas são fáceis. E não é fácil. Antes muitos meninos queriam ser jogadores de futebol. Ser o herói, o polícia, sei lá, o bandido e o caramba, quando, na verdade, começaram a mudar essa fala para ser MC, entende? E, aí, eu sempre falava: “Gente, olha, vamos ser o que a gente quer ser, mas não deixe de estudar, não deixe de seguir, porque o estudo, a leitura ampliam a nossa forma, o nosso olhar, a nossa sensibilidade de continuar”. A minha bio é uma coisa que quero muito.

CONTINENTE Queria que você contasse a história de Injeção, tanto na composição quanto o que essa música lhe remete.
DEIZE TIGRONA Escrevi Injeção em 2002. Eu falo isso e o povo não acredita (risos). Ela vem depois de Sadomasoquista, que foi escrita no final dos anos 1990. Eu tive a ideia para Injeção porque assistia (ao programa) Zorra Total e tinha um cara que falava sobre o governo, sobre “arder” e “aguentar”. Fiquei assimilando uma coisa ou outra, fiquei com aquilo na cabeça e montando trechos, lembrando de uma vez que fui tomar uma injeção e dei uma mordida na perna da minha avó. Chegou até a sangrar, tadinha. Aí, comecei a botar esse trecho, do “pavor da injeção”, do medo. E pensando nesse “ardendo, mas estou aguentando”, que levou à imaginação do público de que seria algo sobre o sexo anal. Na verdade, quando eu estava escrevendo, nem imaginava isso, sabe? Eu pensava, literalmente, nessa fala política do “tá ardendo, mas eu tô aguentando”. Tipo assim: “No dos outros é refresco”. Então, pensei: “Quando eu vou ao médico/ Sinto uma dor/ Quer me dar injeção/ Olha o papo do doutor/ Injeção dói quando fura/ Arranha quando entra/ Doutor, assim não dá/ Minha poupança não aguenta” (risos). Nesse processo, eu ficava: “Pô, cara, e aí? E agora? E o refrão?”. “Tá ardendo/ Mas tô aguentando/ Arranhando/ Mas tô aguentando.” E quando gravei, era num tamborzinho, não imaginava que fosse ser essa potência de hoje. Foi com um cara que eu ia para a casa dele todo dia para poder escrever algo. Às vezes, eu não escrevia, ficava só ouvindo uns vinis, ficava só conversando. De repente, eu estava em casa e tive essa ideia. Na verdade, o pai dos meus filhos também colaborou com a ideia: “Faz assim, faz assado”. Porque ele é DJ, de vinil, e tocava em puteiro, na época. Quando essa música foi remixada, que um amigo numa rádio perguntou se eu tinha algo e eu dei o disquete para ele essa música Injeção, num tamborzinho. De repente, ele fez um remix botando a música na potência. Eu estava na passarela quando ele estava fazendo o teste com a música. “Caralho!” E estava subindo, um vizinho que perguntou para mim se eu realmente fazia sexo anal, se eu não tinha vergonha de falar sobre (isso) explicitamente na música. Na hora, eu: “Hã?”. Realmente, não pensei assim, não (risos). Depois, cheguei em casa e contei para o meu marido: “Pô, vieram falar comigo sobre essa música falando que é sobre sexo anal”. “Mas espera aí, é sobre sexo anal?” (risos). Essa música teve esse boom em 2002, depois, de 2004 para 2005, até que veio o lance do plágio com a M.I.A. Foi essa música que abriu as portas para eu chegar na Europa, conhecer o Diplo, M.I.A. essas coisas.



CONTINENTE Deize, por que trazer o sexo como tema nas letras da música, da poesia, ainda gera incômodos para algumas pessoas? E parece que é mais ainda quando parte do viés do desejo feminino. Como é que você vê isso?
DEIZE TIGRONA Ah, vejo que há esse tabu ainda, né? Apesar das escritas e do vocal ecoando e tudo mais, acho que ainda há o tabu, porque as pessoas, vamos dizer… São hipócritas. Acho que falar sobre sexo nas escritas, nas músicas, vai trazendo uma liberdade, sabe? Para mim, é importante porque abrange essa liberdade, não só entre amigos, mas entre famílias, tipo, mãe conversando com a filha, pai conversando com filho e vice-versa. Falar abertamente sobre isso acho que ameniza até esse constrangimento que as pessoas têm numa conversa diversificada com outras pessoas. E acho que acaba também dando coragem para as meninas denunciarem o abuso, entendeu? Então, assim, fico triste mediante o tabu que, às vezes, é de famílias mesmo, dos mais antigos ainda terem essa restrição e fazerem com que iniba seus filhos, principalmente as meninas. Acho importante essa liberdade, mas fico triste de a gente ainda ver esse comportamento do tabu, quando, na verdade, isso ajuda bastante até mesmo uma denúncia de abuso. É bem triste porque parece que famílias não se sentem à vontade, sabe, com uma conversa. Aí começa o enrustido, o armário. Acho que é muito importante, não só na música, como no audiovisual, em escritas poéticas, ter essa liberdade. E essa conversa entre pai, mãe, filhos, famílias. É óbvio que a gente não vai sentar na mesa e falar: “Caramba, hoje acabou o meu KY, como é que eu vou dar o meu cu?”, né? (risos). Mas acho que pode-se ter conversa em relação a namoros. “Mãe, hoje, eu saí com fulano de tal e, poxa, não foi legal” ou “Poxa, mãe, foi legal”. “É, filha, pô, você pode falar para ele ou ela ir devagar”. “Sei lá, leva um vibrador assim, diversifica na brincadeira”. É isso, acho isso tão inocente que traz essa liberdade de conversar mais com seus pais.

CONTINENTE E a última pergunta, o que significa liberdade para você?
DEIZE TIGRONA Liberdade, para mim, significa você ir e vir, você estar em todo lugar, você não ter esse sentimento de restrição, de conversar com o próximo. Acho que liberdade te leva em lugares, até mesmo, imaginários, sabe? Mas vejo que essa tal liberdade não é tão assim. Acho que liberdade é você estar em outros lugares, apesar de ter restrição, mas quando quiser, poder e ir. É isso, acho que é o poder de livre arbítrio.


Pedro Pinho/Divulgação

ERIKA MUNIZ, jornalista com formação também em Letras.

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