Rômulo Braga é Diego no longa de Jeorge Pereira. FOTO: Inquieta Cine/Divulgação
ORGANISMO
(Brasil, 2017)
Pelo trailer deste que é o primeiro longa-metragem de Jeorge Pereira, já se percebe que o filme navegará entre mares de temporalidades distintas, ancorado no personagem principal, Diego (Rômulo Braga), e do antes e depois do acidente que o coloca numa cadeira de rodas. No entanto, como sentenciam os versos de Esóterico, nas vozes de Gal Costa e Maria Bethânia e na versão que acompanha o subir dos créditos finais, "mistério sempre há de pintar por aí": assim, Organismo transcende a ideia de um "filme de superação" e opta por aprofundar o olhar sobre a experiência que une corpo e espírito a partir de um evento que redefine a existência.
"Queria propor um olhar para a reconstrução do corpo para além dos conceitos, para além do arcabouço cultural do que é ser um homem que passa a ser um cadeirante", observa o diretor à Continente. Jeorge contraiu poliomielite quando tinha um ano de idade e, desde então, tem a sua experiência mediada pela cadeira de rodas. Para construir o roteiro, ele buscou ficcionalizar experiências de amigos próximos cujas vidas se reformularam. "Conversei com muitos cadeirantes que, como Diego, o protagonista do filme, sofreram o acidente e depois pensaram: 'Minha vida acabou' ou então 'Eu não mais homem'", conta.
Com fotografia dividida entre Marcelo Lordello e Breno César (os dois também diretores), Organismo usa a linguagem cinematográfica – notadamente a imagem e a música – para nos conduzir aos pensamentos de Diego. Mas isso não desvia Jeorge de discutir males da contemporaneidade, como o machismo estruturante, a relação predatória com o trabalho ou mesmo as expectativas que trazemos, desde a infância, para o caminho que queremos chamar de nosso. "O que é fé?", questiona o diretor, parafraseando o próprio protagonista que cinzelou, primeiro como personagem de um curta-metragem, depois como a viga-mestra de um projeto que foi rodado em dois tempos, com hiato de mais de um ano nesse ínterim
Jeorge Pereira, com seu longa de estreia que evoca autores como o cineasta Andrei Tarkovsky e o escritor Raimundo Carreiro, conquista nove cidades como território de lançamento e levanta uma reflexão para todos: "Quando pensamos que chegamos ao fim, é apenas um recomeço".
Documentário foi rodado ao longo de nove meses. FOTO: Embaúba Filmes/Divulgação
CHUVA É CANTORIA NA ALDEIA DOS MORTOS
(Brasil/Portugal, 2018)
"O filme é inspirado na história real de um desses jovens cineastas indígenas, que em uma das nossas viagens à aldeia, começou a se sentir fraco e assustado porque um pajé tinha jogado um feitiço nele. Se ficasse na aldeia, ele achava que iria morrer, então fugiu para a cidade". É assim que Renée Nader Messora, codiretora ao lado de João Salaviza, define esta experiência sensorial que trafega no jogo entre opacidade e transparência do gênero documental.
Chuva é cantoria na aldeia dos mortos é o resultado de nove meses de convivência na aldeia Pedra Branca, na terra indígena Krahô, no Tocantins. Ihjãc, um jovem Krahô, foge para a cidade após um encontro com espírito do seu pai, que o impele a promover uma festividade para o fim do processo de dor e luto. Se assim o fizer, Ihjãc se tranformará em um xamã, mas não há nele a certeza para tanto, o que o carrega para a cidade, válvula de escape onde ele sentirá, na pele, o que é ser um indígena no Brasil atual.
Em A queda do céu, compilação de depoimentos dados a antropólogo francês Bruce Albert, o xamã yanomami Davi Kopenawa fala sobre as tensões entre indígenas e brancos nesse atual estado de coisas. “E o que eles (os brancos) chamam de natureza é, na nossa língua antiga, Urihi-a, a terra-floresta, e também sua imagem, visível apenas para os xamãs, que nomeamos Urihinari, o espírito da floresta. É graças a ela que as árvores estão vivas. A imagem do valor de fertilidade në roperi da floresta também é o que os brancos chamam de natureza. Foi criada com ela e lhe dá riqueza. De modo que, para nós, os espíritos xapiri são os verdadeiros donos da natureza, e não os humanos”, diz Davi, um dos personagens do documentário Gyuri, da pernambucana Mariana Lacerda.
Pois é justamente do conflito desse jovem Krahô, e da bela e verdadeira relação que ele aduba com a sua terra e os seus familiares, que se erige a narrativa, debulhada sem pressa, como se à plateia fosse feito o raro convite de participar não apenas de rituais ou cerimônias, e sim do modus vivendis dos povos da floresta, dos habitantes originários do país. “O que mais aprendemos nessa relação com os Krahô foi a respeitar o tempo das coisas. Você não pode controlar tudo. Na aldeia, nosso filme era tão importante quanto lavar roupa, ir colher mandioca ou fazer reunião no pátio. O importante era justamente estar ali, 100% presente, vivendo aqueles dias com aquelas pessoas e tentando contribuir de alguma forma”, considera a realizadora.
Quem está vivo ou está morto em Los silencios? FOTO: Sofia Oggioni/Divulgação
LOS SILENCIOS
(Brasil/França/Colômbia, 2018)
Atenção: haverá apenas uma única sessão de Los silencios no fim de semana: sábado, 27, às 19h30. Isto posto, vamos à trama. O que sabemos de Amparo (Marleyda Soto) quando ela irrompe na tela, passageira em uma canoa que trafega pelo rio numa noite escura, logo no início do filme? Ela chega a uma pequena cidade alagada na fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru, com dois filhos, Nuria (María Paula Tabares Peña) e Fabio (Adolfo Savilvino) e um pleito: que a morte de seu marido nos conflitos armados das selvas colombianas seja reconhecida, ainda que o corpo nunca tenha sido resgatado dos confins para onde convergem vivos e mortos.
Mas acontece que o marido, de nome Adão como o primeiro criado pelos desígnios divinos (interpretado por Enrique Díaz), ressurge em sua casa de palafitas. Carrega uma metralhadora, senta com Amparo não precisam estar em cizânia. Talvez nelas possa haver uma coexistência, como se passado, presente e futuro fossem capazes de se imiscuir nas águas turvas do rio Amazonas.
Em Los silencios, água é um elemento metafórico e catalisador de memórias, de modo que estamos em um contínuo mergulho nas sensações de Amparo. Ela nos surge como uma tela em branco, cujos contornos e matizes vão sendo definidos pelo enredo e, também, pela construção imagética – destaque para o magnético trabalho de fotografia da colombiana Sofia Oggioni. Palavra e imagem, assim, conduzem Amparo, e por conseguinte a todas nós, em uma jornada de ternura e lembranças, mas também de inevitável cunho político. Lembrar, afinal, é resistir.
LUCIANA VERAS, repórter especial da Continente.