Entremez

Do armorial ao bregafunk

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

10 de Março de 2020

Participação de MC Draak no show do Estesia, durante o 'Rec-Beat' 2020

Participação de MC Draak no show do Estesia, durante o 'Rec-Beat' 2020

Foto Hannah Carvalho

Assisti à abertura do Festival Rec-Beat 2020, com o grupo sensório-musical Estesia e os convidados MC Draak e Marley. Para ser fiel à linguagem dos artistas em cena, chapei. O carnaval do Recife proporciona uma viagem pelo que há de mais novo e tradicional na cena brasileira.

Vendo o show e o clipe de MC Draak, Nike Jordan off white, em que o inglês se reinventa no idioma brasileiro, ou vice-versa, dei gargalhadas imaginando um papo entre Ariano Suassuna e Draak. No início do Manguebeat, o Mestre sugeriu a Chico Science trocar o nome para Chico Ciência, porque não aceitava o estrangeirismo. Me pergunto o que ele proporia a Draak, bem mais radical nos anglicismos.

Nunca soube o motivo da entrevista famosa. Chico escapou pela tangente e continuou Science. O Manguebeat aconteceu sem a ajuda da Secretaria de Cultura, sem Ariano e o Armorial. Da mesma maneira que o Tropicalismo sobreviveu aos ataques e vetos de Ariano secretário, proibindo que os tropicalistas se apresentassem nos teatros municipais, durante sua gestão.

Nike Jordan off white é o título do clipe mais recente de MC Draak, lançado, como os anteriores, no YouTube. Foi gravado num ferro-velho e custou apenas setecentos reais. O YouTube tem sido o espaço ocupado por artistas periféricos, o palco por onde eles se lançam e se mostram, são vistos por centenas de milhares de pessoas, consumidos em alta escala, mas sem retorno financeiro à altura. Clipes de bregafunk e trapbrega surpreendem pela linguagem, tomadas e cortes ousados, desfoques, takes curtíssimos, frenéticos, que rompem os padrões de tempo. Assisti-los causa estranhamento, desconforto ao se revelar um mundo que cobra o direito à sua representação, não apenas como música, dança, fala, imagem, mas também como espaço urbano, secularmente comprimido e reprimido, sufocado na claustrofobia da cidade que o ignora.

O bregafunk do Recife não surgiu nas pegadas de movimentos calcados em teorias e estéticas tradicionais, como o Armorial, que se inspira numa matriz popular e Ibérica, se fecha em conceitos e recusa qualquer diálogo com a cultura norte-americana. Não apregoa a antropofagia tropicalista, a fome em comer e processar todos os bens da cultura. Também não teoriza como o Manguebeat sobre o homem-caranguejo de Josué de Castro, propondo criar pontes entre lugares secularmente incomunicáveis. Não há discurso explícito, teoria filosófica ou política, o panfleto se constrói como num romance distópico, semelhante a Laranja mecânica; mostra-se através de imagens deformadas como a pintura de Bacon, em sexualidade explícita de corpos e palavras, agressiva porque é naturalmente agressiva.

Identifico uma latente genialidade no artista MC Draak, mesmo ele parecendo mais representação do que agente. Draak não olha o Recife de fora, está inserido no que faz. É produto do canal do Arruda, não nasceu na classe média, nem descende de senhores de engenho. Cresceu em meio ao lixo que entulha os canais da cidade, transborda e inunda as ruas às menores enchentes. Sabe o que significa um revólver apontado ao peito, conhece a violência policial, transita em meio a traficantes de droga, teve amigos mortos, mora em espaços exíguos onde a intimidade não se resguarda, se explicita.

A pobreza miséria não tornou Draak imune ao sonho de consumo, nem o protegeu do bombardeio da publicidade. Os garotos iguais a ele vivem e morrem por uma roupa de grife, tênis, boné, óculos, pulseira, colar, relógio, anel, perfume. Não vale a sulanca de Toritama e Santa Cruz. Precisa ser legítimo, a qualquer preço. Mesmo que acabem usando produtos falsos, produzidos no agreste pernambucano, onde a violência também é grife.

Vasculhando sem vacina o lixo de outdoors, uísques, drogas ilícitas, remédios de tarja preta, cigarros, maconha, roupas, butiques, anúncios em inglês, tecnologia em inglês, celulares em inglês, computadores em inglês e filmes em inglês, Draak inventa um dialeto para a poesia de suas músicas, metaboliza o inglês intoxicante sem qualquer pudor armorial.

Guimarães Rosa inventou um idioma no Grande Sertão: Veredas, neologismos de vários idiomas, embora predominem o português arcaico e as figuras de inversão. Geovani Martins, escritor carioca morador de favela, também cria uma linguagem dialetal. Draak, além da poesia e da música inventa personagens, cenas, teatro, filmes onde surge andrógino com inúmeras tatuagens, entulhado por elas como as ruas pichadas do Recife. Há semelhança entre o palimpsesto das paredes do Recife e o corpo tatuado de Draak. Ambos são marcados pela sociedade, sucessivamente pichados por ela, bombardeados e desmoronados sem piedade.

A periferia curte o bregafunk e dança o passinho. Em Casa Forte e Boa Viagem, bairros de ricos, também se escuta e dança o bregafunk nas festinhas, protegidas pela polícia. Draak rompe com os movimentos pernambucanos que mesclaram frevo, coco, maracatu e forró – a chamada música de raiz – ao funk, hip hop, rap, música eletrônica ou erudita. Ele e toda uma geração periférica, surgida em meio à miséria, ao abandono e ao lixo, não buscaram a tradição. Fundiram o brega ao funk, ou ao trap.

Seria o mais original de nossos movimentos?

Felizmente, não se trata de movimento.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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