Entremez

Há muito espaço, só não tem lugar para vocês

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

03 de Setembro de 2020

Frame de 'Sonhos', de Akira Kurosawa (1990)

Frame de 'Sonhos', de Akira Kurosawa (1990)

Foto Reprodução

Alguém anda pesquisando sobre a produção de sonhos durante a pandemia. Há meses mergulhamos num silêncio ideal para desreprimir o inconsciente, apesar de convivermos com a ansiedade e o pânico. Memórias antigas, guardadas no esquecimento, afloram, tornam mais inquieto e confuso nosso presente. 

Sonho com frequência, preciso de um esforço para me acordar e sair da intrincada malha de conteúdos oníricos, que depressa esqueço e, se lembro, não consigo interpretar. São recorrentes as imagens de casas em ruina, rios, lugares ocultos em florestas, abismos de onde contemplo extensões de água. Sinto-me pequeno, amesquinhado, inseguro e incompreendido. Acordar é sempre um alívio.

Eu podava uma buganvília, que crescera sobre uma árvore. Estou na parte mais baixa do meu sítio, uma serra longe, onde não vou desde o início do isolamento. Percebo, no furor de jardineiro, que separei as raízes da trepadeira do solo e que ela perdeu o vínculo com a terra, os galhos se enroscam na árvore e as raízes formam uma touceira suspensa. E agora? me pergunto angustiado. Como a planta conseguirá água e nutrientes? Talvez sobreviva parasitando. Mas as buganvílias não são parasitas. 

Subo na árvore para ver o meu crime de perto. No meio das folhagens, deparo-me com um ninho de pássaro. Dentro dele, uma serpente enroscada. Procuro identificar a espécie do réptil escuro e brilhante. Confundo-me.

No dia anterior, ao ler um convite para a live onde seriam anunciados os nomes dos semifinalistas do Prêmio Oceanos, senti-me estranho ao mundo da literatura, como se nunca tivesse pertencido a ele. Viagens, feiras, salões de livros me escapam como os sonhos recorrentes, onde uma casa em estilo arte décor aparece camuflada entre arbustos, iluminada como se fosse o cenário de uma peça de teatro. A sensação de deslocamento me deixou inquieto e pensei em conversar com o meu editor, Marcelo Ferroni, mas logo desisti. Lembrei o poema “Labirinto”, de Jorge Luis Borges, e a certeza de que nunca haverá uma porta. Repeti os versos: 

“Não existe. Nada esperes. Nem sequer 

No negro crepúsculo a fera.”

Falta ao poema a afirmativa de que estamos só. Irremediavelmente sozinhos. Isolados no isolamento. 

Vivemos ameaçados pelo espectro de um vírus e pelo fantasma do desgoverno. O vírus foge ao alcance de nossos olhos, se manifesta como doença, muitas vezes mortal. Lembra a peste negra e a gripe espanhola. Imparcial, escolhe aleatoriamente suas vítimas. O terrorismo do desgoverno, praticado pelos poderes executivo, legislativo, judiciário, econômico e social, agride e fragiliza nossas escolhas. Abala a convicção de que a ciência e a arte não são um escritório, são o Monte Parnaso sob um céu infinito, no qual sempre há espaço, no qual há lugar para todos os talentos da história da humanidade, desde que os poderosos não apareçam lá com seus frutos secos, conforme escreveu Vassili Grossman.  

Acordo, penso no Brasil, na força despendida para nos exterminar, nos métodos do ódio político aplicados nos últimos anos. Lembro a serpente indecifrável, pronta para o bote. 

Retorno ao sonho, às raízes separadas da terra. 

Elas me propõem um enigma, que eu imaginava já haver decifrado. Reconheço com alegria as novas frentes de batalha, os conflitos, as tribos e as incertezas. Não há mais proprietários exclusivos da fala, todos são donos da fala. Ela não mais pertence apenas às academias, nem aos sujeitos de suposto saber. Todos são supostos saber. Os jargões da psicanálise, de Freud e Lacan, se infiltraram na sociologia, numa nova sociologia. 

Tudo é novo, o velho desenraizou-se, perdemos as referências. A cultura estabelecida foi ao beleléu. Podem me xingar à vontade, lancem-me tomates podres. Não sei de nada. Ninguém que pensava saber alguma coisa, sabe de alguma coisa. Foi vão meu aprendizado, à direita e à esquerda e ao centro cospem no que me ensinaram. X senhxrx sabe, x senhxrx compreende, x senhxrx leu, x senhxrx assistiu. Substituam as vogais “a” e “o” por “x”. Vamos abolir “o” e “a”. X poesia deixou x Parnaso e ganhou xs ruas, xs morros, xs periferias, cria-se e multiplica-se em Whatsapp, Instagram, Twitter, Facebook, Youtube.  

O coronavírus e seu cortejo de mazelas instalam-se como eternidade no mundo provisório. A única certeza é a da morte, repetem. E a de que o mundo nunca mais será como era antes. Os sonhos brotam contaminados. Precisamos dar conta dos medos e por isso sonhamos. O presente buscava interpretação no passado. Buscava. 

Sonhamos. Não existe Delfos, nem pítias. Somos nosso próprio oráculo.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente. 

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