Curtas

Trinta, de Adele

Em novo álbum, cantora reflete sobre a própria história

TEXTO Antonio Lira

03 de Janeiro de 2022

Capa do disco 'Trinta', lançado em 2021

Capa do disco 'Trinta', lançado em 2021

FOTO Dilvulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 253 | janeiro de 2022]

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"I’ll be taking flowers to the cemetery of my heart/ For all of my lovers in the present and in the dark/ Every anniversary, I’ll pay respects and say I’m sorry." Com esses versos, a canção Strangers by nature, que abre o novo álbum da cantora britânica Adele, tem início. De imediato, a melodia e o arranjo de cordas nos transportam para o que poderia ser a abertura de um musical da Broadway, enquanto, com suavidade, ela canta. Conhecida por hits como Someone like you (2011) e uma carreira marcada por um repertório de desilusões amorosas que servem de matéria-prima para seus discos, Adele agora reflete em torno de sua própria trajetória artística, mostrando que está mais afiada do que nunca. E, com isso, estamos falando de sua voz, mas também de suas composições, e da firmeza e coragem de se permitir cantar e sentir profundamente o seu lugar no mundo. Após a estreia com 19 (2008), o estouro com 21 (2011), o retorno em alto estilo com o disco anterior, 25 (2015), Adele chega ao(s) 30 (2021).

Na verdade, não estamos falando de uma cantora de 30 anos. Mas, assim como em seus discos anteriores, essa era a idade que ela tinha enquanto pensava nas composições de sua obra mais recente, que era um dos discos mais aguardados na indústria musical anglófona em 2021. O trabalho, inclusive, chegou a quebrar o recorde de pré-saves na plataforma de streaming Apple Music, que antes era da californiana Billie Eilish com o seu Happier than ever (2021).

A expectativa do público e da crítica foi inflada por declarações de Adele sobre este ser o seu “álbum mais pessoal e sensível até o momento”. Em novembro de 2021, ela abandonou uma entrevista após um repórter relatar não ter ouvido o seu álbum na íntegra. Por conta disso, inclusive, Adele chegou a solicitar que o Spotify não permitisse que fosse possível ouvir o disco em modo aleatório. O recado estava dado: assim como os Beatles, o Pink Floyd, The Who e outros de seus conterrâneos das ilhas britânicas, Adele queria que as pessoas escutassem o álbum na ordem em que ele foi pensado. Esse movimento, que pode parecer estranho para uma artista com tantos hits, não é exatamente novidade entre artistas mainstream.

Em 2016, Beyoncé lançou o Lemonade, que veio acompanhado de um filme construído numa narrativa cronológica em consonância com suas músicas. Mesmo partindo de perspectivas diferentes, além de lugares diferentes do mundo, as duas cantoras dialogam justamente ao trabalharem, nas canções, as intersecções entre as violências pelas quais as mulheres passam ao se relacionarem com homens com as violências que elas próprias, artistas mulheres, sofrem numa indústria musical majoritariamente masculina.

  
Capas dos discos anteriores de Adele. Imagens: Divulgação

Na segunda faixa, Easy on me, escolhida para ser o primeiro single do álbum, ela pede para que seu interlocutor “pegue leve” com ela. “I was still a child/ Didn’t get the chance to/ Feel the world around me.” Ela poderia estar falando sobre a sua mais recente separação, mas também podemos entender como um apelo à crítica e ao público que, com tanto afinco e durante tanto tempo, escrutinaram todos os aspectos de sua vida. Assim como acontecia com a brasileira Marília Mendonça, várias pessoas se sentiram, e ainda se sentem, autorizadas a comentar sua aparência. Ainda em 2021, em entrevista à revista Vogue, a compositora chegou a afirmar que seu corpo vem sendo objetificado ao longo de toda sua carreira.

Dona de um timbre e execução impecáveis e cheios de personalidade – é bem provável que quem já tenha ouvindo a artista entoando os versos de Rolling in the deep (2011) nunca tenha esquecido sua voz – Adele segue, em 30, a tradição de nomear seus álbuns com a idade que ela tinha enquanto estava escrevendo as canções. As capas dos discos, caso fossem colocadas lado a lado, poderiam, inclusive, ser interpretadas como parte de um álbum de fotografias da cantora.

Em 19, a jovem Adele, então artista iniciante, aparece de olhos fechados e o pouco que vemos do seu rosto ainda está encoberto pelas sombras. Nos discos 21 e 25 ela se despe da timidez e aparece de frente para a câmera, encarando as lentes do fotógrafo, o público e quem mais se dispuser a mergulhar em sua música.

Na última década, suas canções correram o mundo. Ela ganhou um Oscar com Skyfall (2012), que fez parte da trilha sonora do filme de mesmo título da franquia 007, ganhou 15 prêmios Grammy e foi vítima de julgamentos e críticas que são direcionados com muito mais afinco a artistas mulheres, em especial àquelas que ganham o destaque que ela recebeu. Desta vez, porém, a cantora, compositora e multi-instrumentista aparece na capa de seu novo lançamento com uma foto de perfil.

A terceira faixa de 30, My little love, talvez nos ajude a responder essa pergunta. A canção conta com um dos arranjos mais ousados da carreira de Adele e, em determinados momentos, lembra os beats de artistas como Kendrick Lamar e Frank Ocean. Apesar de trazer um clima mais intimista, e mesmo sensual, e letra que fala de uma relação intensa, em que a cantora se coloca em uma posição bastante vulnerável, não se trata de uma canção sobre seus amantes, mas, sim, sobre seu filho. Há trechos de conversas entre mãe e filho ao longo da canção e, neles, é possível ouvir Adele tentando explicar ao pequeno Angelo, hoje aos 9 anos de idade, os motivos de ter se separado do seu pai. Sempre muito discreta em relação ao filho, esta é a primeira vez que os fãs da cantora escutam a voz da criança.

Para Adele, o desafio agora é falar sobre a dificuldade em compartilhar com seu filho as dificuldades do fim do relacionamento que o gerou, justamente no momento em que ele começa a entender o tamanho da fama da mãe. Diante do perfil da artista em 30, nossos olhares a observam enquanto o olhar dela mira à frente, possivelmente vislumbrando como será sua história após o fim do seu retorno de Saturno.

ANTONIO LIRA é jornalista, músico, pesquisador em comunicação e mestrando pelo PPGCOM/UFPE.

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