Entremez

Excelsior Cabaré

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

08 de Abril de 2019

As garotas de Glorinha perfiladas igual a um concurso de debutantes

As garotas de Glorinha perfiladas igual a um concurso de debutantes

Imagem Reprodução

Circularam fotos com as garotas de Glorinha e a própria cafetina em meio a elas. Houve quem sentisse nostalgia desse tempo e propusesse que a casa noturna fosse reaberta. Tá brincando, companheiro? Os cabarés mais famosos do Crato eram os de Maria Alice, Vitorino e da opulenta Glorinha. Ficavam depois da estação ferroviária e da Praça Francisco Sá, onde ergueram a torre de um relógio e puseram um Cristo Redentor, imitando o do Rio de Janeiro. De costas para a cidade, olhava os bordéis além dos trilhos de ferro e do gesso empilhado para os trens cargueiros. Segundo as más línguas, os braços abertos indicavam: daqui pra frente tudo é puta.

Não era.

O lugar que assistia à chegada e à saída dos trens se chamava Barro Vermelho, por conta da coloração do solo, e foi habitado por gente humilde, trabalhadores do comércio, de oficinas e açougues. Próximo ao bairro de São Francisco, com igreja, missas e novenas, tudo na mais perfeita união.

Na década de 1950, em pleno centro do Crato, os letreiros de um sobrado anunciavam: Bar Tamandaré e Excelsior Cabaré. Escancarado como na Veneza Brasileira, onde o decadente Recife Antigo convivia com o seu pecado diurno e o seu noturno pecado, tranquilo, sereno e equilibrado.

A cidade cratense tinha vocação a ser paisagem nevada de cartões natalinos. No mês de dezembro, cobria-se de lã branca dos pés de barriguda, árvores nativas na região, altas, aprumadas, soberbas. Os frutos soltavam as plumas e o vento arrastava como se fossem flocos de neve. O prefeito mandou pôr todas as paineiras abaixo. Uma tristeza. Restou a fantasia nevada do gesso empilhado próximo à estação, aguardando o transporte para Fortaleza, de onde seria exportado em navios. As pedras brancas chegavam em caminhões da serra do Araripe, a maior produtora de gesso no Brasil. Quando os redemoinhos se formavam, o pó branco cobria as casas, um véu de alva pureza sobre os puteiros. De tão comum a mistura de prostitutas e gipsita, paredes de tijolos e estuques, ninguém falava “vou ao cabaré”, dizia apenas “estou indo ao gesso”.

À noite, os homens subiam aos lupanares. A pé, pisavam as lajes escorregadias das calçadas, se ocultando nas sombras dos postes de luz fraca. Eram recebidos com abraços e cerveja quente. Num quarto com bacia d’água e cama patente, gozavam os estertores proibidos no casamento cristão. Cheiravam o pó branco do gesso que recobria as putas, o mesmo gesso com que fabricavam as Virgens Marias dos altares de igrejas.

A casa noturna de Glorinha possuía bem pouco do glamour com que ainda sonham os nostálgicos. As meninas de 14, 15 ou 16 anos chegavam trazidas pelos próprios pais, por causa da miséria ou porque já não eram mais virgens, o que as condenavam ao status de mulheres perdidas. Ou elas mesmas procuravam as casas de prazer, se instruindo na arte de negociar o corpo. Ser virgem representava a condição para merecer respeito. O hímen violado fora do casamento facultava o acesso aos homens.

Bem diferente da antiga Babilônia, onde as mulheres entregavam sua virgindade em louvor à deusa Ishtar, padroeira da fertilidade. Isso escandalizou o historiador grego Heródoto, que escreveu: “Vejamos agora o costume mais vergonhoso dos babilônios. É preciso que cada mulher do país, uma vez em sua vida – normalmente antes do casamento – se una a um homem estrangeiro no templo de Ishtar. (...) Quando uma mulher está sentada ali, tem de esperar, para poder voltar a sua casa, que um estrangeiro lhe tenha jogado dinheiro nos joelhos e se tenha unido a ela no interior do templo. (...) Dá-se a soma de dinheiro que se quer e a mulher não tem absolutamente o direito de recusar o homem, pois o dinheiro é sagrado. (...) As que são belas e têm um belo corpo podem voltar rapidamente para casa; mas as feias são obrigadas a ficar ali por muito tempo. Algumas ficam lá por três ou quatro anos”.

A soma arrecadada pelas prostitutas sagradas não ficava com elas, era entregue ao templo. As religiões sempre encontraram maneiras de fazer bons negócios com a fé e a ignorância alheia. Criam mitos, dogmas, obrigações como o dízimo, enriquecem e enchem o bolso dos sacerdotes e pastores. Os templos dedicados à deusa Ishtar eram os mais populares e ricos. O dinheiro recolhido com a prostituição sagrada era emprestado a juros e talvez seja a origem dos bancos modernos. Cafetões e cafetinas do Crato ficavam com um percentual do ganho das raparigas. Os sites que administram as redes de prostituição, as saunas e as casas de massagem também procedem assim.

No Crato, os machos usavam uma expressão ignóbil para a violência: uma vez aberta a porteira, qualquer um pode penetrar. Em Aiuba, sertão dos Inhamuns, o delegado de polícia arrancou uma menina de sua família, alegando que ela já não era cabaço e sim puta, e que devia servir aos homens. Os rogos dos pais de nada valeram.

A prostituição sagrada (será que as motivações eram mesmo sagradas?) se esqueceu na Mesopotâmia e na Corinto grega. No Nordeste do Brasil, sua causa é social. A infância e a adolescência se perdem na luta pela sobrevivência, explorada pelos modernos sacerdotes, que se aproveitam da miséria para o comércio e o tráfico humano.

Glorinha promovia festas de debutantes com as suas meninas, todas trajando vestidos brancos, sapatos de saltos, bem penteadas, maquiadas, exibindo as joias ganhas dos amantes. Desfiles semelhantes aos da alta sociedade cratense, realizados no Crato Tênis Clube para as garotas que completavam 15 anos. Os pais ricos, desfilavam pelos salões com suas princesinhas. Noutro dia, com suas putinhas, pelas salas pequenas e quartos acabrunhados dos cabarés. Uma louvável farsa.

Nunca soube quem era o mestre de cerimônias de Glorinha. Seria o mesmo do Crato Tênis Clube? Fazia as perguntas tradicionais sobre livro de cabeceira, prato favorito e o maior sonho da vida?

Gostaria de conhecer as respostas. Qual era o sonho dourado dessas meninas mulheres?

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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