Entremez

Porto Velho velho, puro mormaço

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

04 de Dezembro de 2017

Recusei o café da manhã no hotel. Queria provar a culinária de Porto Velho. Nada dos manjados fiambre, presunto, queijo prato e mussarela ou bolo formigueiro de chocolate, que enjoamos de comer mundo afora. Saí à procura de um sabor rio Madeira e encontrei-o no Mercado Central, em cafés restaurantes onde as pessoas disputam mesas como nos mercados do Recife. Havia tapioca, sim, mas feita além de goma com a castanha do Pará torrada e moída. E mingau de banana e milho. E caldo de carne engrossado com farinha de mandioca e ovo. Do lado de fora, uma mulher vendia manuê assado na palha de bananeira, que lá chamam como em Pernambuco de pé de moleque, um bolo rústico de massa puba, açúcar e água, em que o coco foi substituído pela castanha. O Ceará é presença marcante na cultura amazonense, sobretudo no meio da gente mais pobre. Em Rondônia, os colonos ricos vieram quase sempre do Paraná, no período recente da colonização, gente do agronegócio, da extração de madeira e dos minérios.

Eu tinha recebido convite para uma mesa no Cine Amazônia, festival de cinema ambiental que este ano completou quinze anos. É de poesia que o mundo precisa, o título da conversa com os poetas Binho – Rubens Vaz Cavalcante – e José Inácio Vieira de Melo. A poesia nos mostra o mundo com signos e lentes renováveis e recicláveis, afirmou o professor Binho no começo de sua fala. Viajei a Porto Velho desejando trocar as lentes dos meus óculos, sentir a poesia da região que eu visitara uma única vez na vida, há 40 anos. Finalizo meu romance, que se passa boa parte em florestas e águas do Norte. Aceitei o convite porque um dos produtores do festival, Jurandir Costa, me armou um laço à primeira recusa: vocês escritores vivem falando que é necessário salvar a Amazônia, mas não se esforçam nem mesmo em vir conhecer isso aqui. Esquecem que se trata de metade do território brasileiro. Depois dessa, eu precisava apenas fazer as malas e correr ao aeroporto. Não gostei que a companhia aérea atrasasse o voo no Recife, perdendo a conexão em Brasília. Resultado: vinte e quatro horas de molho em nossa capital, onde eu não pretendia ir assistir nenhuma encenação no Congresso ou Senado. O hotel era bom, mas a dieta se resumia a peito de frango e arroz, hambúrguer com fritas e macarrão ao molho de tomate. Os tambaquis, pirarucus, dourados, tucunarés e pacus ficaram para o dia seguinte, depois de horas tediosas no serrado seco e quente.

O hotel. Somos 18 vítimas da companhia aérea Gol. Casais, crianças, gente com traços marcadamente indígena, brancos, mulatos, negros. Povo miscigenado, dá gosto ver. O ócio, o tédio de ficar trancado no quarto impõe o convívio, por mais arredio que sejamos. Entre o saguão e o restaurante, onde se engole a ração imposta, um batente amenizado por rampa de metal. Todas as pessoas tropeçam nele e ameaçam cair. Distraio-me aguardando os tombos, mas uma loura maquiada e pouco vestida descobre que sou escritor, me viu em algum programa de entrevistas na TV. Obrigam-me a selfies e até sugerem uma entrevista para o face book da garota. Corro da parada, confesso-me tímido.

Porto Velho. O mormaço na poesia de Elizeu Braga: mormaço na flor na pele/ no suor dos olhos o corre/ daquela senhora que anda/ pra cima e pra baixo/ com aquela menina escanchada no ombro/ com a cara aberta num sorriso... Chegamos ao mercado primeiro Avelina, Zé Inácio e Binho, ao café do cearense fundeado no madeira há meio século. Tudo de comer é bom e decido comer tudo, me embriagar de sabores. O que não presta é o café, coado, adoçado e frio na garrafa térmica. Deixo passar. A conversa em torno da poesia lembra abelhas dando voltas à procura de mel. Chega Marcos Aurélio, professor, ensaísta e secretário de educação, que mediou nossa mesa. Com ele, a esposa. Depois de muita conversa, tapiocas, caldos de peixe e mingau, baixa Elizeu. Mais poesia e mormaço no rosto do pedreiro velho/ que conhece a cidade como as marcas da mão/ mormaço no suor escorrendo evaporando/ um horizonte quente subindo do chão/ quem escuta a voz da cidade/ quem ainda acredita nas lendas dos deuses colonizadores/ quem se senta pra escutar os contadores do desenvolvimento/ demolidores que confundem lucro com sustento...

O professor Marcos Aurélio não disfarça a comoção. Poetas conhecidos chegam, sentam, comem, bebem café ruim, dizem poemas próprios e alheios, se embriagam de poesia e mormaço. Na mesa ao lado se acomodam os quatro membros do júri do festival, todos cineastas. Meio dia, o passeio de barco pelo rio até o lago da hidroelétrica e o almoço com riqueza de peixes. De volta ao chão firme, o caminho pela cidade, tentando ler os sinais que o poeta Elizeu Braga nos aponta. Prédios em abandono como no restante do Brasil, memória fragmentada da ferrovia Madeira/Mamoré, de que restam os trilhos, as estações, os vagões enferrujados, os armazéns, o sonho de transformação e riqueza, a memória do sacrifício de milhares de índios, nativos e imigrantes. Mais um sonho grandioso de integração fracassado, como o da Transamazônica.

– Vamos à casa de Dom Lauro.

Casa ou baito? Choupana de varões, teatro, estúdio de música, ágora, galeria de arte, editora, laboratório de experiências malucas. Tudo isso e muito mais. As redes armadas sempre, uma espécie de berimbau sobre pés plantados no meio da sala, as caixas sonoras duas latas de querosene. Uma cumeeira altíssima, a coberta de palha de carnaúba trançada, por onde não passa água, arrumada em planos desiguais sugerindo uma catedral. Chega-se à casa aberta e ampla por meio de uma escada íngreme. Exílio de Babel onde todas as vozes sentem-se acolhidas. A parede da frente em varas de bambu, deixa passar o vento, quando ele sopra. Deito-me numa rede, experimento esquecida alegria. Desejo ficar. Os poetas ocupam o centro da ágora, declamam, cantam, tocam o marimbau. Também me dano a cantar. Dom Lauro é o autor do cenário que me cerca, a nave amazonense pairando sobre Porto Velho. A música cresce, poemas se declamam, alguns sublimes como o Poronga de Dom Lauro. Troveja e chove forte, por bastante tempo. Temo explodir de felicidade. Antes que isso aconteça, acesso a razão de vigília e fujo da barca dos loucos.

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necessariamente a opinião da revista Continente.

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