Numa primeira impressão, não estamos tão longe do Carnaval de Olinda ou do Recife. Já que, em blocos, bandas de metais percorrem ruas históricas arrastando várias pessoas da comunidade, curiosos e turistas. A festa se chama Second Line Parade e acontece em New Orleans, Estados Unidos. “O que eu vejo em relação à tradição carnavalesca do Recife é a participação popular. Ou seja, você não precisa ser sócio para seguir a banda”, pontua Christopher Dunn, professor da Universidade de Tulane.
Para além da diversão, o desfile é uma celebração à liberdade e revela parte da trajetória de resistência do povo afro-americano. Suas raízes se encontram no século XVIII, época do domínio francês, quando a relação entre senhores e escravos na Louisiana era regulada pelo Code Noir (Código Negro). A lei previa o domingo de folga aos escravos, momento em que eles se reuniam para dançar e cantar em espaços públicos.
No século XIX, com a região já sob o domínio dos EUA, a legislação restringiu o local da reunião de domingo a uma praça, chamada de Congo Square. Para Michael Murphy, crítico cultural, a medida teve somente um único aspecto positivo: “Nós sabemos exatamente onde o jazz nasceu”.
A praça fica em Tremé, uma espécie de Quatro Cantos de New Orleans, o epicentro da cultura histórica da cidade. No bairro tradicionalmente negro e creole (grupo étnico fruto da mistura entre espanhóis, franceses, africanos e nativos dos EUA), estão concentrados os Social Aidand Pleasure Clubs (Clubes de Assistência Social e Diversão).
São essas as organizações que promovem as Second Line Parades, embora sua origem esteja centrada em forte ativismo comunitário. Tratam-se de associações criadas por negros logo após a abolição da escravatura norte-americana, em 1863, para promover a assistência social entre os membros da comunidade segregada.
Esses clubs davam suporte aos seus associados no acesso, basicamente, à assistência médica e funerária, além de promover festas (daí o nome: Social Aidand Pleasure Clubs). Eis a origem do jazz funeral e, consequentemente, da Second Line.
No funeral de um associado, o cortejo do corpo é acompanhado por uma brass band, formada por metais e percussão. Na primeira linha, junto ao caixão, caminham os parentes do falecido e, logo atrás, na segunda linha (daí a origem do nome, Second Line), vão os amigos.
No caminho entre a igreja e o cemitério, o repertório é composto por marchas fúnebres. Na volta, o grupo toca jazz e os amigos dançam em sinal de gratidão, para celebrar a história de quem acabou de partir, a amizade e a vida. As Second Line Parades são, portanto, um jazz funeral sem o morto. Como costuma se dizer por aqui, foi assim que New Orleans colocou fun (diversão) em funeral.
“Temos orgulho dos nossos desfiles. Não há violência e temos muitas crianças dançando. Esse é o espírito de união. Procuramos promover o amor, a paz e a felicidade”, afirmou Bernard Roberts, um dos integrantes do Sudan Social Aidand Pleasure Clubs, em entrevista à rádio local WWOZ no momento da divulgação do desfile, na última semana.
Atualmente, os clubs são mais voltados para a recreação. Porém, o viés político do desfile chama atenção. O clima é de diversão absolutamente espontânea e, sobretudo, de celebração pública das origens africanas. “O fato de ocupar, sonora e fisicamente, o espaço urbano é muito importante”, destaca o professor Dunn.
Os desfiles da Second Line não estão associados ao famoso Carnaval de New Orleans. Eles ocorrem sempre aos domingos, ao longo de todo o ano, assim como na época do dia de folga previsto no Code Noir, além de ser uma manifestação permanente da resistência e do orgulho negro contra o preconceito e a injustiça racial.
JULIANO DOMINGUES é pesquisador Fulbright na Tulane University (EUA), em New Orleans, e professor da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Mas o que ele gostaria mesmo era saber tocar trompete.