Curtas

Três roteiros

Recém-lançado pela Companhia das Letras, livro do cineasta Kleber Mendonça Filho apresenta os textos originais dos longas 'O som ao redor' (2012), 'Aquarius' (2016) e 'Bacurau' (2019)

TEXTO Filipe Falcão

01 de Fevereiro de 2021

Cena do filme 'O som ao redor' (2012), do diretor pernambucano

Cena do filme 'O som ao redor' (2012), do diretor pernambucano

Imagem Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 242 | fevereiro de 2021]

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O roteiro é uma das etapas mais importantes da produção audiovisual. Sem roteiro não existe filme, não é possível inscrever o projeto em editais de financiamento e não se consegue pensar nas escolhas narrativas e estilísticas necessárias para que a trama ganhe as telas. Qualquer pessoa que já tenha estudado e lido manuais de roteiro sabe que existem fórmulas que ajudam neste processo de criação, como seguir os três atos do roteiro e pensar na jornada do herói através de uma escrita dramática e industrial.

No entanto, engana-se quem pensa que escrever um roteiro é seguir uma fórmula matemática e que, uma vez pronto, o texto não pode sofrer nenhum tipo de alteração. É normal, e até importante para o processo criativo do filme, que aconteçam mudanças no que está escrito no roteiro antes ou mesmo durante as filmagens.

Recém-lançado pela Companhia das Letras, o livro Três roteiros, do cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho, apresenta os textos originais dos longas dirigidos por ele, O som ao redor (2012), Aquarius (2016) e Bacurau (2019), este em codireção e com roteiro escrito em parceria com Juliano Dornelles. O livro oferece ao leitor uma rica possibilidade de conhecer o processo criativo dos títulos em questão, o que torna a experiência diante dos filmes ainda mais completa.



De maneira geral, o livro permite conhecer o próprio formato de escrita de um roteiro, diferente de um texto literário, como um romance. Composto por descrições de cenas, informações sobre cenários internos ou externos e se é dia ou noite, os textos servem para atores, atrizes, equipe de produção e o próprio diretor tomarem notas e rabiscarem informações que vão auxiliar e guiar o processo de filmagem.

Além dos três roteiros, o livro traz uma introdução assinada pelo próprio Kleber. O diretor e roteirista reconhece que algumas ideias funcionam muito bem no papel, mas não têm o mesmo efeito no filme, o que obriga algumas cenas a serem cortadas ou mesmo modificadas para a versão final lançada. De acordo com o cineasta, a aceitação do livro tem sido bastante positiva justamente por permitir essa leitura comparativa entre o filme escrito e o filme feito. “Os comentários que tenho recebido, principalmente pelas minhas redes sociais, destacam o prazer das pessoas já conhecerem os filmes e agora poderem ver a escrita original dos títulos”, comenta Kleber.


Kleber Mendonça Filho, diretor dos longas que viraram livro. Foto: Breno Laprovitera

Na introdução, o cineasta detalha sequências roteirizadas e filmadas, mas não incluídas na edição final dos filmes, como também compartilha ideias escritas e não filmadas. Algumas dessas alterações representam mudanças simples e discretas, no entanto, outras trazem grande impacto na narrativa. Uma das principais diferenças destacadas por Kleber é a conclusão do roteiro de Aquarius, diferente da versão filmada e lançada.

“Muita gente tem reagido de forma impactada com o final do roteiro de Aquarius. É uma descoberta em cima de uma história que as pessoas já conhecem. É como voltar ao filme e encontrar uma nova versão da obra”, justifica. Para ele, isso mostra a forma livre de se trabalhar e como as ideias são fortalecidas pelo próprio momento da realização da obra. “Existem várias questões que ajudam nesse processo. Os atores, as locações, o modo de olhar uma cena de forma diferente. Ao meu ver, as cenas são versões melhoradas do que estava escrito no roteiro”, completa o cineasta.

REFERÊNCIAS
Não é novidade que o cinema trabalha, muitas vezes de forma simbólico-alegórica, com alerta de que livros que ensinam a como escrever roteiros podem parecer apenas conjuntos de fórmulas.

“Esses manuais e guias são interessantes, mas muitas vezes não falam de algo que é essencial para qualquer escritor, independentemente do gênero, que é a capacidade de expressar ideias.” Para ele, algo bastante essencial para o autor é ter um ponto de vista em relação ao mundo, a vida e as pessoas. “Esse ponto de vista vem da experiência humana e, se você encontrar temas que lhe interessam ou incomodam ou considera relevantes, você consegue desenvolver um bom trabalho de escrita.”



Cenas de Bacurau (2019) e Aquarius (2016). Imagens: Divulgação

Para Kleber, as suas ideias surgem de lembranças e traços autobiográficos, mas também por meio de leituras alegóricas de um Brasil dividido por questões políticas como um reflexo da ascensão da extrema direita vista nos últimos anos. Parte dessa realidade vivida no país reverbera nas leituras alegóricas e simbólicas, e até em alguns casos explícitas, encontradas nos filmes, o que justifica a subida de tom existente nos três roteiros escritos durante o período de 10 anos, entre 2008 e 2018. Essa realidade aparece discreta e sugestiva em O som ao redor, ganha força em Aquarius e se torna explícita em Bacurau.

Ao adquirir o livro Três roteiros, um caminho bastante prazeroso para o leitor será ler os textos para depois assistir aos filmes O som ao redor, Aquarius e Bacurau. No entanto, já tê-los visto não diminui em nada a experiência positiva da leitura dos roteiros. Aqui, a ordem não modifica o prazer de conhecer mais sobre o processo criativo de construção audiovisual de alguns dos mais importantes títulos do cinema pernambucano.

FILIPE FALCÃO, jornalista, professor universitário, doutor em Comunicação e pesquisador do audiovisual.

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