Curtas

Tudo vibra

Mariana Cavanellas estreia em carreira solo com disco dividido em dois: 'Dia' e 'Noite'

TEXTO Taynã Olimpia

01 de Fevereiro de 2021

A cantora e compositora Mariana Cavanellas

A cantora e compositora Mariana Cavanellas

Foto Bruna Brandão/Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 242 | fevereiro de 2021] 

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A estreia solo de Mariana Cavanellas não chega só, mas, sim, em dupla. Em dezembro de 2020, o lançamento do EP Tudo vibra trouxe 11 faixas inéditas, divididas em dois discos: Dia e Noite. As canções foram gravadas em estúdio improvisado em um dos quartos do sítio da avó de Mariana, em Igarapé, Minas Gerais. Em uma imersão criativo-afetiva entre a cantora e compositora, sua recém-chegada filha, seu produtor e seu companheiro, as músicas foram canal para expressar as emoções que atravessavam o período de puerpério de Cavanellas.

Ganhando aspecto terapêutico, dar vida e sentido aos discos foi um processo muito particular de extravasamento de sentimentos da artista. “Foram composições feitas em um âmbito muito intuitivo. Não teve questão matemática ou uma preocupação de querer se comunicar com todas as pessoas de uma forma muito clara. Nem sempre as composições são assim. E isso também diz respeito ao íntimo, a questões que a gente não tem palavras que vão dizer sobre elas”, conta, em entrevista à Continente.

Lançado primeiro, à meia-noite, o disco Noite inicia com a faixa Curandeira, um canto forte, quase como um clamor por força. “No meu corpo corre o sangue da negra, da índia, da silenciada/ No meu corpo corre água/ Curo todas as feridas”, canta Mariana, introduzindo duas das temáticas dos EPs, que foram produzidos em meio à pandemia: a força do feminino, em suas diversas constituições, e o poder espiritual. Ainda neste disco, a discussão feminista retorna de maneira mais contundente na canção bilíngue Lá fora: “Hay hombres matando/ Diciendo que salvan”. Essa foi a primeira faixa a receber videoclipe, lançado no Natal, discutindo as relações patriarcais presentes no cotidiano.

A quinta e penúltima faixa do EP Noite recebe o mesmo título do livro de autoria do ambientalista e líder indígena Ailton Krenak, Ideias para adiar o fim do mundo. Nela, com fundo musical montado por samples e sons feitos por didgeridoo, instrumento de sopro dos aborígenes australianos, Mariana lê um trecho da obra de Krenak, publicada em 2019 e que lhe foi apresentada no início da quarentena, marcando-a fortemente no período de introspecção promovido pelo pós-parto.

Questões indígenas aparecem mais de uma vez em ambos os EPs. O próprio diálogo com sons do meio ambiente, através da utilização de samples, e de trechos das composições reiteram a proposta dos discos em serem uma homenagem à natureza externa, mas, também – ao tratar de assuntos íntimos – ser um registro da natureza interior. Não por acaso, a expressão escolhida para o trabalho foi “tudo vibra”, em referência a uma das leis herméticas que defende a constante movimentação de todas as coisas, mesmo que de forma imperceptível aos olhos humanos.

“É sobre tudo ao nosso redor ter vida, ter sensibilidade, não só os seres humanos. Todas as coisas merecem ter esse cuidado, essa delicadeza e essa atenção de conexão. Então, esse trabalho foi construído de uma forma muito orgânica, tem elementos percussivos orgânicos, barulho de água, de terra… Vários elementos chamando essa vibração. Essa visão também tem uma relação com meu parto, porque o nosso corpo, quando entra em trabalho de parto, começa a dilatar e vamos sentindo tremer”, explica Mariana.

 
Cavanellas dividiu EP Tudo vibra, com 11 faixas,
em dois discos:
Noite e Dia. Imagem: Divulgação

Abrindo o EP Dia, lançado na mesma data que o anterior, porém ao meio-dia, temos a faixa Coragem. “Covardia é querer chegar ao fim/ De algo que não tem fim/ E adoece” são versos cantados por Mariana em parceria com sua amiga, a cantora pernambucana Flaira Ferro. A canção fala de ciclos e pontua a nova fase na carreira da mineira, que tem passagem anterior em duas bandas, a Lamparina e a primavera e a Rosa neon: “É difícil trilhar música por um caminho social num momento em que a música brasileira tem receita para atingir números e algoritmos. Então, pela primeira vez, eu me coloquei nesse lugar de fazer algo que eu gostaria de fazer, cem por cento fiel ao sentir”.

A faixa seguinte recebe o título de Yanomami e reverencia o saber e a cultura indígenas. O trecho “Chame o povo daqui/ Pra aprender com o povo de lá” abre espaço, mais uma vez, para reflexões sobre a importância e a urgência em defender e valorizar os povos originários. Já com ares mais urbanos, a canção O mar oferece um tom romântico à melodia, ao timbre da voz e à letra (“Eu vou tomar banho de mar/ E desfilar por essa vila a te esperar”). Esses contrastes temáticos e de ritmos mostram a pluralidade e diversidade do trabalho solo da artista, que preferiu não se limitar a um único estilo.

Por uma escolha pessoal e sensorial, baseando-se nos detalhes de mixagem de cada faixa, a divisão do EP em dois foi realizada a fim de inspirar a escuta diurna ou noturna. “Acredito que, dividindo em Dia e Noite, eu consigo acessar as pessoas, para terem mais uma disciplina de audição mesmo e entenderem esse trabalho com uma certa sensibilidade”, contou a cantora e compositora, que sugere experimentarmos escutar as faixas com fones de ouvido, de forma a captar todas as nuances das harmonias.

“Fecho os olhos para andar
Já sei onde estou
Olho para o céu azul
Não sei pra onde vou
Piso na beira do mar
Não sei o que sou
Olho pra esse céu azul
Já sei pra onde vou”

Esse é um trecho de Oz, um dos destaques de Tudo vibra, que encerra o EP Dia. Um resumo, talvez, da proposta geral deste primeiro trabalho solo de Mariana Cavanellas: a de mostrar que todos nós somos capazes de sentir, escutar e dizer além do óbvio – aprofundar nossas percepções, enquanto aceitamos a presença das instabilidades na vida. Até porque, mesmo que pareça, nada é estável; de fato, tudo vibra.

TAYNÃ OLIMPIA, jornalista em formação pela UFPE e estagiária da Continente.

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