Entremez

Era mesmo assim. Continua assim para os mesmos

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

04 de Janeiro de 2022

Ilustração Rafael Olinto

Henry Koster, um súdito inglês nascido em Lisboa, classificaria o acontecimento que vou narrar como anedota. No seu livro Viagens ao Nordeste do Brasil, escrito na primeira década do século XIX, contendo ótimas crônicas sobre nossa região, várias narrativas ganharam formato anedótico. Aqui não se trata de História, apenas do relato breve de um fato engraçado.

Eu teria dez anos, talvez onze. Meus pais deixavam que os parentes me carregassem em todas as viagens. Talvez se sentissem cansados de criar oito filhos, numa casa onde moravam quinze pessoas, entre familiares e agregados. Assim, parti às três horas da madrugada com destino a Acopiara, uma cidade no sertão seco e quente do Ceará. A linha férrea ligando o Crato à capital Fortaleza funcionava desde 1926. Foi ao longo dessa ferrovia que se criaram oito campos de concentração na seca de 1932, os chamados Currais do Governo. Os trens se prestaram para transportar rebanhos humanos, que terminavam exterminados durante o confinamento, por fome ou doenças infecciosas.

Minha anedota não tem nada dessa vergonhosa tragicidade. Parti na companhia da esposa de um tio, irmão gêmeo de minha mãe, dois primos e uma prima. Da cidadezinha iríamos para a fazenda Riacho Verde, que tinha um açude, restos de caatinga virgem, criatório de gado e cavalos, cabras e carneiros e muitas aves domésticas. Era conhecida pela fartura e a barriga cheia dos seus donos. Nos anos de bom inverno, amarrava-se cachorro com linguiça e, nas secas, os paióis estavam abarrotados. Mas os trabalhadores agregados, sujeitos ao regime de meia, que entregavam ao dono das terras metade de tudo o que plantavam, sofriam as consequências das estiagens. E essa partilha semiescrava era mais amena no sertão do que nos engenhos da zona da mata.

Eu criança não cuidava nem tinha consciência de questões sociais. Só pensava em tomar banho de açude, andar a cavalo, comer fruta nos pomares. Ninguém aceitava minha companhia nas caçadas, porque corria à frente dos caçadores, espantando os passarinhos, desarmando fojos e arapucas, com risco de levar chumbo. Apesar do esforço em parecer igual aos outros meninos, já era um inadaptado. Nos meses de julho, ficávamos três semanas nessa vidinha de engorda e, quando falávamos em ir embora, o velho major Joaquim Neco, com sua patente honorífica, vinha com subornos.

– Fiquem mais uma semana, mando matar um boi. Vão fazer o que, no Crato? Deixaram menino de peito?

O assédio dirigia-se à filha, a esposa do meu tio. Ela nos olhava sondando nosso desejo, todos malucos para ficar.

– E aí, ficamos?

Ficávamos.

O boi de vinte arroubas era sacrificado.

O que fazer com tanta carne, com vísceras, gorduras, ossos, orelhas, sebo, mocotós, rabo, chifres? Num armazém anexo à casa grande acendiam um fogo e meu primo mais velho e eu nos fartávamos de churrasco. Os empregados se ocupavam com a salga e secagem das carnes, em fazer sabão com os sebos e gorduras, lavar buchos e tripas, preparar embutidos.

A matança tinha início pela madrugada. No almoço, servido bem cedo, travessas de iguarias cobriam a mesa grande, quase três metros. Empanturrado, eu olhava a comilança com náusea. Para quem seria toda a comida? queria saber.

Para os mesmos, os saciados de sempre.

Seu Joaquim Neco, moreno, atarracado, parecendo um índio Jucá ou Inhamuns, mastigava solene, olhando com ironia a esposa sentada na outra cabeceira. Mulher branca, de acentuada cifose, que a obrigava a olhar o chão como se procurasse objetos perdidos, os dentes gastos pelo bruxismo, investigava um prato e outro, insegura se alcançara o poderio matriarcal de vaca nutriz, alimentadora da família.

De repente, ela empurra para longe o prato onde comia, como se tivesse nojo do que as empregadas cozinharam. Camadas de gordura recobrem os assados e cozidos, o pirão e a panelada. Moscas, que enxameavam poças de sangue no matadouro improvisado, invadiam a sala de jantar e a cozinha. Duas meninas adotadas na casa, balançam panos de prato, afugentando os insetos.

A velha senhora dura e mandona parece em êxtase, o olhar perdido em lonjuras, uma baga de suor escorrendo pela testa. Apenas os maxilares se movem no seu corpo de coluna deformada. Gradualmente, todos são acometidos da mesma paralisia, não se escuta mais o tinir dos garfos e facas na porcelana trazida do Rio de Janeiro.

Preocupado, o marido chama a esposa, mas ela nem pisca, a cabeça enterrada nos ombros, os punhos cerrados sustentando a mandíbula.

– Pastora! ele insiste. Está pensando em quê?

Como se saísse de uma longa meditação ela olha o marido e responde:

– Ah, Joaquim, estou aqui pensando no que fazer pra janta.

---------------------------------------------------------------------------------
*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista
Continente.

veja também

Eu nasci naquela terra, não me leve para o mar

São João dormiu, sua festa não viu

O câncer da política brasileira