Entrevista

"A Bahia não é monotemática"

Roosevelt Ribeiro de Carvalho, ou simplesmente Russo Passapusso, está à frente de um dos trabalhos de palco mais elogiados e esperados pelo público brasileiro na atualidade: o do BaianaSystem

TEXTO ERIKA MUNIZ
FOTOS MÁRCIO LIMA

19 de Agosto de 2019

Russo Passapusso, vocal e compositor da banda sotero-politana, símbolo da música baiana atual

Russo Passapusso, vocal e compositor da banda sotero-politana, símbolo da música baiana atual

Foto Márcio Lima

[conteúdo exclusivo Continente Online]

"Sulamericano de Feira de Santana." Na descrição do seu Instagram ou na letra da canção, é assim que Russo Passapusso, cantor e um dos compositores da enérgica BaianaSystem, se apresenta. Não dá para dizer, porém, que seria uma definição sua, já que frequentemente se coloca em vias de questionamento. Russo é daqueles artistas que estão mais dispostos a abrir para dúvidas e reflexões do que se fechar nas certezas.

Durante sua fala, é constante ouvi-lo se referir às suas origens. De onde veio, quem são seus mestres e mestras, suas principais influências, com quem tem buscado aprendizados e de que maneira tudo isso lapida seu modo de olhar para o mundo. Nascido Roosevelt Ribeiro de Carvalho, Russo está à frente de um dos shows mais elogiados e esperados pelo público na atualidade, seja em eventos ou festivais de músicas pelo Brasil e pelo mundo. Mesmo quem ainda não teve a experiência de assistir a uma apresentação do Baiana, e dançar ao som de Lucro (Descomprimindo), Playsom ou as mais recentes Bola de cristal e Saci, do álbum O futuro não demora (2019), onde está também Sulamericano, é possível que já tenha ouvido alguém comentar.

“Estou extremamente esperançoso e positivo, mas caminho nessa positividade com uma coisa dolorosa, que é abrir os olhos para a dor, para a tristeza, sem renegá-las. Quero ver, quero estar, quero entender, quero chorar… A dor é fundamental no processo do amor. Comecei a entender isso depois do (disco) Duas cidades”, reflete o artista nesta conversa exclusiva com a Continente.

Aproveitando a vinda de Russo ao Recife, para o show da nova turnê do Baiana, entramos em contato com a assessoria do grupo. Por conta de uma virose, no entanto, a entrevista precisou acontecer dias depois, por telefone. De sua casa, em Salvador, ele nos contou sobre seu processo criativo, a relação com a música da América Latina e da Bahia, algumas de suas influências artísticas e pessoais, relembrou várias memórias e pontuou seu discurso em defesa da sua bandeira de luta neste momento: a da cultura.



CONTINENTE Como é que você está? Como anda a vida?
RUSSO PASSAPUSSO Uma luta, uma luta absurda. A gente saiu do processo do disco (O futuro não demora), um ano para fazê-lo, valorizando tudo o que vinha da história dali da Ilha de Itaparica. Um mergulho muito fundo, uma convivência profunda e tudo mais… Depois, a gente já entra para a coisa dos shows. E o show se transforma em Sulamericano. Foi o que a gente fez aí no Recife. Cada vez mais vem se mostrando para a gente que a vida tem sido uma relação de luta mesmo. No Recife, tive a tristeza de ter uma virose. Fui ao pronto-socorro. Saí direto para o show. Sei que o público não percebeu, mas estava ali cheio de coisas, foi muito difícil. É a percepção de que a música é uma entrega tamanha, que, às vezes, você esquece até do seu corpo físico. Daí, entende que pode acontecer qualquer coisa, com qualquer familiar e você tem que sentar. Os riscos que se correm nos aviões, nas estradas com as pessoas. As permissões de humor da gente que são incontroláveis e a gente tem que sempre estar bem. Estou nesse processo de entendimento e amadurecimento com relação ao corpo físico do instrumento. A essa entrega espiritual. Algo que, às vezes, a gente olha e não percebe que o tempo vai passando, que as coisas vão acontecendo e outras fragilidades dentro disso. Estou nesse caminho de luta mesmo, de reconhecimento dentro da bandeira que é do nosso momento: a da cultura. Falar de cultura quebrando alguns tabus em relação a isso com a música. Ao mesmo tempo, com a arte de sobrevivência da música, como hoje as coisas se comportam. A coisa do comércio, como você sobrevive, como se ajuda uma família, como faz uma família ficar bem dentro do veículo que tenha o principal produto. Chamar a música de produto também seja algo possível e que não venha a destruí-la.

CONTINENTE Fui ao show e, como sabia que você estava assim, rolou preocupação se rolaria mesmo porque é muita entrega de vocês nas apresentações.
RUSSO Justamente. A galera fala assim: “Dá para fazer o show”. Eu falo: “Gente, é o show do Baiana!” (risos)

CONTINENTE Não é tão simples. (risos)
RUSSO É um show do Baiana. Não é cantar, é olhar, participar, responder, perguntar… O show do Baiana é um debate, uma festa, uma mesa redonda. É um bocado de coisa e chega um momento que você esquece que está ali.



CONTINENTE E sobre composição, como é seu processo criativo?
RUSSO Dentro dessas histórias, posso citar o que aconteceu comigo ali. Estava mal e tal, fiz o show. A coisa de cinco minutos, antes estar no hospital e depois no show, estabelece paralelos de convivência e visualização. Você começa a entender uma transição. Entrar num lugar onde as pessoas estão mal, uma idosa precisando tirar pressão, aquela história de pronto-socorro e, de repente, você entra no show. Essa ruptura gera possibilidades de destravamento e entendimento na sua cabeça. Para mim, isso já é composição, sabe? Isso já é o levantar e refletir de tema. Pode naturalmente aparecer na minha música sem que eu perceba como um mote, uma história ou na letra. Minha composição é de observação do mundo, da gente no mundo, mas, principalmente, minha observação vem de entrar no lugar dos outros. Compor com outros lugares de fala. Se fala tanto de “lugar de fala” hoje. Acho que a arte, por ser um objeto invisível, que, às vezes, entra na gente, a gente fecha os olhos e se vê naquela situação. Por mais que você esteja racionalizando, quando você usa uma música que fala do mar, Dorival Caymmi, você fecha os olhos e começa a chorar porque você se sentiu naquele lugar. É tudo o que você precisa. Esse caminho da poesia é a grande batalha da qual falo. Ela que desmembra. Às vezes, duas palavras podem quebrar seu coração mais do que 300 contos, 300 histórias do beabá. A poesia leva você para outro entendimento. Às vezes, o próprio escritor não sabe a alquimia daquelas palavras que ele está sugerindo porque ele também é fruto daquela vivência. Composição, para mim, é o fruto da vivência, do se entregar. É acreditar na memória afetiva, ter fé nas pessoas, acreditar nos objetos, em tudo que circunda a gente. O mais interessante da composição é o processo de morte ao ego. A música é algo que não está em você, ela chega através de transmissões que, muitas vezes, você nem sabe quais foram.

CONTINENTE E como isso se dá na prática?
RUSSO Existem vários tipos de “caneta”, em termos de composição. Tem o que tem que virar hit e ser sucesso, utilizar aqueles códigos já previstos. Falar de sexo, de drogas, de violência, sempre deu muito “Ibope”. Como o próprio produto de libertação política também vira elementos para que as pessoas fiquem famosas. “Ah, não, o mercado agora está procurando só trans; o mercado agora está procurando só homens negros que sofreram na favela; ou ele está procurando só mulheres nordestinas do Interior.” O próprio mercado e a publicidade se apossa dessas ações para gerar assunto e conteúdo. Composição, para mim, é lidar com todas essas escalas. Das mais interiores e profundas às mais rasas e publicitárias dentro do mesmo angu. Depois que tudo isso se coloca, você vê que a música é uma espécie de Deus que surge em primeiro lugar ali. Quanto mais você faz uma música verdadeira, mais ela vai tocar corações verdadeiros. A responsabilidade de deixar as músicas falarem por si. Não caminhar com as músicas como troféus. Elas têm como amadurecer também.



CONTINENTE O que você costuma ouvir em casa?
RUSSO Agora só ouço música latina, música da América Latina, que tenham portunhol, espanhol ou línguas da América Latina. Especificamente Ruben Blades e essas músicas que estão nos circundando nos nossos vizinhos. Percebi que eu não conhecia músicas do Chile, Argentina, Panamá, Porto Rico... Achei muito feio estar no meu lugar, saber tudo o que acontece nos EUA, no continente europeu e, até, no continente africano, e não ter informações sobre o meu continente, dentro de um processo que todos já sabem. A cultura é um braço muito forte para uma doutrinação imperialista. Hoje em dia, não precisam mais matar as pessoas porque as matando, não vai tê-las para comprar os produtos. É preciso doutriná-las para poder continuar comendo no lugar de um cuscuz com ovo, um Mc Donald’s; no lugar de ouvir Elis Regina ou Tânia Maria, Beyoncé. Essas substituições, né? No lugar de você estar com Elza Soares, vai para Beyoncé. Ouvir um cara repentista que rima absurdamente e é valorizado em qualquer lugar do mundo que ele chega como obra da humanidade. Mas você quer se relacionar basicamente com a cultura do hip hop e colocar aquilo como algo que já passou. Com essa transição, essa correria que as mídias estão fazendo, 10 anos nos últimos três, é muito fácil a gente perder os parâmetros. Às vezes, estamos lutando sobre coisas que nosso comportamento não está tornando viável. Como é que eu sou a favor das plantas, se eu não tenho nenhuma em casa? Como é que eu sou a favor dos animais, se jogo uma pedra num cachorro da rua porque ele tem que sair? Essas coisas em relação ao micro e ao macro têm chegado a mim de uma forma avassaladora. Depois do álbum O futuro não demora, o certo era que a gente falasse só dos caminhos das ancestralidades, mas, tinham (as canções) Sulamericano, Bola de cristal e relações que fizeram a gente acordar. Nos 45 minutos do último tempo, a gente percebeu que a pesquisa, a parada que você está ouvindo ou lendo, teria que ser: “Vamos conhecer nossos vizinhos antes”.

CONTINENTE Um processo decolonial de vocês.
RUSSO Com certeza. Antes, muito relacionado à nossa Bahia, por ser o lugar que tem mais África. Toda essa história e a questão do Sertão, que é de onde eu venho. Olhar o mar quando chega em Salvador. Entender o que é diáspora, o que são todas essas relações, mas comecei a perceber que eu estava numa bibliografia totalmente norte-americana para falar de África. O norte-americano, por mais que seja maravilhoso, Malcom X, Martin Luther King e tudo mais, existe um processo político de implementação imperialista cultural. Por mais que eles valorizem a gente, queiram que a gente se ouça, se escute, que o músico seja libertador e fale “Brasileiros, ouçam suas músicas”, a gente vive num mundo capitalista. Os EUA vão querer colocar referências deles nos primeiros e o que a gente mais vê hoje é uma roupagem norte-americana da nossa música. Anteriormente, dentro de um processo pós-guerra de liberação, era natural que, depois das forças unidas para terminar com o nazismo, acontecesse esse boom com o mundo hippie, a libertação nos EUA, na Europa. Até o povo norte-americano contra os norte-americanos, lá dentro. Isso faz a gente começar a ter mais confiança, porque é um povo que se critica, que se coloca em questão. Mas após esse processo de guerra, com os exemplos de hoje, fica muito difícil ouvir outra coisa. Percebi que as plataformas, por mais que eu ouvisse música latina, não me davam dicas de músicas latinas. Se dessem, eram coisas superficiais, uma música latina produzida com uma veia norte-americana. Era o que os norte-americanos diziam como música latina, essa coisa da explosão do reggaeton. Tudo isso é muito pré-programado. Percebi que seria mesmo algo para destravar um pouco minha cabeça. Percebi até viajando para países da Europa, em Barcelona, como eles valorizam a cultura deles. Às vezes, até as palavras norte-americanas referentes à comida, como cachorro-quente, fast-food, essas coisas, eles permanecem, sem transformar em códigos norte-americanos. É mais esse processo de autovalorização da história.

CONTINENTE Diz um álbum da música brasileira que seja inesquecível.
RUSSO Eita! Deixa eu pensar. Um é difícil. Vou tentar. Partindo do ponto de vista do Baiana, o Mudei de ideia (1971), do Antônio Carlos & Jocafi, que tem Você abusou. É muito importante para a gente porque coloca a música brasileira em primeiro lugar. Uma das principais referências. Muito cultuado lá fora, um disco que tem um processo de composição esplêndido. Já vem com as ideias das guitarras da explosão do rock n’ roll. Essas fusões todas de forma extremamente autêntica e brasileira. É lindo porque Antônio Carlos & Jocafi, como “caneta” (compositores), saíram de Salvador para o Rio de Janeiro, fizeram várias trilhas de filmes, novelas, tudo o que era pedido. Compunham para outras pessoas também. Esse disco é um marco na minha vida. Outro que é muito forte para o Baiana é o Civilizaçao & barbarye (2006), de Ramiro Musotto. Um disco que sei que todos citariam. O Civilizaçao fala desse afro-sudaka, com Ramiro Musotto, que já alimentava a ideia. O BaianaSystem surge de uma relação com Ramiro Musotto, Roberto Barreto... Ramiro Musotto produziria o disco, mas ele veio a fazer sua transição, sua passagem. Faleceu no primeiro momento que ele produziria. A gente ficou meio órfão e junto com Chico Correa, aí do lado de João Pessoa (PB), tudo foi acontecendo. Se você me desse a ousadia, eu falaria Tincoãs, Riachão...



CONTINENTE Escuto muita gente se referindo ao show do Baiana como um dos melhores que já tenha ido em vida. E para você, o show de qual artista foi inesquecível?
RUSSO Ah, fui uma vez para um show de Marku Ribas. Não foi um show, ele estava em Ilhéus, numa casa de shows que todo mundo estava tocando. Ele foi fazer uma participação. Também subi no palco. Naquele momento, ele não cantou, ele dançou. Ali, entendi o que era o corpo do artista. O fato de ele estar ali, muito emocionado, começar a dançar de olhos fechados. O público começou a gritar, mas não era um grito em relação à coisa sexista, era de ele estar se libertando. Vi aquilo do meu lado, achei uma impressão de show. O que ele deu ali foi de corpo inteiro. Para mim, ele é um dos melhores cantores do Brasil, já faleceu também. Tudo o que eu queria era ouvir a voz dele e, de repente, com a própria expressão do corpo dele, consegui transcender a ideia de voz. Foi muito importante.

CONTINENTE Você lembra onde foi?
RUSSO PASSAPUSSO Foi no Bataclã, uma casa bem antiga de Ilhéus. Tinha BaianaSystem, Ilê Ayê, Marku Ribas. Depois do show, todo mundo foi para essa casa. Sempre me vi como público nos shows do Baiana. Todo show, a galera vai me ver tentando pular do palco para poder chegar perto da galera. Isso não é cena de palco, é algo que me puxa mesmo. Já entrei no público algumas vezes, só que depois que quebrei meu dente com o microfone, falei: “É melhor não!” (risos). Quebrei o de baixo e até hoje passo a língua para lembrar. Tento chegar próximo, olhar, peço para que liguem a luz porque acho que foi isso que fez essa história. Muito da coisa que ter vindo do sound system, o Ministério Público, sistema de som aqui da Bahia… A gente monta o som na rua, puxa do poste, bota as caixas. Quando você olha para o lado, está um brother com o queijinho comendo do lado, a mulher passa com as compras. Daqui a pouco, pergunta se pode guardar ali. Lembro que nos sound systems quando eu ia tocar, as pessoas ficavam falando: “Ah, não vai ter a performance não?”. Eles queriam que fosse uma coisa do rap, um cara fazendo squash, outro rimando, pedindo para levantar a mão e abaixar. “Não, já está rolando o som, é isso aqui. Está rolando a movimentação.” A rua precisa conhecer, as pessoas precisam acontecer. Isso me trouxe humildade para poder fazer uma construção, a ponto de, hoje, a passagem de som ser o momento que estou na frente das caixas. Para mim, é meio sound system. Amo passagem de som. É um momento muito especial, onde a gente planta a energia que vem o show. Os músicos falam pouco disso e acho que é uma das principais características da minha construção musical. Muitas letras surgem na passagem de som. Estou na cidade, cheguei cansado, a gente vai lá, os músicos começam a tocar, o técnico liga, não tem ninguém no público. Só tem eu com o microfone na mão, materializando como vai ser a noite. É um momento mágico para mim. No show do Baiana, as pessoas começam olhando para o palco, depois, o que mais vejo é gente tentando filmar o público. O palco é esquecido e eu tentando pular para o público, a banda olhando para o público, que vira o personagem principal da história. Alguma coisa fez a gente caminhar para isso, não sei até onde isso vai, mas estão acontecendo coisas muito bonitas.



CONTINENTE Qual o papel da arte nestes tempos de cortes na educação, na cultura e nos direitos trabalhistas do brasileiro?
RUSSO (respira fundo) Ah, o papel da arte é ser verdadeira, não ter cabresto. Se ela não quiser gritar, não grita. Se ela quiser gritar, grita. A arte é viva, o artista é outra coisa, ele que tem que ser obrigado a não ter ego, a entender a arte. Não ficar botando roupas outras naquela expressão. Se a coisa nasce sem filtro, ela é sem filtro. Se o sol não precisa daquele filtro para poder atingir os outros, vai ser daquele jeito. Tudo isso é uma comunicação da arte com o artista. A arte é o próprio povo, a própria reflexão do mundo, a simbiose do mundo, a emancipação e a desconstrução. O vento que caminha dentro disso tudo, que é muito forte e molda uma pedra. A arte caminha junto com todos os outros parâmetros. Ela tira fotografias disso tudo e mostra para a gente, uma espécie de “raio x” da história. Ela não tem papel. (risos) É algo que a gente fica muito feliz porque não dá para prender. Por mais que vivamos no mundo capitalista, que é um dos modos operantes mais organizados dentro da história das utopias do ser humano, a arte consegue quebrar isso também. Ela caminha, é imortal. Por ser algo que se transforma tanto, fica difícil de a gente definir porque é um agente de transformação, que precisa desses veículos, da sensibilidade, do artista, do momento. O ser humano precisa muito da arte e o entendimento de que muita coisa que está à nossa volta já é arte, mas a gente não percebe.

CONTINENTE Quem são seus ídolos?
RUSSO Meus ídolos… Que pergunta! Nunca me fizeram. Meu ídolo é Bule-Bule, Seu Valdir, daqui da minha rua, que molha as plantinhas e conversa comigo. Para mim, ele é um artista. Cuida de todo mundo daqui. É maravilhoso, meu ídolo. Tem uma pessoa também que criou muitos amigos meus e hoje me cria também, que é Lúcia. Ela faz uma comida maravilhosa. A comida dela educa as pessoas. As pessoas veem como é a batalha da vida dela para alimentar e, muitas vezes, ela não está alimentando quem está na casa dela. É uma coisa muito impressionante. São pessoas que me fazem chorar. Bule-Bule é um músico maravilhoso, uma transição do Sertão maravilhosa e viva no meio de nós. Hoje, Lúcia está em todos os lugares, todos falam dela. Nas vezes em que eu quero qualquer traço de perseverança, de luta, de amor verdadeiro, de uma pessoa única, me vem ela na cabeça. As coisas idealizadas que assisto, que leio são fortíssimas, mas elas somem da minha tinta da caneta porque quero falar da verdade. Vejo a luta que é. O que as pessoas passam é absurdo. Então, sinceramente, são eles mesmo.

CONTINENTE O que mudou nesses 10 anos do Baiana?
RUSSO Quando a gente percebeu que tinha 10 anos, tomou um susto porque não tinha visto isso. A gente não tinha calculado porque foi vivendo. Quando bateu a ideia, a primeira coisa que lembrei foi se o processo da gente de trabalhar música, fazer arte, discutir os temas antes de qualquer coisa, aprender para a gente, ouvir antes de querer mostrar a música para o público, se isso estava novo, recém-nascido. Percebi que isso nasce a todo momento, logo, a gente não se sente velho. É o que amo em Tom Zé, um eterno jovem, mais jovem do que eu. Incrível. Percebi desses 10 anos, a necessidade, alegria e vontade de continuar batendo na tecla de renovação, desconstrução e compartilhar dentro do Baiana. E se tem uma coisa que posso citar bem clara, é que agora a gente sabe fazer o meio de produção. O último disco, a gente gravou na Bahia. A gente vê muitos músicos do Nordeste em São Paulo. O BaianaSystem mora em Salvador. A gente trouxe o estúdio para cá, todo mundo daqui. Conseguir fazer o disco em Salvador, na Ilha de Itaparica. A gente acredita que não é só uma questão de ferramentas tecnológicas, mas o lugar, a pesquisa, os sentimentos, tudo isso entra para a música. Esse disco é incrível por isso. Se nesses 10 anos amadureceu em algo, foi nesse entendimento de meio de produção e valorização à produção. Estar no seu lugar e poder fazer.


O grupo no processo de criação em Itaparica. Foto: Filipe Cartaxo/Divulgação

CONTINENTE Uma das canções do Baiana diz O carnaval quem faz é o folião. Você curte Carnaval?
RUSSO Nunca fui carnavalesco. O que me colocou no Carnaval foi o BaianaSystem. As vezes em que eu saí no Carnaval, em Salvador, foram extremamente frustrantes. A questão do comportamento machista, a estrutura machista, eu, que vim do interior, me assustava também com os meus paradigmas e as coisas machistas dentro de mim em conflito com aqueles outros ali. Sei lá, tenho uma namorada que os caras beijam à força e não posso fazer nada, senão vão me espancar. Essas coisas todas foram muito sofrimento dentro do Carnaval. Sempre vi aquilo como um expurgo popular. Às vezes, a beleza era para chorar, mas o medo estava dentro de mim. As questões de racismo, a corda que prendia a gente do lado de fora e batia na gente. Dentro do BaianaSystem foi caminhando, caminhando. No primeiro (show), a galera dava dedo e mandava embora; no segundo tinha pouca gente; no terceiro já tinha mais; no quarto deu um bocado de gente e, de repente, todo mundo queria ser sem corda. Esse discurso vira uma coisa pop. Meu comportamento é mais do interior, sou o cara do São João. Gosto de fazer fogueira, do Senhor do Bonfim, da Guerra de Espadas e aquelas manifestações. Amo festa popular. Sound system é uma festa popular. Sempre gostei das festas de largo, que circundam o Carnaval. Dentro da estrutura do Carnaval que a gente conhece hoje, esse veículo monstruoso, fico sempre vivendo um por vez para entender como as coisas acontecem porque acho que é um grande laboratório de comportamentos de instinto coletivo, popular. A ideia de “Carnaval quem faz é o folião” é de Lucas Santtana, que visualizou isso de forma esplêndida, mais um colaborador. No final das contas, quando lota as ruas, o Carnaval é do povo. Até a ideia das cordas está ruindo, porque vai ficando feio, a partir do momento que o povo começa a ter a consciência de minorias, de lugar de fala, de proteção às questões de gênero. O abadá já não fica mais tão legal. A corda já entendem que é uma repressão. A coisa começa a ficar gritante e vai falindo a situação. Só que o povo vai conseguindo também renovar isso, fazendo suas festas. No bairro de Nordeste de Amaralina, aqui perto, tem festa de Carnaval que a galera sai na rua. Quer dizer, já começa a renascer. Para isso virar um movimento enorme é daqui para ali, muito rápido, porque as pessoas só saem de casa e cantam.

CONTINENTE Nos últimos anos, o carnaval do Recife e de Olinda, apesar de serem conhecidos pela tradição das ruas, têm tido um crescimento de camarotes e eventos privatizados. Será um movimento contrário?
RUSSO Tem uma coisa, no Recife, que acho muito louca. A primeira vez que fui tocar aí com o Paraíso da miragem (2014), no Rec-Beat, me falaram que tinha uma lei que não podia tocar axé music. Achei maravilhoso. Isso me ensinou muito, é uma coisa de comportamento. Acho que é sempre essa relação da força financeira, do capital, com a força popular. O que me deixa alegre é que quando fulano quer financiar uma grande festa, fechar um camarote, hoje em dia… Esse ano já rolou isso. Os conceitos gerados com um lounge rua, com vista para a rua. Quer dizer, as pessoas estão querendo ficar na rua, em paz e não estão conseguindo. Acabam pagando por uma situação que nunca vai ser aquela de ficar na rua. Por mais que as coisas sejam privatizadas e fechadas, é tudo querendo estar na rua, querendo ser do povo, querendo ser o simples, querendo curtir o momento que simplesmente saiu com a água na mão e viveu uma situação fantástica. Ninguém vai conseguir encapsular isso. Sensação não se vende, esse tipo de coisa não se passa. Este ano, toquei num camarote aí e eu ficava: “Vamos fazer que nem na rua! Dança que nem na rua!” Eu tinha acabado de sair de uma festa na rua, na Lagoa do Araçá. Foi absurdo! Essa dualidade, essas coisas deixam a gente confuso, mas o Baiana sempre faz isso. Quando a gente fala de “máquina de louco”, é justamente isso, levantar a discussão. O Baiana sempre foi um debate, a única coisa que a gente coloca dentro disso tudo é a palavra amor, que a gente acredita que seria a resposta para todas as coisas. No final, o ser humano quer é o amor, ser amado de alguma forma. A gente começou a perceber que o elo do amor poderia conduzir os debates em opiniões contrárias. O Baiana, sem uma força que sustente isso, financeiramente falando, não tem como colocar as nossas ferramentas para acontecer. A gente gosta de chegar com tecnologia. Nosso sonho é fazer um show dentro de um lugar caríssimo. O público pagar aquele preço e não reclamar, está de boa. No outro show, a gente pegar a mesma estrutura de telão e tudo e tocar no interior. Uma coisa financiar a outra, é isso que sempre acontece.



CONTINENTE A música do Baiana é muito politizada e se comunica com o público através da subjetividade. Até mais, talvez, do que se fosse diretamente. Neste momento de governo ultraliberal, você acha que as letras ganham outros significados?
RUSSO Ganham, ganham. Sempre tive na minha cabeça vontade de fazer poesia. Sei que muitas coisas acontecem hoje em direção ao conto. A própria estrutura do rap, com uma poesia de forma muito visualizada, narrativa, palpável, verdadeira, extrema, real… Poesias que giram em torno disso. Sempre acreditei nas duas palavrinhas que mudavam tudo: os ditados populares. São pedradas na cabeça e você fica ali. Muitas pessoas não vão precisar misturar para poder comer porque ouviu aquilo. É metafórico, extremamente poético e do povo. Como sou uma pessoa do interior, minha estrutura de vivência foi toda dentro disso, onde aprendi a compor. Quando comecei a escrever rimas, coisas que seriam mais enfáticas ou um perfil mais MC, que as pessoas compreenderiam melhor se eu chamasse de MC, embora eu nunca tenha me chamado assim. Não sou MC, não sou do rap, não sou raggamuffin, não sou do reggae, não sou violonista do samba. Esses códigos, para mim, são basicamente o elo da poesia. É meio uma acupuntura social. Não vou melhorar só pelo pescoço, talvez descubra que sua lombar que faz sua dor. Talvez descubra que, na real, não tenha nada a ver com a sua postura. Para mim, a maioria dos problemas estão enraizados de outras questões correlacionadas ao micro. Não ao macro. Dentro dessa proporção, eu procuro enxergar e me colocar como laboratório. Se quero escrever sobre racismo, não vou ficar xingando o outro de racista. Quero saber, primeiro, o que eu sou de racista. E tomo um susto. “Caralho, sou racista também, mas eu sou preto. Ah, mas naquele dia quando entrei no banco… Ah, lembrei (expressão de susto).” Começo a escrever sobre isso, sobre mim e as outras pessoas se encaixam nisso, as visões de reflexo externos começam a somar e tudo mais. Preciso ter um olhar para mim, me enxergar. Não sou perfeito. A autodesconstrução dentro do processo de composição do BaianaSystem é a grande história. A poesia é o elemento principal para desmembrar isso. Quando você vê aquilo que escreveu, a poesia se espalha. Você escreveu só com o coração e ela esparrama dentro da cabeça, sai para dentro do corpo. De repente, ela está lidando com ritmo, a pessoa não entende mais e aconteceu.

CONTINENTE Tem muito da oralidade, da rua e da escuta nas músicas do Baiana.
RUSSO Essa coisa agora que está rolando, que estou escrevendo nos palcos de “Eu não nasci para tomar baculejo”, veio ali, quando fui fazer o show e assisti antes. A história da advogada que estava sendo tirada à força; do outro que enforcou e matou o cara no supermercado... Eu não estava entendendo e estava no show. A gente vai compondo em cima das outras músicas. O que a galera tem que entender é que, no BaianaSystem, eu escrevo e começo a cantar dentro das músicas que já existem. Foi muito pouco tempo para a gente fazer uma coisa que tinha sementes novas. Um ano e precisou de quê? Muita pesquisa! Eu não estava com caneta na mão em nenhum momento. Só ia para a Ilha (de Itaparica) e ficava lá. Não ia para um estúdio compor. Não componho dentro de estúdio. Até, por isso, eu fico com medo de fazer participações, escrever com outras pessoas, porque eu tenho que ter uma relação de conhecimento. Para eu fazer Alfazema com Nação Zumbi, foi muita conversa com Du Peixe. Muita vivência, muito entendimento, contar histórias, muitas mensagens de celular. Sentir ele no meu café da manhã e eu no dele para a gente ter uma coisa que fosse forte. É mais isso que está acabando. Os processos colaborativos que não sejam pessoas como mídias. As pessoas estão achando que são mídias por causa do celular. Não são mídias, são pessoas que comem, que vão jantar juntas e que choram juntas. O celular é um milagre, mas não dá para você conviver. Não dá para ter esse tato da situação. Ele é um agente que acaba destruindo um pouco a coisa poética. Mas tenho esperança no futuro, com relação à tecnologia. Não só sobre a técnica do carro, do celular, do drone, mas da tecnologia humana mesmo, como a gente vai utilizar essas ferramentas para desconstruir e ter uma relação cada vez mais com o nosso âmago, o nosso interior. Acredito que a gente possa conseguir.

CONTINENTE Há pouco tempo, aqui no Recife, tivemos ações do Ocupe Estelita, que é um movimento de resistência à especulação imobiliária na cidade, mais precisamente ao projeto Novo Recife. Na música do Baiana, esse tema também é trazido. Isso acontece aqui, em Salvador…
RUSSO Vou te falar uma coisa que você não sabe. Minha primeira imagem foi Recife. Sem mentira nenhuma porque quando começou a acontecer em Salvador, me falavam: “Vai ficar que nem Recife”. Aqui na orla estavam construindo prédios que não podiam. Começou a ser assunto. Eu nem sabia direito o que era. Estava andando pelas praias, pivete, com a galera, me falaram que tinha que ser até cinco andares e, se crescesse demais, só ia ter sombra, que nem em Recife. Fiquei viajando. Fui tocar em Recife, vi a orla como era, aí a coisa veio na cabeça.

CONTINENTE E a cena musical de Salvador? Tem muita gente, Luedji Luna, Baiana, Larissa Luz, Baco… Além dos consagrados, Gal, Caetano… Fala da música contemporânea da Bahia. Já vi você dizer que não vê como movimento. É isso mesmo?
RUSSO PASSAPUSSO Movimento não existe. Movimento é movimento. Nunca vi assim. Queria ver no Recife, na época do Manguebeat, para entender movimento. Se era mesmo, se as pessoas se encontravam nas ruas. A ideia do Da Lama ao caos (1994). As pessoas entendiam literatura, arte, tinham essas relações com suas culturas tradicionais. Entendiam até onde poderiam misturar com a cultura norte-americana, mas que trouxesse para a gente ou para a cultura do world music. Isso para mim, eu nunca vi. Mas a cultura do samba reggae aqui também é um movimento das favelas. Tinham os caras que escreviam letras para representar seus blocos afros, pessoas na rua carregando tambor. O samba também, os movimentos nas esquinas, o chorinho, as pessoas bebendo, conversando, falando sobre o momento político, se encontrando. Artistas com artistas, através de um ambiente, espaço e ideologia que fomentasse aquelas pessoas. Quando isso é mercadológico, não sei o que é que acontece.

CONTINENTE E você acha que agora é mercadológico?
RUSSO Não, eu não acho que é mercadológico extremamente, até porque não estou dentro da música das outras pessoas para entender o que move elas. Porém, não vejo o mesmo ambiente de trabalho, não vejo uniformidade. Amo todos. Acho maravilhoso qualquer espécie de música que se faça, tem que ser valorizada mesmo. Valorizo tudo. Uma época da minha vida, há 10 anos, criticava quando o funk carioca falava palavras de baixo calão e dizia: “Novinha”, “Comer novinha”. Aquelas coisas bizarras. Me doía muito porque sei que fulano quando bebe, que é o pedreiro, que chega na favela, que ele foi demitido… Ele está tomando aquela cerveja pequena, que chama de piriguete. Quando ele vê a menina de sainha, ele não teve educação para entender aquela parada. Vai dar merda, sacou? Eu sei que a música induz a isso. Mas aí, depois, comecei a entender que a música também nasce como fruto do próprio meio. Além das pessoas que são maldosas e colocam aquela letra para poder atingir uma parada. Eu, vindo de uma situação, não posso cobrar que as pessoas também venham disso. É ridículo ficar criticando os outros. A minha crítica não é nunca à pessoa, quero saber o que fez aquela pessoa ser daquele jeito. Minha crítica é àquele modo implantado para a pessoa ser daquele jeito, porque me protejo o tempo todo para tentar não fazer uma música em que vou falar da bunda, sei lá, tento não entrar nisso, até porque a gente tem uma história na Bahia que vem disso, que virou isso. “Vai ralando na boquinha da garrafa.” Todas essas estruturas tiveram seus méritos nas suas épocas, mas, hoje, fulano vai botar o pé atrás. Esse público que se identifica, que eu faço parte, é um público que pensa diferente porque a gente tem essa história. Libertar o corpo, dançar, o sexo, os chakras como agentes fortes. Tudo isso é maravilhoso. Sempre esteve na África. A coisa de quebrar o pudor é maravilhoso, só que não adianta eu ser inocente e achar que estou sendo libertador de pudor e achar que o mercado não vai chegar e explorar. Não me permito muito fazer esse tipo de coisa, justamente porque sei para onde vai.

No final de contas, em relação a movimento, não acredito muito, principalmente porque a gente vive numa época muito fragmentada e globalizada. As pessoas estão produzindo suas músicas dentro de seus quartos com seus computadores. Se elas querem fazer participação, elas mandam um e-mail ou um Whatsapp. Mesmo fazendo uma música com uma pessoa, fiz no Whatsapp, não fiz em movimento. Ele não foi na Ilha comigo. Eu não estava lá com Lourimbal, não vi ele passar necessidade para sair do barco. Não viu a fome, não viu nada. Não viveu. Então, não é movimento. As pessoas estão lendo muito pouco também. Não tem mestres nas músicas. A minha crítica quanto a movimento musical é em relação a isso. Agora, existe, sim, a Bahia. É muito forte. São muitos expoentes que aparecem com muita veracidade. O mais importante é entender que essas pessoas podem ser diferentes e não viver só o código do que se espera da Bahia. A gente está colocando mantras nos shows, para não ficar só pulando, euforia. Não é isso só. As pessoas param quando o maestro toca o piano. Começam a respirar e se olhar. Às vezes, vejo gente chorando. Esse caminho contra o que se espera da gente pode abrir mais arte. Talvez seja a arte gritando. O que tenho para falar de muitos artistas que tem aqui. Existe um êxodo forte para São Paulo. Não sei quem é que está morando em Salvador dessa galera. Sei que está se encaminhando para procurar uma bandeira, para procurar uma sobrevivência e isso é maravilhoso, acho isso muito forte. Mas vejo, mais uma vez, um êxodo acontecer. Esse êxodo que eu mesmo fiz quando fui atrás de Curumin, para fazer o Paraíso da miragem. Hoje, a gente consegue fazer o disco do Baiana todo aqui porque a gente tem a compreensão que tem que ser feito aqui. Justamente para enfatizar a ideia de um dia a gente possa jogar os celulares fora e ser um movimento. Se encontrar sem querer nas esquinas de Salvador.



Eu gosto muito do Afrocidade. Acho extremamente forte porque eles vivem de uma relação de movimento, de uma ONG e toda estrutura. Aquela banda enorme não deve ser fácil, dou valor sempre que eu vejo uma banda grande. Sempre que eu vejo OQuadro com todos aqueles MCs, acho foda. Existem ali agentes de transformação. Josyara, que vem do interior, passa por Salvador, está em São Paulo e sempre volta para cá. Sei como é esse êxodo. É difícil, mas ela busca, com a viola dela debaixo do braço essa estrutura toda. Com a música dela. A Xênia e a Luedji com suas grandiosidades. As pessoas que caminham dentro dessa informação que está acontecendo muito agora, essa bandeira das religiões de matriz africana. Os nomes das religiões afro estão sendo colocados, que são os nomes das próprias pessoas. Não transito muito com isso. Há muito tempo as pessoas tentavam buscar isso dentro de mim e não conseguiam muito encontrar porque tem uma multiplicidade na Bahia que tem que ser vista não só com esses códigos. É bem mais do que isso. A gente sabe que isso é também uma cultura de exportação. Acho que está sendo mesmo levantada a bandeira da Bahia para fora disso.

Existe uma diversidade e que ela venha a se multiplicar nos seus temas, que não seja monotemático para mostrar que a Bahia não é monotemática, porque senão a gente caminha como as novelas, que falam que nosso sotaque é daquele jeito e que aqui só tem gente daquele jeito. A Bahia tem muitos sotaques, tem pessoas que ouvem coisas que não são do axé music, tem pessoas que dançam coisas que são dos indígenas e não de África. Tem toda uma influência ampla de expressão que é muito esquecida do interior da Bahia. É o sertanejo. Muitas vezes, o sertanejo não se enxerga como afro. Ele tem a pele queimada, rachada do sol, mas não é africano, negão, como eu sou. É uma pessoa que tem a ideia de uma identidade outra, que mistura. Para não cometer esse fechamento, fico sempre caminhando para abrir esse celeiro dentro das coisas que estão acontecendo. A importância de Josyara fazendo essa música, de Xênia, de Luedji, todas essas histórias. Acho amplo, mas não acho movimento e queria que a gente falasse mais dos mestres.

CONTINENTE Para terminar, o que importa nesta vida?
RUSSO Que pergunta! O que importa para mim, deixa eu ver neste momento da minha vida (pausa silenciosa). Família. No sentido mais geral que isso possa trazer, não é relação de sangue, é relação de união. Acho que tudo o que está caminhando hoje vem para destruir essa palavra. Acho ela muito importante para quando a gente fecha os olhos. Essa palavra vem trazendo muito para quem a gente é. A família que se escolhe e a família que se tem. Família, para mim, é muito atrelada à cultura, porque ela traz traços disso para você. Você respira traços de cultura sem precisar ler no livro, sem precisar ver num filme, através da sua respiração e convivência. De onde você vem. Acho que várias famílias com processos culturais tendo essa relação de onde você vem, a gente consegue estabelecer uma relação mais viva e de mais possibilidades nessa história. Cultura e família para mim está aí. A gente fala nos shows que é nossa cultura em primeiro lugar. É o meu mote de hoje, que venho há tempos colocando, porque sei que os atentados que vêm, no final, são em cima da cultura, para destruí-la. Fico assustado e acho que é para isso mesmo.

CONTINENTE Massa, Russo. Agradeço a entrevista.
RUSSO Muito bom, muito boas as perguntas. Tira a gente do lugar e é isso que a gente precisa. Valeu!



ERIKA MUNIZ é bacharel em Letras pela UFPE e jornalista em formação.
MÁRCIO LIMA é fotógrafo pernambucano radicado em Salvador.

 

Publicidade

veja também

“O que eu ouvia é que isso não era uma profissão” [parte 2]

“O que eu ouvia é que isso não era uma profissão” [parte 1]

“Arte demanda um completo sacrifício”