Entremez

Diálogo à margem do tempo e da história

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

08 de Setembro de 2021

Vista do interior do Teatro de Santa Isabel

Vista do interior do Teatro de Santa Isabel

Foto Wilfredor/Wikimedia Commons

Prólogo
Um brilhante intelectual pernambucano (embora tenha nascido em Alagoas) está morrendo. Num leito de hospital, o arquiteto e historiador José Luiz Mota Menezes aguarda o instante em que sua vontade de viver o abandonará. Vou sentir-me órfão do amigo, que me ilustrava e esclarecia, o mais completo Google sobre o Recife.

Lembrei Jorge Luis Borges conversando com Macedonio Fernández num café de Buenos Aires e senti remorso pelo tempo perdido, o que deixei de andar por nossa cidade, na companhia do amigo José Luiz.

Há três anos, recebi a encomenda de um texto sobre o Teatro de Santa Isabel, para um livro que seria ilustrado com fotografias e alguns desenhos de Cavani Rosas. O livro demorou a sair e não correspondeu ao que imaginávamos.

O meu escrito foi dividido em três partes: um prólogo sobre a cidade onde o teatro foi edificado; um monólogo em que o teatro reflete sobre ele mesmo; e, por último, um diálogo entre uma atriz imaginária e o velho edifício neoclássico.

O projeto de catálogo conformou-se em apenas cumprir o contrato de alguma lei de incentivo à cultura. Minguado, o livro deixou de fora o terceiro dos meus textos, o que trata sobre a história do Santa Isabel. Nele, o teatro adquire humanidade e como um velho cansado e nostálgico fala de suas amarguras e frustrações.

Escrevi o texto publicado nesta coluna, imaginando José Luiz como o teatro e eu, como uma atriz curiosa por mistérios. Durante vários dias conversamos e as falas gravadas se transformaram nessa peça. Se tiverem paciência, leiam. Há revelações surpreendentes.

Diálogo
(A Atriz se enreda pelos mistérios do Teatro)

Teatro – Até que enfim, todos foram embora. Restaram apenas guardas vigilantes cochilando lá atrás, e os mortos vivos das ruas, abrigados sob o meu alpendre. A atriz saiu do esconderijo na torre, caminha em meio às trevas da plateia, onde antigamente as mulheres não podiam se acomodar, limitando-se às frisas e camarotes, na companhia dos familiares. Vestida de branco em meio às sombras, ela parece um espectro. Não será o fantasma da bailarina? Que importância tem, se for. O palco vive cheio de formas imaginadas, um delírio a mais não me incomoda.

Atriz – Você está aí?

Teatro – Quem ela procura? Talvez tenha marcado um encontro amoroso com alguém e supus que desejava falar comigo.

Atriz – Está, sim, eu sinto a sua presença. Não tenha medo, nem se esconda. Quero apenas conversar um pouco.

Teatro – Aparenta fragilidade, mas sabe o que busca.

Atriz – Posso sentar numa cadeira?

Teatro – Ninguém pede permissão, apenas senta. Melhor se ela fosse embora e me deixasse em paz.

Atriz – Há dias tento ficar sozinha com o Senhor. Posso tratá-lo por “você”?

Teatro – Não respeitam os velhos. Que mundo!

Atriz – Desculpe se pareço atrevida e mal-educada. Só consigo imaginá-lo feminino. Todos chamam você de Santa Isabel, um nome de mulher. Se eu digo “o senhor”, soa estranho, embora seja “o teatro”. O feminino desaparece, concorda?

Teatro – Até quando irei ficar calado, ouvindo tolices?

Atriz – Olhei o seu interior, curvas, dourados e cores, parece uma mulher enfeitada para um baile. Sei que alguns arquitetos e intelectuais brasileiros recusaram-se a reconhecê-lo como patrimônio histórico e artístico nacional, pois fugia ao colonial brasileiro, único modelo arquitetônico reconhecido como verdadeiro por eles. Seu estilo não interessava a Lúcio Costa, nem ao Iphan. Nem os neorromânticos, ecléticos e muitos outros. Foram condenados ao abandono, perdemos grande parte do patrimônio de nossas cidades por conta dessa babaquice conservadora. Demorou até que você entrasse na lista dos bens protegidos. Posso rir, ou vai continuar calado, fingindo não me ver? Sei que me escuta e avalia, nada escapa ao seu julgamento.

Teatro – Agora me transforma em juiz.

Atriz – As pessoas que decidem sobre os bens a serem tombados enxergam alguns monumentos e outros não. Ninguém de juízo pensa a cidade em isolamento hermético.

Teatro – Frase do americano Carl Emil Schorske. Estou correto? Ele também disse: arquitetura moderna, música moderna, filosofia moderna, ciências modernas – tudo se definia não como fora do passado, e infelizmente, às vezes contra o passado, mas na independência do passado. A mente moderna cresce indiferente à história, porque a história, concebida como uma tradição continuamente fomentada, tornou-se inútil para ela. 

Atriz – Bela lembrança, sua cabeça continua trabalhando. Já que lembrou a modernidade, aqui foi um lugar de emancipação das mulheres, de torneios poéticos entre poetas. Há musas e deusas enfeitando você. No saguão, a estátua de Euterpe, musa da poesia lírica e da música. No teto, pinturas das deusas Atena e Ártemis.

Teatro – Eram os costumes neoclássicos, a moda.

Atriz – Ah, finalmente dialoga comigo. Pensei que ia me ignorar a noite inteira. O que acha de gravarmos a conversa?

Teatro – Não faça nenhum registro, apenas escute.

Atriz – Uhn! Pelo menos, posso fazer anotações?

Teatro – Se conseguir isso, no escuro...

Atriz – Acendo a lanterna do celular.

Teatro – Luzes, novamente elas.

Atriz – Um pequeno foco, não incomoda, juro. Vamos! Como era antes da chegada do conde Maurício de Nassau e dos holandeses? Fale desse tempo mais para trás.

Teatro – Não passava de um terreno vazio, que o Capibaribe de vez em quando alagava. Num recanto, perto de onde existe a Ponte Buarque de Macedo, funcionava uma olaria. Por volta de 1608, os franciscanos ergueram um pequeno convento, tão pequeno que se resumia ao que hoje é o claustro e a capela mor do Convento da Ordem Primeira. O restante era apenas vazios, planuras de águas, alagadiços, gamboas, mangues e areias. Mais adiante, na densa floresta atlântica de Pernambuco, havia o que descreveu o Padre Anchieta sobre o Brasil: um jardim em frescura, onde não se via todo o ano árvores nem ervas secas. Os arvoredos, de admirável altura, iam às nuvens. Muitos com bons frutos, outros com passarinhos de grande formosura e variedade.

Atriz – E quando chegaram os membros da Companhia das Índias Ocidentais, o que mudou?

Teatro – Continuava o mesmo vazio com apenas oito casinhas e a pequena fazenda de um criador chamado Pedro Álvares. Não existiam pontes, as pessoas atravessavam até a península, onde funcionava o porto, por meio de barcos. Os holandeses criaram o sistema americano de cordas para ajudar na travessia. Passou-se um grande cabo de onde hoje é a Rua do Imperador até a Madre de Deus. Uma balsa era amarrada a ele e puxada com varas.

Atriz – E Maurício de Nassau, o governador holandês, de que maneira ele usava o espaço que agora é seu?

Teatro – Ah, minha cara, bem pertinho de onde estou erguido, ele construiu seu palácio de despachos, cuja fama correu o mundo nos escritos de Gaspar Barleus, um dos muitos artistas, intelectuais e homens de ciências trazidos pelo conde, ao Recife. Não se tratava de um palácio imenso, como a imaginação do povo criou, mas um edifício cuja sala era do tamanho da antiga morada do conde, na casa que pertencera a Pedro Álvares. Nassau era na verdade germânico e trouxe para a nossa cidade as cortes alemã e holandesa. Junto ao seu palácio, havia um jardim e um haras. Num alagado, que corresponde ao terreno onde eu fui erguido, ele criava peixes. É bem prosaico tudo isso, não acha?

Atriz – E quando os holandeses foram expulsos?

Teatro – A minha ilha, a de Santo Antônio, passou a ser ocupada. Porém o espaço retornou ao vazio.

Atriz – O poeta Carlos Pena Filho escreveu num poema que do sonho dos homens uma cidade se inventa. Do sonho de quem você foi inventado?

Teatro – Sobretudo da burguesia recifense, dos comerciantes ricos. Os senhores de engenho viviam em suas propriedades nos interiores e, mesmo possuindo casas na capital da província, não partilhavam esse gosto tipicamente burguês de consumir teatro, recitais e óperas. Na atual Rua do Imperador funcionava um teatro de vaudeville, ao estilo francês, mas a sociedade do século XIX sonhava com algo mais sofisticado e chique. Sempre fomos orgulhosos do passado, de nossa importância na formação do Brasil. O Padre Fernão Cardim se impressionou com a opulência da capitania, no século XVI, e escreveu que em Pernambuco acha-se mais vaidade que em Lisboa. 

Atriz – Fomos tanta coisa antes de nos transformarmos nessa cidade. Uma planície aluvial, ilhas e manguezais, a Ribeira de Mar dos Arrecifes dos Navios, o território do povo tupi caeté, que expulsou os antigos tapuias do litoral, e muito, muito mais. Esqueça o que não se refira a erguer um teatro. Fale apenas da vontade se transformando em força motriz, empreendimento e construção.

Teatro – Você exige de minha memória. Meus neurônios já pegaram fogo uma vez, e neurônios não se refazem, é preciso substituí-los por outros.

Atriz – Ah, ah, ah, continue, por favor!

Teatro – Havia o usuário, com a vontade, e quem poderia construir, com o dinheiro. Os usuários eram os comerciantes, a nossa burguesia. Eles sonhavam com uma bela casa de espetáculos, mas isso só se materializa graças a um jovem político, que vai à França e vê a construção de grandes teatros, assiste a óperas e concertos, participa de festas galantes e imagina trazer esse esplendor ao Recife. 

Atriz – Quem é o visionário e em que ano nós estamos?

Teatro – Francisco do Rego Barros, barão, visconde e, mais tarde, o conde da Boa Vista. Todos os títulos alcançados por mérito, nunca comprados, como costumava acontecer. Nasceu no Engenho Trapiche, Cabo de Santo Agostinho, filho de família tradicional e abastada. Com apenas 15 anos alistou-se militar, mas era um homem moderno, liberal e visionário. Tinha 19 anos, em 1821, quando participou da Revolução de Goiana, uma das muitas insurreições acontecidas aqui. Preso até 1823, na Fortaleza de São João da Barra, em Lisboa, depois de libertado, viajou à França, onde bacharelou-se em Matemática, pela Universidade de Paris. Tornou-se presidente da Província de Pernambuco, de 1837 a 1844, período em que começou a minha construção.

Atriz – Temos uma avenida com o nome dele. Bem justa a homenagem.

Teatro – Decidido a modernizar e higienizar a capital pernambucana, ele operou transformações materiais e culturais importantes para a província. A vida da cidade ganhou em animação e teve um progresso nunca visto. O Brasil não dispunha, na época, de profissionais qualificados, como engenheiros e arquitetos, nem sequer pedreiros ou carpinteiros. Para viabilizar o seu plano de governo, Rego Barros promoveu a vinda de inúmeros profissionais europeus, sobretudo franceses, engenheiros, matemáticos, técnicos e operários, entre eles, Louis Léger Vauthier, responsável pela execução do projeto do novo teatro. O francês chegou ao Recife em setembro de 1840 e começou a me construir no mês de abril de 1841. Em seu curto governo, Rego Barros elevou o Recife ao conceito das grandes cidades modernas da época. 

Atriz – Agora sou eu que peço calma. Respire, não consigo processar tantos dados de uma só vez. 

Teatro – Rego Barros tinha a cabeça cheia de informações da vida parisiense e tomou um susto ao deparar-se com a província. Era sonhador como o nosso ex-presidente Juscelino Kubistchek, uma figura transformadora, dessas que aparecem de tempo em tempo, desejam o melhor para a sociedade e lutam para alcançar isso. Mas sonhar sozinho não leva ninguém à concretização dos sonhos. Ele teve o apoio da classe burguesa e de alguns donos de engenhos, mas sobretudo dos comerciantes, que lutavam por melhorias no Recife. Os senhores feudais escravocratas, que pregavam a separação de classes e queriam as praças cercadas de grades, não eram os mais empenhados na minha construção. 

Atriz – Então você surge como um projeto liberal, que vai colocar o teatro e a música ao alcance de todos? 

Teatro – Não seja ingênua, nem me faça rir. Eu não era nada disso que você se acostumou a ver nos últimos anos, uma casa de espetáculos aberta ao povo, onde basta pagar um ingresso para assistir qualquer espetáculo, ou mesmo entrar de graça, como acontece boa parte das vezes. Só membros de uma sociedade exigente e sectária podiam ver os espetáculos encenados no meu palco. 

Atriz – Não bastava ter o dinheiro e comprar o ingresso? 

Teatro – Não! Era necessário poder adquirir o ingresso e ter representatividade, ser alguém no mundo social. Numa das estampas da época, aparecem duas figuras sob o meu pórtico, olhando a atual Praça da República. Elas estão vestidas na melhor moda da França ou Itália, como se Paris, Roma ou Milão tivessem se instalado nos trópicos, copiadas pela burguesia comerciante. Os ambientes que cercavam os teatros da Europa passaram a me cercar aqui na cidade, numa cópia transposta. Recife não possui os grandes jardins de Paris, mas tem muitas praças e uma louvável unidade arquitetônica que está se desfazendo pela especulação imobiliária, abandono dos antigos moradores e descaso do poder público. 

Atriz – Sei que não gosta de lembrar, nem permite que se fale disso, porém... tanto trabalho e dinheiro gastos para logo, logo... 

Teatro – Toda a estrutura de palco, camarotes e camarins foi projetada por Vauthier e executada em madeira, o que facilitou o incêndio, em 19 de setembro de 1869, poucos anos depois de eu ser inaugurado. Uma lástima. Ficaram de pé apenas as paredes laterais de alvenaria, o alpendre e o pórtico. O resto ardeu no fogo, esse que purifica e também destrói. 

Atriz – Não foi um castigo merecido pela soberba de acolher apenas os ricos e poderosos, deixando o povo ao longe, sempre ao longe? 

Teatro – Pare de falar asneiras. Vauthier era um socialista de ação, seus projetos visavam ao social, ele chegou a ser preso na França, quando retornou do Brasil, por conta de suas ideias. Mas nada de socialista foi lembrado quando ele me projetou. Sou um raro exemplo da genuína arquitetura neoclássica da primeira metade do século XIX brasileiro. Construíram-me para uma classe diferenciada, nunca para o povo. Já lhe afirmei isso. Quando me inauguraram, fazia apenas 33 anos da Revolução de 1817, que pregava os mesmos ideais da Revolução Francesa, igualdade, fraternidade e liberdade. Não imagine absurdos, meu incêndio foi casual. Talvez uma atriz ou um ator como você bateu num dos candeeiros que me iluminavam, causando o acidente. Como tudo era de madeira, rapidamente o fogo alastrou-se. Não existia um sistema de contenção de incêndios como hoje, as chamas eram apagadas com baldes de água. Queimaram camarins, forros, palco, camarotes, frisas, poltronas... Sobrou apenas a alvenaria. O sonho se desfez em horas, o teatro se transformou num buraco. Mas o saldo do incêndio foi positivo, porque, ao ser restaurado, eu cresci em altura, ganhei um andar. A divisão interna dos ambientes e a caixa de palco mantiveram-se iguais ao que eram antes. Continuei sem espaço para as grandes montagens de dança e ópera, com uma orquestra bem reduzida. Uma pena. 

Atriz – O prédio original viveu apenas 19 anos. Me fale da reconstrução. 

Teatro – Vauthier, durante a estada em Pernambuco, sofreu acusações de improbidade, desmandos e perseguições. Esses ataques eram reflexo da campanha política contra Francisco do Rego Barros, responsável por sua vinda. Vauthier não suportou por muito tempo a falta de apoio, depois que depuseram o presidente da província, em 1844, e retornou a Paris, em 1846. Mas ele nunca perdeu o contato com o Brasil. De longe, através de correspondências, orientava a construção de obras públicas e privadas, meu término e, depois do incêndio, minha reconstrução. 

Atriz – Sua história é incrível, expõe as contradições da sociedade pernambucana, entre conservadora e liberal, mais escravocrata e conservadora do que liberal.  

Teatro – Há um fato que nós precisamos analisar com atenção. Vauthier era adepto do fourierismo, uma teoria de organização social idealizada pelo filósofo e sociólogo francês Charles Fourier. Influenciado pelas ideias de Jean Jacques Rousseau, ele acreditava que seria possível reorganizar a sociedade através da criação de falanstérios, comunidades cooperativas e autônomas. Essa escola diferia do socialismo marxista por acreditar que a revolução se consolidaria com a boa vontade burguesa, de forma pacífica. Curioso como tudo faz lembrar as revoluções pernambucanas de 1817 e 1824, conspirações de intelectuais, do clero esclarecido e da burguesia, que não contemplava os escravos negros, por receio de levar os senhores de engenho à falência. A mesma conversa de sempre. Vauthier trouxe ao Recife e ao Brasil o socialismo amoroso, mas projetou-me como um teatro de elite, para os privilegiados de sempre. 

Atriz – Nos seus primeiros anos de funcionamento, como as pessoas chegavam até você? 

Teatro – A vinda de Nassau transformou o Recife numa cidade portuária. Depois que os holandeses incendiaram Olinda, os senhores de engenho deixaram de acreditar que ali se tratava de uma fortaleza e que, por ser alta, ninguém conseguiria sitiá-la. Recife começou a ser cobiçado como um lugar de moradia. Com a abertura dos portos promovida por Nassau, muitos comerciantes se instalaram aqui, pessoas que chegavam com ideias novas e progressistas. Recife ganhou ares de metrópole, é verdade que bem mais nas ideias do que na dimensão física. O crescente interesse pelo comércio levou ao parcelamento dos engenhos funcionando às margens ou nas proximidades do Capibaribe, como os de Casa Forte, Madalena, Cordeiro, Monteiro, Apipucos, Torre... Surgiram cerca de 80 grandes solares de novos ricos. Infelizmente, bem poucos sobrevivem de pé, alguns conservados e outros caindo. 

Atriz – Precisamos de um novo ciclo de melhorias urbanas e sociais, de embelezamento da cidade. 

Teatro – Logo que fui construído, não existiam todas as pontes de hoje. Um morador de Casa Forte que desejasse assistir a uma opereta atravessava riachos ou braços de rio para chegar até aqui. Quem vinha da Várzea, enfrentava muita água. O mais prático para os moradores dos solares era vir de canoa. Os casarões possuíam atracadouros de barcos, os trapiches, com argolas de amarração. As embarcações traziam o ilustre público e o levavam de volta ao final dos espetáculos. Havia uma intensa navegação fluvial no Recife. Imagine as canoas deslizando pelo rio numa noite escura, carregando as pessoas à luz de archotes. Romântico, não? Embarcados, a cavalo, em carruagens ou a pé, todos encontravam uma maneira de chegar até aqui. Com a construção de mais pontes e a melhoria do transporte público, o acesso se tornou fácil. Porém, nos primeiros anos, eu assistia à chegada de muitas canoas, ali atrás, nos fundos do palco, onde corre o Capibaribe. Ancoradas, as canoas esperavam os donos, como se fosse uma praça de táxi. 

Atriz – Quais seus sentimentos por ter significado tanto para a história do Recife, de Pernambuco e do Brasil? 

Teatro – Houve um tempo em que eu era muito orgulhoso de mim e do engenheiro que me projetou. Vauthier não pôs suas ideias socialistas em prática, mas servi de espaço às lutas sociais. O povo humilde e os escravos não entravam no meu recinto, mas eram defendidos aqui dentro. Parece um contrassenso. Dói constatar que perdi a importância e a altivez ao longo do século XX. 

Atriz – Não se trata de ranço elitista? Será que você sonha em continuar inacessível ao povo, servindo apenas à classe privilegiada? 

Teatro – Não, não, por favor, não me julgue assim. Lamento deixar de ser o espaço onde se defendiam as ideias mais avançadas do país e tornar-me apenas uma casa de divertimentos ou de exibição de partidos políticos. Não desconsidero as peças teatrais encenadas no meu palco, como Morte e vida Severina, Macunaíma, Os fuzis da senhora Carrar, que tratam da luta dos povos em defesa da democracia contra o fascismo, ou Casa de bonecas, que denuncia a exclusão das mulheres na sociedade burguesa. Todo espetáculo, de música, dança ou teatro, guarda nele um barril de pólvora. Me refiro a ter sido uma arena dos ideais abolicionistas e republicanos. Depois me tornaram um lugar de jantares, almoços, festas e diversões, o que eu menos queria. Felizmente isso passou há bastante tempo. Fizeram o mesmo com o Municipal do Rio, que se prestava a escandalosos bailes de Carnaval. Hoje, formo um conjunto simbólico, o da Praça da República, com os palácios do Executivo, do Judiciário e o Liceu de Artes e Ofícios. Sou um prédio a mais, já não me consagram a mesma importância do século XIX. 

Atriz – Parece um velho nostálgico e ranzinza. Vive lotado de público, quase não tem pautas por conta da grande procura, todos suspiram diante de sua beleza. Mesmo assim, não para de se queixar. 

Teatro – É possível. A velhice traz reumatismo, vista cansada, dores nas costas e muito queixume. Deixaram de lembrar de mim nas datas históricas, nos aniversários dos movimentos que começaram entre essas paredes. Magoa, entristece.  

Atriz – Compreendo. 

Teatro – Minha vida não difere da sua. Vivi tempos de milagre, de sacrifício e ressurreição. Quando comecei a funcionar como teatro, eu recebia aqueles que tinham me sonhado e erguido, uns poucos privilegiados. Depois essa sociedade foi substituída por outra, abri-me a um novo público, a pessoas que antes nem sonhavam transpor minhas portas. Por ironia, realizei a revolução pacífica, o ideal político de Vauthier, que não teve coragem de pô-lo em prática no século XIX. Os que agora entram nessa casa se apropriam dos bens de cultura criados para todos. 

Atriz – Bravo! Que conclusão bonita! 

Teatro – Contemplo a Praça da República, o antigo Campo de Honra, onde foi consagrada a bandeira revolucionária de 1817. Vejo longas filas de gente simples, aguardando a hora de assistir aos espetáculos, e acredito que, pelo menos no meu espaço, o mundo se tornou mais igual e justo. 

Atriz – Não sei se é verdade, porém gosto de acreditar nisso. Precisamos crer em algo. Concorda? O que houve, está chorando, vai ficar silencioso novamente? Desculpe, abusei do seu tempo, amanheceu. Não escutei nenhuma cotovia como em Romeu e Julieta, apenas aumentou o barulho de carros. Nenhum encanto sobrevive a essa realidade. Olhe para mim, já não pareço um fantasma. À luz do dia, a mágica se desfaz, igualzinho a quando se apagam as luzes no palco e os atores e atrizes assumem novos papéis. Chateou-se? Não vai mesmo falar comigo? Adeus! 

Teatro – Melhor ficar em silêncio. O que posso dizer? O palco continua à espera. Todos se foram, não resta ninguém. Porém todos continuam aqui. Se ela não tivesse partido, com a pressa de jovem atriz, eu lhe falaria os versos do poeta Cesar Vallejo. Quando alguém vai-se embora, alguém permanece. O lugar por onde um homem passou, nunca mais será ermo. Somente está solitário, de solidão humana, o lugar por onde ainda nenhum homem passou. 

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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