Entremez

Depois do baile

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

07 de Janeiro de 2019

Cena do espetáculo 'Baile do Menino Deus'

Cena do espetáculo 'Baile do Menino Deus'

Foto Hans Manteuffel/Divulgação

Só reparei na família de pé na calçada, quando o homem me cumprimentou com boa noite e em seguida desejou feliz Natal. Já passava das 22 horas, a neta de 3 anos dormia no meu braço e a filha carregava no colo uma bebê de 4 meses. Tínhamos pressa em chegar ao carro, estacionado numa das ruas próximas ao Marco Zero. Em casa, nos esperavam para a ceia. Exausto, eu só desejava a cama e algumas horas com o corpo na horizontal.

– Posso apertar sua mão?

Era o desconhecido, tentando se aproximar de mim.

Observo que é branco, alto, forte, a aparência de estrangeiro. Ao seu lado, uma mulher bem-vestida – também alta e branca –, crianças e um casal da minha idade. Imagino serem a esposa, os filhos e os sogros do desconhecido.

– Sim, por favor, respondo e estendo a mão, temeroso de acordar a neta.

O Baile do Menino Deus acabara havia pouco tempo. A praça e as ruas ainda estavam cheias de gente que viera assistir ao espetáculo, talvez porque não quisesse ficar em casa para a tediosa ceia regada a vinho, chester, farofa e selfies. Nos países frios, é comum ir-se ao teatro na noite de Natal. As companhias de dança oferecem a Suíte Quebra nozes, de Tchaikovsky. O grupo Cisne Negro, de São Paulo, mantém a tradição no Brasil. Aqui no Recife, nosso The Nutcracker talvez seja o Baile do Menino Deus.

Sempre que contemplo a multidão assistindo ao Baile, lembro a Praça de São Pedro, onde o papa reza a Missa do Galo para milhares de fiéis do mundo inteiro. As pessoas escrevem e se candidatam a uma vaga na seleta plateia. Os que não têm a graça de ser sorteados, acompanham a solenidade pela televisão. Mesmo com o catolicismo em baixa e o Papa Francisco sendo considerado um inimigo do novo governo brasileiro, a missa ainda é um sucesso.

Acomodo a neta no braço e aperto a mão do interlocutor. Não tenho receio quando me abordam na rua, o que vem se tornando cada dia mais frequente. Também não aceito tornar-me refém da cidade onde moro, nem alimento a paranoia gerada pela violência. Quando o medo for mais forte do que a coragem, vou me fechar numa clausura de carmelitas descalços.

Ainda existem esses eremitas da Bem-Aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo? Certamente, não. O sucesso das igrejas evangélicas decorre da oferta de uma vida social, um espaço comunitário de fala e inclusão, o que os católicos e as políticas públicas oferecem bem pouco. A vida silenciosa e monástica é impensável nos novos tempos pentecostais e neopentecostais.

– Queria lhe pedir perdão.
– A mim?

Reparo no homem à minha frente. Será louco?

– Primeiro em meu nome, por tudo o que falei mal dos nordestinos e fiz contra eles.

A neta se inquieta no braço, ameaça acordar. Minha filha abriu o carro e acomoda a bebê na cadeirinha.

– O que é isso?, pergunta estranhando a conversa insólita.
– Sou paulista.
– Adoro São Paulo, digo. Se não vivesse no Recife, moraria lá.

Dou sinal de que preciso ir embora.

O homem ainda tem coisas a dizer e me retém.

– Também peço perdão em nome de todos os paulistas que maltratam os nordestinos. Compreendi o Nordeste vendo o seu espetáculo. Vocês são diferentes. Muito obrigado por essa revelação.

De volta à casa, onde nos esforçamos por oferecer aos filhos e netos uma ceia sem chester e selfies, a filha capricorniana e racional diz que eu preciso contextualizar o diálogo com o turista. Não gosto de neologismo, nem do verbo contextualizar.

– O homem estava impressionado com o espetáculo e com seu discurso.
– E eu discursei?
– É claro que sim. Faz isso toda noite, sobe ao palco pra desejar feliz Natal ao público e aproveita pra dizer outras coisas.

É verdade, nunca me contenho. Digo que no Nordeste do Brasil se guardaram tradições de Portugal e Espanha nas brincadeiras populares. Nosso isolamento possibilitou isso. Os povos negros e índios contribuíram com suas culturas e, durante anos, transformaram o que aprendiam com os brancos, num jeito próprio de brincar. Um milagre antropofágico, uma ceia carnal, a nova missa. O que chegou do Oriente e do Ocidente, da África, Europa e Ásia, já trazia séculos de teatro, poesia, dança e música. Os modernistas de 1922 tentaram descolar o pé dessa tradição, criar uma arte rompida com o passado, como se nada que fosse antigo prestasse. Nós, das bandas de cá, felizmente não fizemos essa ruptura. Gilberto Freyre, muito inteligente e perspicaz, propôs um movimento regionalista, tradicionalista e também modernista.

Antes que minha filha se defenda dos argumentos, tomo a dianteira e falo.

– Nunca saio com a conversa de “autêntica cultura brasileira”, isso é papo furado. Qualquer cultura é autêntica e viva, desde que esteja em mobilidade, aberta a todas as influências. O que reconheço é que cada região brasileira tem maneiras próprias de se expressar. Nós do Nordeste mantemos um diálogo com a tradição até chegar ao novo. Não precisamos matar o pai como na psicanálise. O manguebeat não cuspiu em cima do maracatu de baque virado. Ao contrário, foi na batida, incorporou o ritmo. Estava na alma do grupo, na vida em comum. Afirmar nossas particularidades não é dizer que somos os melhores nem os mais verdadeiros. Queremos apenas que nos deixem criar. Fora com o slogan babaca “orgulho de ser nordestino”. Basta ser nordestino, isso se estampa na cara. Não fomos nós que dividimos o Brasil em regionalistas e universalistas. Nem criamos categorias para os prêmios musicais, estabelecendo que Alceu e Elba concorrem na categoria regionalista e o pessoal do pagode carioca na categoria geral. O apartheid foi inventado por quem?
– Está perguntando a mim?

A filha capricorniana não me dá moleza.

– Sei lá. Acho que estou falando pro cara de São Paulo. Às vezes, parece que somos outro povo.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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