Curtas

Tensão e suspense nas relações familiares

'Custódia', primeiro longa do realizador Xavier Legrand, entra em cartaz no Brasil

TEXTO LUCIANA VERAS

01 de Julho de 2018

 Destaque para o ator Thomas Gioria, que interpreta o filho Julien

Destaque para o ator Thomas Gioria, que interpreta o filho Julien

FOTO Supo Mungam Films/Divulgação

[conteúdo na íntegra (degustação) | edição 211 | julho de 2018]

Em francês, a expressão jusqu’à la garde significa, numa tradução básica, “até o limite da sua defesa”. A palavra garde pode ser entendida, ainda, como “proteção”. E, em um exercício mais livre de cruzamento entre os dois idiomas, pode-se pensar numa versão do tipo “deixar ir até chegar ao limite da proteção”. Nada mais apropriado para se referir a Custódia (Jusqu’à la garde, França, 2017), o primeiro longa-metragem do realizador Xavier Legrand, com estreia em todo Brasil na quinzena inicial de julho, depois de várias exibições concorridas no Festival Varilux de Cinema Francês e de láureas diversas no Festival de Veneza 2017: o filme rendeu a Legrand o Leão de Prata de melhor direção e ainda o troféu Luigi De Laurentiis para os autores estreantes.

O título nacional subtrai a sutileza – poética até – do original, mas não deixa de ser cristalino: Custódia se erige da batalha pela guarda de uma criança. Legrand, aliás, opta por iniciar sua trama com a audiência entre os pais, Antoine (Denis Ménochet) e Miriam (Léa Drucker), e a juíza (Saadia Bentaïeb), que decide conceder o pleito defendido por Antoine e determina a guarda compartilhada de Julien (Thomas Gioria). A alegação da magistrada: houve um investimento afetivo e financeiro por parte do pai, que resolveu abandonar seu emprego e se mudar para a cidade onde a ex-mulher reside apenas para ficar perto dos filhos, e isso precisa ser levado em consideração. Assim, estabelece-se, de imediato, tanto para os personagens como para o público, que a vida da criança será cindida entre os momentos que passa com a mãe e a irmã mais velha, Joséphine (Mathilde Auveneux), e aqueles transcorridos ao lado do pai e dos avós paternos (Martine Vandeville e Jean-Marie Winling).

Acontece que Custódia se estrutura menos como um melodrama familiar à Douglas Sirk e mais como um filme de horror, com ecos do suspense psicológico que Stanley Kubrick tão bem demonstrou em O iluminado (1980). Os elementos do cinema de gênero, aliás, são usados com eficácia pelo diretor na construção de uma narrativa cingida pela sobriedade e pela pressão. Em entrevista exclusiva disponível na Continente Online, Xavier Legrand explica que quis fazer do espectador o juiz de tudo. De fato, é quase como se ele concebesse um pacto exclusivo para ir além do dispositivo que se forma entre o que é projetado na tela e a plateia imersa numa sala escura: a nós que assistimos aos dias de Julien, é dada a faculdade de acompanhar tudo como se em tempo real. Como se estivéssemos diante de um registro documental.

Mas há a força da montagem a nos lembrar que não é documentário, e sim uma invenção, e que os personagens se movem a partir da visão de mundo de um cineasta que, embora jovem, domina o meio escolhido para cinzelar sua representação de um real cada vez mais recorrente. Diz Christian Metz, francês como Legrand e um dos teóricos mais interessantes da segunda metade do século XXI, que “o cinema é inconcebível sem um pouco de montagem, a qual se insere por sua vez num conjunto mais amplo de fenômenos de linguagem” e, dando sequência ao pensamento perfilado nas páginas de Linguagem e cinema (1980), “que um filme é composto por várias imagens que adquirem suas significações umas em contato com as outras, através de um jogo complexo de implicações recíprocas, símbolos, elipses. Aqui, o significante e o significado distanciam-se, mas, há de fato uma ‘linguagem cinematográfica’”.

É na utilização com maestria da linguagem cinematográfica que Custódia cresce. Há tensão em todas as interações: Julien pouco fala sobre o pai ou quando está com ele, Antoine parece ter menos interesse no filho do que nos diálogos com a ex-mulher acerca dele e explode em situações corriqueiras, como um almoço na casa dos pais, e Miriam tenta se equilibrar entre o que foi decidido judicialmente e o que sabe e sente a propósito da presença do pai dos seus filhos e dos efeitos agressivos que hão de advir. Para além da técnica, é preciso anotar a potência do trabalho dos atores, a conciliar contenção e emoção na justa medida. Em especial, que se valorize a profundidade do olhar de Thomas, o intérprete de Julien: expressividade e acuidade se mesclam para transformar na mais pura repulsa a doçura de um rosto entre o infantil e o juvenil.

Por fim, há de se ressaltar, ainda, o que Custódia alcança ao trafegar entre o drama e o terror: uma radiografia do que a violência é capaz de impingir ao cotidiano familiar. Insidiosa, por vezes subestimada, a selvageria doméstica ganha contornos nítidos e, pela condução de Xavier Legrand, uma exposição corajosa. Há um custo inerente a essa experiência cinematográfica, no entanto, e, quando os créditos irrompem, a sensação desencadeada é de alívio pelo fim de uma excruciante jornada – ficcional, bem sabemos, mas não é o cinema uma das janelas mais fecundas para se apreender e ressignificar o real?

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