Os sapatos do acordeonista dão sinais de uso, a sola gasta expõe as meias. Dentro da sala, ninguém que assiste ao trio de músicos repara nisso. Sentadas em volta de mesas, no jardim, outras pessoas se ocupam em conversar, comer crepes, beber vinho, espumante e uísque. Também há água, suco e calor amenizado pela refrigeração de alguns Split. Dedilhado por um rapaz jovem, o bandolim de 12 cordas parece um alaúde. O trio se completa com o pandeirista exímio, virtuoso, o corpo reagindo aos espasmos do pandeiro. De bossa nova a frevo, Sivuca a Armorial, o repertório empolga a pequena plateia, arranca aplausos e gritos. Um casal mais afoito dança.
– Essa agora é a saideira, anuncia o acordeonista.
Fecharam contrato de hora e meia e partem para nova jornada.
– Ainda vamos tocar no Iraq.
– Iraq, o que é isso?
A pergunta boia por um tempo, suspensa no riso dos artistas, que nada respondem. Em boca fechada não entra mosquito, melhor calar. Percebem o terreno onde pisam com seus sapatos de sola rota. A burguesia enclausurada do Recife não frequenta certos lugares. Quando o faz, segue em grupos, defendidos, tentando parecer underground.
– Tá difícil sobreviver tocando. O mercado retraiu e surge gente nova, todos os dias.
Um sanfoneiro comentou comigo.
Comove descobrir talentos anônimos, bons artistas, além dos que deixam a cidade e buscam sobrevivência em São Paulo. Aceitam cachês baixos, acompanham cantores e grupos de teatro, tocam em confraternizações e aniversários.
Nessa festa, os músicos foram bem-recebidos, ocuparam lugar de honra, comeram e beberam junto aos convidados. Não faz tempo, compositores como Haydn e Mozart entravam nos palácios pelos fundos e comiam junto aos empregados.
2
O filho da procuradora completa dois anos. Dizem que procuradores ganham mais de 30 mil reais por mês, além de outras compensações menores como auxílio moradia, seguro saúde, bolsa escola, duas férias anuais, etc. etc... Desocupados bombardeiam a gente com essas informações. Nunca descubro o motivo das fake news. O que desejam insinuar?
A festa de aniversário é bem simples, nada de ostentação. A música custou mil ou mil e quinhentos reais, incluindo o som. Contrataram um grupo de percussão com sete instrumentistas negros, que tocam samba, coco, maracatu e pontos de candomblé. Os convidados brancos não frequentam a periferia do Recife para ver grupos percussivos ou assistir a um toque de orixás. Nunca cruzei com essas pessoas no Bongar, na Xambá, no Estrela Brilhante ou Porto Rico, nem no Piaba de Ouro. Espanta ver como todos saracoteiam ao toque de bombo, gonguê, tarol, ganzá, atabaque, pandeiro e agbê dos batuqueiros, como sorriem vendo os filhos também saracotearem. Por instantes, chega-se a sonhar com uma democracia racial e social, a achar isso possível. Trata-se de uma ilusão provocada pela música, que se desfaz bem ligeiro.
Acendem as velas, cantam os parabéns. Para agradar aos convidados, servem dois bolos com sabores diferentes. As famílias brancas e as crianças de bons colégios deixam a casa de festas em seus carros e seguem para casa. Os batuqueiros desmontam o som e o transportam junto com os instrumentos até um carro velho, estacionado em frente. Terminou a festa, cada qual segue para seu mundo separado.
3
No evento com promotores de turismo no estado, acabo conversando com o grupo de marketing da secretaria para o assunto. Estranho como essas pessoas desconhecem as nossas manifestações culturais e percebo certo desprezo pelo que fazemos. Os cargos de gestão são geralmente concedidos a políticos, homens e brancos, os mesmos donatários da casa grande, alheios à nossa história.
Passo por mais um constrangimento.
– Esse aqui é Romero Britto, do Menino Jesus.
– Desculpe, me chamo Ronaldo Correia de Brito, e ele certamente se refere ao espetáculo que criei e dirijo, Baile do Menino Deus.
Gostaria de ser tragado por um buraco do Recife, mas piso solo firme e infértil.
– Eu sei, já assisti na televisão. Não é aquele com Angélica?
– Angélica de Luciano Huck? Não, não. Nem conheço essa senhora.
– Tenho certeza que vi. Ou será que me enganei?
O rapaz do marketing, que administra as contas da Empresa Pernambucana, me socorre.
– Acontece no Marco Zero, todo ano.
A mulher importante e de prestígio político, retoca o botox e escapa pela tangente.
– Lá eu não vou. É sujo e muito perigoso.
Me ofendo. E pensar que são esses que promovem o turismo.
– Não, senhora, é absolutamente seguro. Pessoas de todas as idades e classes sociais assistem ao espetáculo. O ambiente é tranquilo como a Praça de São Pedro, na missa de Natal.
– Mas é longe, moro em Boa Viagem.
Sou teimoso e insisto.
– Vá este ano, o Baile é sempre novo. Não existe festa natalina parecida em todo o Brasil.
A mulherzinha volta a retocar o botox e responde com desdém.
– Este ano não posso. Vou com toda a família para o Natal Luz de Gramado.
E arremata com o sorriso espástico pelo botox:
– Pra falar a verdade, sinto vergonha das coisas de Pernambuco.
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