Todo dia a mesma noite
Assistir à minissérie da Netflix, baseada no livro de Daniela Arbex, não é uma atividade fácil, porém necessária diante de uma tragédia que não deve ser esquecida
TEXTO Laura Machado
08 de Março de 2023
Imagem Guilherme Leporace/Netflix/Divulgação
[conteúdo exclusivo Continente Online]
A ficcionalização de uma história real que ainda arde como uma ferida aberta no país. Esta triste realidade é o gancho da minissérie Todo dia a mesma noite, que a Netflix estreou no dia 25 de janeiro e que se baseia no livro homônimo da jornalista Daniela Arbex, publicado em 2018, sobre a história da tragédia na Boate Kiss, considerada o terceiro maior acidente incendiário em casas noturna do mundo. O acidente está atrás apenas do incêndio que deixou 309 mortos, na noite de natal da cidade chinesa Luoyang em 2000 e no acidente nos EUA, quando a boate Coconut Grove, em Boston, foi incendiada em 1942.
Faltavam apenas dois dias para a tragédia completar 10 anos quando a produção ficou disponível no serviço de streaming. Através de seus cinco episódios roteirizados por Gustavo Lipsztein e dirigidos pela dupla de cineastas Júlia Rezende e Carol Minêm, a minissérie reaviva a indignação e a angústia que permeiam todas as questões envoltas à catástrofe. A obra audiovisual, assim como o livro, é um retrato pujante de um imenso momento de dor coletiva e, se voltando para o luto e revolta daqueles que perderam entes queridos no incêndio, traz em cada um dos seus episódios a luta por justiça.
Assistir a Todo dia a mesma noite não é uma atividade fácil. Quase todo brasileiro que assistiu à notícia tem alguma memória relacionada ao desastre. Para mim, ainda criança, recordo as imagens de vítimas sendo retiradas da boate por bombeiros e vítimas que, tendo inalado menos fumaça tóxica, voltavam para ajudar as pessoas que ainda estavam dentro da casa noturna. Me impressionaram aquelas cenas de tristeza absoluta e ainda que não soubesse exatamente o que significava aos 11 anos de idade, pensei que seria um horror sair de casa um dia e não voltar mais para meu quarto, para meus livros, para meus pais.
Dez anos depois, posso nomear o que senti como angústia. Angústia essa que não poderia jamais ser comparada à sentida pelos familiares e amigos das 242 vítimas fatais e mais de 600 feridos naquela madrugada de 27 de janeiro. Aquela dor não era exatamente minha, mas pertencia, daquele momento em diante, ao mundo. Em suas páginas, Daniela Arbex escreve algo importante sobre isso: “Este livro é uma recusa ao esquecimento. Ao tomá-lo nas mãos, você estará participando do imenso esforço coletivo para fazer da memória um instrumento de conforto e de respeito à dor alheia”. O mesmo propósito, poderia dizer, também cumpre a minissérie.
Imagem: Frame do trailer/Netflix/Divulgação
Com atuações de nomes como Débora Lamm, Bianca Byington, Paulo Gorgulho, Leonardo Medeiros e Thelmo Fernandes no papel dos pais atingidos pela perda dos filhos no incêndio, a minissérie inicia remontando aos últimos momentos de algumas das vítimas com suas famílias, quase como uma celebração da individualidade, da identidade e da vida daqueles jovens. No segundo episódio, o desespero desses mesmos pais é retratado com veemência em suas buscas pelos filhos, desde serem acordados no meio da madrugada com notícias do incêndio até a exaustiva procura pelos hospitais de Santa Maria (RS), onde ficava a boate, e no centro desportivo onde os corpos estavam sendo dispostos e aguardavam reconhecimento para serem liberados. A partir do terceiro episódio, a tristeza e a dor seguem firmes, contudo a revolta toma frente como mote para a luta que a Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) trava contra a impunidade.
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O incêndio que aconteceu na Boate Kiss é considerado o segundo maior do Brasil em número de óbitos, atrás apenas de um acidente de 1961 com o Gran Circo Norte-Americano, em Niterói, Rio de Janeiro. Este se deu de forma criminosa quando um funcionário que havia sido demitido decidiu se vingar dos contratantes ateando fogo na lona do circo. O ato causou a morte de mais de 500 pessoas, entre elas, diversas crianças, e cerca de 800 pessoas sobreviveram, mas ficaram feridas.
O caso da Kiss também foi amplamente comparado na mídia com o incêndio na República Cromañón, uma boate localizada em Buenos Aires, capital Argentina. Com quase 200 mortes e mais de 1.400 feridos, o acidente argentino aconteceu em 2004, nove anos antes do brasileiro e também teve início quando um integrante da banda que tocava disparou um sinalizador no local fechado, causando fogo no material do teto da boate, que contaminou o ar com gases nocivos. Em ambos os casos, os proprietários das casas de show foram questionados quanto ao tipo de material utilizado, assim como a quantidade de pessoas dentro do local, que ultrapassava o número permitido e a falta de saídas de emergências preparadas para situações extremas, além do uso impróprio de equipamentos de pirotecnia.
Atualmente, as famílias das vítimas do incêndio na Boate Kiss permanecem com o gosto amargo de injustiça nas bocas. Depois de 10 anos de uma luta diária por justiça, na qual os parentes foram os primeiros a serem julgados – após acusarem o Ministério Público de omissão, o MP decidiu processar os pais envolvidos com a AVTSM –, o processo não foi para frente por falta de justa causa. Quatro dos envolvidos foram condenados a uma pena de 19 a 22 anos de prisão, porém, em 2023, este julgamento foi anulado e os réus seguem em liberdade.
“Esquecer é negar a história. Eu tenho escutado algumas críticas, poucas perto de mim, obviamente, mas tenho certeza que devem ter muitas aí pelo país que vão na ideia de: 'O que adianta contar essa história? Isso não vai trazer esses meninos de volta'. Esses meninos não vão voltar, mas nós vamos tentar, com essa série, [fazer] com que outros meninos cheguem em segurança em casa. O silenciamento só beneficia os réus e a impunidade. Eu acho que a gente precisa pensar que o silêncio não é a solução. O silêncio não minimiza a dor dos pais”, afirmou Daniela Arbex em entrevista ao Brasil de Fato (leia também entrevista da jornalista à Continente – AQUI).
O livro e, em seguida, a minissérie vêm como uma forma de fazer com que as pessoas jamais se esqueçam do descaso envolvido na tragédia, da importância da infraestrutura e da segurança em locais fechados e, acima de tudo, das 242 vidas que não voltaram para casa naquela noite, ou das que voltaram ou nem foram e, no entanto, tiveram os seus destinos completamente mudados desde então.
LAURA MACHADO, estudante de Jonalismo da Universidade Católica de Pernambuco e estagiária da Continente.