Não sou doido, lunático ou irresponsável.
Terrorista?
Já me chamaram assim.
Agora é o terror que me espreita e não gosto do seu assédio.
Preciso manter a calma.
A propriedade é ampla, coberta de fruteiras e árvores nativas. Sonhei caminhando devagar, sem rumo certo. Avistei frutos e eles desapareceram quando tentei apanhá-los. Nem o refugo dos pássaros chegou à minha boca. Uma cerca de arame farpado limitava o terreno. Do outro lado, uma sucessão de montanhas, vales e pequenas aldeias. Eu queria alcançar esses lugares, mas a cerca me impedia. Um oceano se agitava entre escarpas fundas. Homens continham embarcações em meio às ondas. Senti pavor e fascínio. Sonho todas as noites com o abismo e imagens de águas revoltas e ameaçadoras. Melhor se não precisasse dormir.
Acordei com fome, o desjejum me esperava no carrinho de chá. Meu hospedeiro é sutil, nunca se revela nem cai nas armadilhas do hóspede, sabe que não posso arriscar-me. Cada recorte de vidro na parede é uma aquarela caprichosa, se modifica com a luz. Procure distrair-se, ele me aconselhou na única vez em que nos avistamos. Não usava a farda com que aparecia na televisão e nos jornais, sentia-se em casa. Apontou os livros, um castiçal sem velas, duas imagens de santas, o caxixi na prateleira alta. Talvez imaginasse que vou tocar o instrumento dos cegos pedintes. Não perguntei sobre o significado dos objetos, nem se os livros também foram censurados. Achei-o disperso, diferente do homem frio e arrogante amigo do meu pai num passado distante. Quando me trouxeram, em meio à escuridão e à chuva, vi a casa lúgubre e os jardins. Felizmente me alojaram nesse quartinho longe, um anexo arrumado às pressas.
Penso em fazer exercícios, mas sou preguiçoso, troco a cama pela mesa. Depois de saciado, encosto o carrinho à porta, obedeço fielmente às orientações. A personagem Bela espreitada por olhos e mãos invisíveis. Nenhuma Fera me visita, mas tento manter-me ocupado. Basta ao homem viver um único dia de liberdade, os outros dias podem ser gastos com lembranças e reflexões. Li num romance existencialista. O autor também escreveu que um pedaço de jornal era bastante para ler e pensar. Felizmente tenho alguns livros.
Sonhei repetidas noites com o mar e supus avistar-me num dos barcos à deriva. O pesadelo apavora, acordo suado e com tremores. Acendo uma vela, pois a claridade súbita e forte de uma lâmpada elétrica me incomoda. Um dia me deixaram sem as refeições. Isso aconteceu uma única vez, não quero pensar que pode ocorrer novamente. Passei o dia inteiro olhando pelas janelas. Descobri que os vidros são blindados e não será fácil quebrá-los, caso eu resolva fugir. Alguns ruídos suspeitos me fazem supor que me vigiam.
Meu camarada não irá chegar. Não adianta imaginá-lo caminhando sob as árvores, transpondo os grandes despenhadeiros, o oceano e a cerca de arame farpado. Estou só. A memória dos livros me assalta de repente. Continuo ligado a esses objetos misteriosos e cheios de volúpia, que carrego comigo para onde vou, como a roupa do corpo. Do que mais sinto saudade é de uma vasta biblioteca. Meu discurso sobre a liberdade de imprensa e o direito de fazer humor com as instituições, debochando até do sagrado, me faz pensar num conto do russo Mikhail Artsibachev. Pouco lembrado e menos lido, ele se viu proscrito pela ditadura comunista, sendo um revolucionário. Caiu no esquecimento igual a centenas de outros escritores russos, cujos nomes e obras o regime apagou, após a revolução bolchevique. O toro de madeira. Eu o descubro em meio aos poucos volumes de uma prateleira alta, numa antologia com vários escritores.
O estudante Veriguin, deportado político, anda pelo meio da floresta em direção à casa onde o seu amigo Chutof, igualmente revolucionário e perseguido, vive seus últimos dias, sofrendo de tuberculose. O contato com a floresta desperta em Vereguin o sentimento de que todo esforço é vão e que bastaria ao homem recolher-se à natureza e levar uma existência contemplativa e de poucos sonhos. Essas digressões provocam o riso no jovem comunista e a certeza de que após três dias de recolhimento, seria acometido pelo mais paralisante tédio. Mesmo assim ele deita na relva, aspira o ar úmido e cheio de fragrâncias, observa borboletas e escaravelhos, o céu entre as copas das árvores. Reagindo ao torpor, se levanta e procura o caminho que o levará à cabana do amigo exilado.
Ao atravessar a clareira avista uma choça baixa, enfeitada com trapos coloridos, o telhado descendo até o chão. A estranha habitação, em meio ao capim e as flores, desperta sua curiosidade. Quando pensa em se dirigir à casa, percebe um velho de barbas longas, muito baixo, o corpo envergado, os braços longos, as mãos ultrapassando os joelhos. Ele pula no meio da vegetação, executa passos de dança, num ritual que parece cômico a Veriguin. O rapaz se esconde e aprecia a cerimônia, mas não resiste e sai do esconderijo, indo em direção ao velho. Ele se espanta que alguém invada o seu espaço inviolável, grita cheio de um medo feroz. Indiferente aos apelos, o bolchevique continua rindo e pede ao avozinho que não se zangue. O ancião entra na cabana e volta com um ídolo de madeira de feições toscas, levantando-o sobre a cabeça. Pronuncia algumas palavras mágicas, estranhando que o rapaz ainda não tenha sido fulminado por seu deus.
– Vai-te embora! Chau, chau... Kirmet, Kirmet!
O estudante finalmente compreende que chegara num lugar sagrado, onde os profanos não deviam entrar, e que o ancião procurava mandá-lo embora da clareira. Mas percebe apenas a comicidade do ritual e assume de propósito uma atitude ameaçadora. Num gesto insensato e tolo, saca o fuzil que carregava consigo e dispara uma bala no deus de madeira. Quando a fumaça se dissipa, o velho tenta levantar o deus quebrado e desfigurado, mas não consegue e foge. Veriguin continua sua jornada em busca do companheiro revolucionário.
Ele chega à choupana do amigo, encontrando-o à beira da morte e descrente dos valores que o levaram a passar um quarto da vida na cadeia. As pessoas já sabiam o que ele fizera ao velho e ao seu ídolo pessoal. Um amigo de Chutof, homem idoso e sábio, diz:
– Cada homem tem o seu ídolo. Não se trata de saber que ídolo ele adora. Não nos convém nem ao senhor, nem a mim, perseguir a religião alheia. Trate de sua religião e não se meta com a dos outros. Não se afaste do caminho do bem e, assim, será o servo do seu próprio deus. Não na igreja, mas no espírito.
Veriguin questiona o velho rude que aprendera a filosofar sozinho, pergunta a ele como alguém pode crer num toro de madeira. Afirma sua fé no homem, em todos os homens e na ideia de humanidade. O velho sorri condescendente e contesta:
– Não, o senhor está falando errado, não pode crer em cada homem, pois o homem é mortal, e mesmo durante a vida ele é insignificante... O senhor acredita, como todos nós, é na verdade e no bem. É a verdade e o bem que o senhor venera nos homens. Por isso é que, para o senhor, o homem é o toro de madeira.
O novo general que assumiu o poder resolveu dar continuidade à política de execuções sumárias, adotada durante o governo do general que o precedeu. Como tive acesso à informação privilegiada, tão importante para os subversivos perigosos?
A farda verde oliva, as quatro estrelas.
Visto-me de paletó como se fosse a alguma reunião, ou dar aula na universidade. O avô, o pai e eu seguimos a mesma carreira de professores. Só anos depois o pai entrou na diplomacia. Embaixadas na Argentina, no Uruguai e no Chile. A cada golpe militar, um novo endereço. Até exilar-se de vez no México, cidade para onde eu desejo ir, se escapar com vida.
Hoje, quando acordei, a porta estava aberta.
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