Entremez

Não sei de mais nada

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

12 de Março de 2019

– Você é o diretor do Baile do Menino Deus?

Quem pergunta é um homem com estatura mediana, cabelos claros, aparência de classe média. A maior concentração de pessoas brancas do Recife se encontra nos bairros de Casa Forte, Monteiro, Poço da Panela e Parnamirim.

– Sou, respondo.

Compro carne de sol num furgão, a um vendedor com aparência de índio. A feira orgânica, na praça idealizada por Burle Max em 1934 para ser o nosso primeiro jardim público, vende tudo o que se possa imaginar. De início eram poucas barracas, mas agora cresceu em metástases para todos os lados. O índio mostra pernis de carneiro e cabrito, linguiça de porco, queijos, ovos e manteiga.

– Vocês usam a Lei Rouanet?

O interlocutor quer conversa. Mal o olho, preocupado em escolher mercadorias de qualidade. Desde os sete anos faço as feiras de casa. Minha mãe me obrigava a trocar ou devolver o que eu comprasse errado ou sem qualidade. Cheirava as carnes e, se não gostava, exigia que eu voltasse ao açougue. Lembro a cara dos marchantes, a faca amolada na mão, o olhar irado. Dez anos de psicanálise não me curaram desse medo.

– Sim, usamos. Impossível produzir espetáculos sem a Lei Rouanet, mesmo sendo difícil captar recursos no Nordeste.

Falo ao índio que não vou querer o queijo artesanal. Ele mostra outros tipos e me dá as provas. Degusto, sorrio, agradeço. A jornalista Letícia Lins confessou-me que frequenta a feira para encher os olhos com a boniteza do índio e de um francês que fabrica queijos de cabra. Acho o nativo bem mais exuberante. Sem xenofobia.

Num domingo, levamos a neta a um carnaval para crianças, no Poço da Panela. Ela assustou-se com o papangu e a la ursa. Meu filho comentou que os únicos negros no evento eram os vendedores em barracas e carroças, as babás e alguns músicos da orquestra.

– Gosto de assistir seu espetáculo. Trabalha muita gente, nele?
– Pese um quilo da charque.

Mesmo sendo um substantivo masculino, ninguém diz o charque. Minha neta de três anos já se preocupa em definir o que é masculino e feminino. Mais adiante, terá de desaprender tudo.

Olho o interlocutor, suponho que não passa dos 45 anos. Ele tem certeza que enche o meu saco, faz isso com gosto e intenção, percebo pelo risinho de mofa e escárnio.

– Divida a carne de sol ao meio e ponha em dois sacos.

Despacho o sujeito com um palavrão?

Quiercles Santana me aconselha a não fazer isso. Sairei derrotado, além de perder a chance de esclarecer uma pessoa equivocada.

– No Baile, trabalham mais de duzentas pessoas diretamente com a produção. Fora os empregos indiretos. O espetáculo é gratuito, milhares de pessoas de todas idades e classes sociais assistem. E pela transmissão via Facebook se alcança muita gente.

– Eu assisto no Marco Zero, todo ano. E também vejo na televisão.

Uma orquestra de frevo pequena, que nem tuba possui, começa a tocar. A música agita os feirantes. Moradores de Casa Forte vestem camisas brancas e pedem mais segurança para o bairro. O professor Anco Márcio costuma caminhar na praça e sente-se bem mais seguro quando há fumantes de maconha nos bancos. Em algumas tardes, chego a contar sete grupos de maconheiros.

Alguns conhecidos me arrastam para um dos lagos – na verdade, são três espelhos d’água inspirados na proposta do Kew Gardens de Londres, que contribuem para o caráter pictórico e poético da praça –, onde os flanelinhas enchem os seus baldes e lavam os carros. Forma-se um círculo ao redor. Burle Max concebeu o jardim com espécies amazônicas, da Mata Atlântica e plantas exóticas. Abraçamos o tanque de vitórias-régias, gesto simbólico de apreço ao lugar que foi adotado por vários parceiros e já mostra os ganhos da adoção. Pelo menos a limpeza melhorou. Seria ideal acabar com a lavação de carros. Mas os pobres lavadores irão viver de que?

Pipocam fogos, posamos em fotos.

O bairro possui tradição de luta. Era o engenho da Casa Forte, propriedade de Ana Paes, uma mulher diferente e ousada, num tempo em que os homens achavam que mulher só devia sair de casa em três ocasiões: para se batizar, para se casar e para ser enterrada. Na casa de Ana, se abrigaram os holandeses que resistiam aos portugueses, durante a Guerra da Restauração, em 17 de agosto de 1645. As mulheres foram usadas como escudos, mas, mesmo assim, os patrícios venceram. Nunca resolvemos a nossa dúvida se teria sido melhor continuar com os colonizadores holandeses.

A festa prossegue com frevo, gritos de ordem e feirantes entregando compras. Em algum lugar, o prefeito é esperado. Retorno ao furgão do índio e me espanto ao dar de cara com o meu interlocutor.

– Ainda por aqui, pergunto?
– Tenho outras questões.

Nas décadas de sessenta e setenta, eu já teria fugido ou desapareceria numa Rural verde, com chances de nunca mais ser encontrado vivo.

– E Chico Buarque e Maria Bethânia, enriqueceram com a Lei Rouanet?

Estou sendo interrogado?

Pensei que as fake news seriam deletadas depois da eleição de Bolsonaro.

– Meu caro, desculpe, você não se apresentou.

Ele cala, eu falo.

– A BBC se deu ao trabalho de informar que Chico Buarque nunca captou recursos da Lei Rouanet. Bethânia renunciou ao projeto de um site, mas obteve recursos para um disco comemorativo dos 50 anos de carreira, acho que 1,1 milhão de reais. É o que informa a BBC. Se eles usarem a Lei, será justíssimo. Trata-se de dois grandes artistas, dos maiores de nossa música popular.

Pago a conta.

Enchi todos os meus sacos.

– E Luan Santana, e Claudia Leitte?
– Não sou da Justiça, nem trabalho em ministério. Por que o senhor não pesquisa como eu? Ninguém se dá ao trabalho de varrer o lixo e buscar a verdade lá embaixo. Todos preferem a superfície e acreditar nas mentiras.

Me afasto. Minha filha aconselha que eu não sinta raiva. Ouço os sabiás, assisto uma revoada de Bicos-de-lacre. Identifico algumas árvores, o pau mulato e o abricó de macaco. Os varredores juntam com estoicismo o lixo da noite. Sim, há beleza tropical em meio aos edifícios e casarões não habitados. Dois homens negros vendem mangas apanhadas com varas nos quintais alheios. Roubo? Não sei. Não sei de mais nada nesse país de equívocos.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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