Entrevista

"A ideia era ter Torquato como protagonista absoluto"

Um dos diretores do documentário 'Torquato Neto – Todas as horas do fim', Marcus Fernando fala sobre o processo do filme que narra a história de um dos mais prolíficos artistas da Tropicália

TEXTO Luciana Veras

09 de Março de 2018

Os diretores do filme sobre Torquato Neto, Eduardo Ades e Marcus Fernando

Os diretores do filme sobre Torquato Neto, Eduardo Ades e Marcus Fernando

Foto Divulgação


[conteúdo exclusivo Continente Online]

Adeus
Vou pra não voltar
E onde quer que eu vá
Sei que vou sozinho
Tão sozinho amor
Nem é bom pensar
Que eu não volto mais
Desse meu caminho

Em Torquato Neto – Todas as horas do fim (Brasil, 2017), documentário em cartaz no Cinema do Museu (Fundação Joaquim Nabuco, Recife), por meio do projeto Sessão Vitrine Petrobras, os diretores Eduardo Ades e Marcus Fernando reconstituem a trajetória de um dos mais prolíficos compositores, poetas e jornalistas da Tropicália e ainda, paradoxalmente, de um dos menos reconhecidos e laureados integrantes da “geleia geral”, para usar a expressão que intitulava sua coluna publicada no Última Hora desta mesma Tropicália. E o fazem com profundidade (a dupla de realizadores teve acesso a um vasto material de arquivo), com amplitude no olhar e com honestidade.

Desde o início, portanto, o espectador vai saber aquilo que, de uma certa forma, já sabe: que o piauiense Torquato Neto, nascido em 1944, parceiro de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Tom Zé, tirou sua própria vida no dia em que completava 28 anos, em 1972. E assim o suicídio de Torquato vira elemento narrativo, mas não de modo a tornar lúgubre Todas as horas do fim e, sim, à maneira dos versos de Pra dizer adeus que abrem esse texto: existe a inevitabilidade de um desfecho, porém é possível construir uma jornada de resgate e descoberta que ilumine não apenas o ato em si, mas todo o percurso criativo que de uma certa forma o embasa.

“As pessoas podem até nem saber muito da vida dele, mas já chegam na sessão sabendo que ele se matou”, diz à Continente o diretor Marcus Fernando. Este é seu primeiro filme, o segundo de Eduardo Ades. Os dois acertam no tom e na liberdade em deixar que o biografado ressurja através da obra e das lembranças de pessoas que lhe foram próximas. Não se trata de uma hagiografia ou de um documentário que demonizará a figura do “poeta vampiro”, como o autor de Mamãe coragem aparecia no filme de Ivan Cardoso; trata-se de um documentário que busca iluminar justamente uma figura um tanto esquecida do caldeirão tropical.


Torquato Neto e Gilberto Gil. Foto: Divulgação

A própria polêmica sobre o afastamento de Gil, Caetano e Tom Zé é tratada com naturalidade. "A gente optou por não tomar partido desse assunto, sabe? Não há nenhuma prova de que as coisas tenham acontecido dessa ou de outra forma. O Gil fala em quebra de sintonia, por exemplo. Quantos amigos que você já teve que se afastou naturalmente, porque a vida te levou por um outro caminho? É plausível que, se aquela pessoa tivesse se matado, aquilo tinha te impactado de alguma forma. Mas ele estava ali, entre seus pares, idealizou tudo aquilo, mas tinha características nele que naturalmente levavam para um outro lado – ele não cantava, não se apresentava em palco. Seria muito leviano de nossa parte supor que tivesse acontecido alguma coisa radical. A gente percebeu que seria melhor deixar cada um sair dali com uma ideia sobre aquilo tudo", condensa Marcus Fernando.

Torquato Neto – Todas as horas do fim ainda traz a luxuosa participação do ator pernambucano Jesuíta Barbosa como a voz que declama os 26 textos de autoria de Torquato escolhidos para enfeixar a narrativa. Outras vozes: Gal, Elis, Edu Lobo, os Mutantes e demais divindades da Música Popular Brasileira que ajudam a compor um retrato de quem foi Torquato Pereira de Araújo Neto, filho de Heli e Salomé, marido de Ana Maria e pai de Thiago. Nos tempos em que muitos no Brasil parecem não ter memória alguma, é um sopro de candura ver um filme que empreende um resgate honesto e delicado.

Em tempo: não se fala de Cajuína, a canção que Caetano compôs em 1977 após conhecer o pai de Torquato. “Não é uma música dele e, apesar de ser uma história bonita, que todo mundo já conhece, é uma história do Caetano”, aponta Marcus Fernando na entrevista que se segue abaixo. Sim, Cajuína não faz falta, porém é da “matéria viva que era tão fina” que se fazia Torquato e tudo que dele derivou e isso, essa alma, está no filme.


Torquato. Foto: João Rodolfo do Prado/Divulgação

CONTINENTE O que motivou vocês a empreender essa pesquisa sobre Torquato Neto, uma figura sempre percebida como à margem do Tropicalismo, um compositor que parece sempre relegado a um segundo plano?
MARCUS FERNANDO Exatamente isso. Tínhamos a percepção de que seria bom jogar uma luz sobre a obra dele para que mais pessoas pudessem conhecê-lo. Ele ainda é um nome muito pouco falado. Na época em que a gente começou a fazer o filme, cinco anos atrás, não tinha sequer um livro. Já havia sido publicado uma vez, depois que ele morreu, numa iniciativa de Ana, a viúva, e de Waly Salomão. E o Torquatália, com organização do Paulo Roberto Pires, já estava fora de catálogo. Mesmo quando se fala da Tropicália até hoje, o nome dele às vezes nem é citado, e ele tem uma história muito rica, de uma obra muito consistente produzida em pouco tempo. A gente achava que essa obra não era objeto de um estudo à altura. Como sou compositor também, o que pegava para mim, inicialmente, era a música e eu já conhecia bem a obra dele, mas a obra poética e a obra jornalística fui conhecendo já durante a pesquisa. Tanto eu como o Eduardo identificávamos nele uma figura muito importante.

CONTINENTE E como se deu a pesquisa iconográfica? O documentário também impressiona pela quantidade de imagens resgatadas.
MARCUS FERNANDO Em várias fases. Na primeira, fomos vasculhar o acervo dele, que é cuidado por George Mendes, um primo do Torquato que tem uma agência de publicidade em Teresina. A gente já tinha conversado com Ana, a viúva, e ela já tinha nos dado carta branca para fazer o filme. Então, fomos lá e o arquivo é super bem-cuidado, organizado, aberto para quem quiser pesquisar para qualquer fim. A primeira fase de pesquisa em Teresina nos deu acesso a 1,5 mil documentos dos mais variados tipos – fotos, desenhos, cartas manuscritas e datilografadas, coisas inéditas como programas de espetáculo de que ele participou… Grande parte do que você vê no filme vem dali.

CONTINENTE E o acesso às outras imagens?
MARCUS FERNANDO A segunda fase começou quando a gente percebeu que tinha uma limitação de registros de vídeo em áudio. Só havia o filme que ele participou como ator, Nosferato, do Ivan Cardoso, e também o filme que ele dirigiu e fez como próprio ator, o Terror na vermelha. Havia, também, o fragmento de um filme que achamos ao longo do processo, um registro de imagem de um evento do Hélio Oiticica em que Torquato aparecia dançando em meio a peças de parangolé. Mas não tinha som, nenhuma entrevista com ele, na TV ou no rádio, nada onde houvesse a voz dele. Depois que demos uma entrevista a Mariana Filgueiras, uma repórter carioca, ela foi procurada por Wanderley Cunha, um radialista gaúcho, que disse que tinha uma fita com uma gravação com o Torquato. Ele estava em São Paulo, num festival de música em 1968, e entrevistou muita gente. A gente resgatou essa fita, recuperou para passar a gravação para o digital e é o áudio que se ouve no filme.

CONTINENTE E como surgiu a ideia de alinhavar todo esse material de acervo com imagens de dezenas de outros filmes? Isso enriqueceu e muito a narrativa do documentário.
MARCUS FERNANDO Essa foi justamente a terceira e última fase de pesquisa – quando a gente decidiu radicalizar na montagem e cobrir todos os depoimentos. Ao todo, usamos trechos de 42 filmes do Cinema Novo e cinema marginal que dialogavam com tudo aquilo que era falado. Porque, veja bem, a nossa ideia era sempre ter o Torquato como protagonista absoluto. E, quando montamos aqueles depoimentos de Gil, Caetano, das pessoas que o conheciam de verdade, era a imagem dessas pessoas que aparecia durante muito tempo. Então, isso começou a perder o sentido e partimos para cobrir os depoimentos. Quais eram as imagens do universo do cinema marginal, do Cinema Novo que ele tanto admirou, do qual falou nas colunas que escrevia? Começamos a pesquisar coisas que fossem parte do imaginário dele mesmo.

CONTINENTE Nesse tempo todo, como se deu a relação com a família? Inclusive o filho dele, Thiago, é um dos entrevistados. A impressão que dá é de que a cooperação foi total.
MARCUS FERNANDO Sim, total. A gente primeiro conversou com o poeta Salgado Maranhão, que era amigo do Torquato, e ele adorou a ideia e fez a ponte com a Ana, a viúva. Na época, parece até que os dois moravam no mesmo prédio. Infelizmente, ela faleceu no ano retrasado. Na época, ela, mesmo sem me conhecer ainda, disse ao Salgado que a gente teria carta branca total para fazer o filme do jeito que a gente quisesse. Sugeri enviar para ela o primeiro roteiro e ela nos deu várias indicações de fontes, de depoimentos que deveriam entrar, e muito nos ajudou. Com relação ao Thiago, o filho dele, o que aconteceu é que especialmente criamos uma relação de afeto mesmo. Pude encontrá-lo várias vezes no Rio, ele já veio ver o filme duas vezes, gostou muito, e tem falado algo que nos emociona: que o filme permitiu um reencontro dele com o pai. Quando Torquato morreu, ele tinha dois anos. E era uma história meio tabu, não era muito falado, e o processo do filme fez com que ele conhecesse um outro lado da história do pai.

CONTINENTE Falando em tabu, sabemos que suicídio ainda tem um grande estigma no Brasil. Não se fala muito sobre esse assunto, não é? No entanto, no filme vocês tratam da morte de Torquato desde o começo.
MARCUS FERNANDO Terminamos abrindo o filme falando desse assunto. Porque é muito comum, nas exibições que acompanhamos, conhecermos gente que não sabe nada do Torquato, mas sabe que ele se matou. É uma marca muito importante da obra dele, aliás, ele falava disso o tempo inteiro. Tem um poema em que diz: “Vivo tranquilamente todas as horas do fim”. A gente tirou o título daí porque percebeu que, naturalmente, o tempo todo ele já falava disso e o filme também falava. Então, qual era o sentido de construir uma coisa para que, no final, chegasse aquela morte? Você vê que tem depoimentos de um amigo de adolescência dele que conta que, quando eles tinham 15, 16 anos, conversaram sobre a morte e o Torquato já dizia que a melhor forma de se matar seria através do gás, que era inodoro. Esse era um assunto que permeou a obra e a vida inteira e não só ele demonstrava isso como, nas palavras do poema, vivia tranquilamente as horas do fim. O interessante para a gente, ao montar o filme, foi ver que tudo aquilo se relacionava com o desfecho que qualquer um já sabia que iria haver. Tanto que resultou, e não só somos nós que achamos, em um filme que não é pesado. Que fala da morte, de uma pessoa que se suicida, mas sem aquele peso.

LUCIANA VERAS é crítica de cinema e repórter especial da revista Continente.

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