Depoimento

'Gyuri', um filme para Claudia Andujar

TEXTO Mariana Lacerda

07 de Março de 2019

Foto Mariana Lacerda/Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 219 | março de 2019]

contribua com o jornalismo de qualidade

Estamos na sala do apartamento de Claudia Andujar, em São Paulo. Claudia e Peter (Pál Pelbart) brincam com as mãos, seus dedos se cumprimentam, se falam em um pequeno teatro. É o nosso registro feliz daquela tarde, 28 de outubro do ano de 2018, segundo turno das eleições.

Os dedos de Claudia e Peter vagueiam no ar, vaga-lumes apesar do dia e da água. Na água da fotografia que está na parede, onde se encosta a mesa, a imagem que parece evocar um tempo fresco e suas águas, os espíritos da chuva maari, “que descem do céu para mandar embora o tempo de epidemia”, disse certa vez Davi Kopenawa, em outro contexto. A terra-floresta, os espíritos essenciais de árvores, águas, pedras, animais, eis os donos da terra. Eles estão conosco, ali, os espíritos, enquanto nossos dedos se tocam formando a imagem de uma cabana. A tarde já cai lá fora, e o planeta fascismo se aproxima de nós.

Com as mãos juntas, vamos espantar o monstro, eu pensava, mas eles “são muito pouco numerosos para ser realmente perigosos; mais perigosos são os homens comuns, os funcionários dispostos a acreditar e a obedecer sem discutir”, disse certa vez Primo Levi, outra lembrança, enquanto Claudia, com seu olhar calmo, dizia “eu não acredito que vai começar tudo de novo”. Algumas horas depois foi anunciado o resultado das urnas e o barulho nas regiões centrais de São Paulo foi ensurdecedor. Subitamente, o país reacende os pesadelos do passado, da ditadura militar, da história colonial. Descambamos para a vanguarda do atraso, o Brasil “laboratório mundial de novas formas de junção entre o fascismo e o neoliberalismo radical”, escreveu Vladimir Safatle.

Claudia Andujar, aos 13 anos, vinda de uma família judia, atravessou a guerra na Hungria, passou quase um mês em um trem vagueando entre bombas, viu-se presa sozinha em uma Viena tomada pelos nazistas em 1944. Com sua mãe, conseguiu chegar aos Estados Unidos, e, por fim, refugiou-se no Brasil. Aqui, acolheu e foi acolhida pelos povos originários da floresta, os yanomami, com quem passou a dividir sua existência.

Ela atravessou ainda a ditadura militar, foi perseguida pelos generais. Uma busca pelo seu nome nos chamados “arquivos do período de exceção” no Arquivo Nacional dá a ver o quão observados seus passos foram pelo regime, em tudo o que fazia. Na década de 1970, foi expulsa da convivência cuidadosa e zelosa entre os seus, afinal, aos olhos dos militares, suas atividades eram “desnecessárias aos interesses nacionais”, diz um dos documentos do então Conselho de Segurança Nacional.

O que exatamente era desnecessário “aos interesses nacionais”? Que a forma de ser e de viver dos indígenas fossem conhecidos pelo mundo, para que o mundo pudesse protegê-los “um pouquinho”, nos disse Davi. O que Claudia fazia e faz era dar a ver a vida que ali se faz, justamente quando os militares insistiam em afirmar que aquelas terras estavam desabitadas.

Além disso, naquele momento, acompanhadas dos médicos Rubens Brando e Francisco Pascalichio, dos amigos e parceiros Carlo Zacquini e Bruce Albert, Claudia vacinava os yanomami contra o sarampo que então se alastrava – e matava. Cuidava ainda da gente atingida por gripe.

Eram as doenças trazidas pelo contato com o homem branco, quando as obras da rodovia perimetral norte alcançaram terras yanomami. Essa estrada de 2.480 km, paralela à Transamazônica Norte, deveria ligar o Atlântico (Macapá) ao sul da Colômbia (Mitu). O começo das obras no trecho Carcari-Padauari, que cortou o sul do território yanomami, se deu em setembro de 1973. “Nós estávamos trabalhando ali, quando a estrada chegou”, conta Carlo Zacquini. “Com a estrada, vieram os trabalhadores que estavam na estrada”. Nesse período, aldeias inteiras foram exterminadas por conta do sarampo, os xamãs se viram tristes, incapazes, se sentiram desacreditados. Uma tragédia assolou.

***

Agora, estamos na tarde chuvosa e fria do dia 4 de junho de 2015, quando subimos o elevador até o 20º andar onde fica o apartamento de Andujar. Ainda não a conhecemos. Claudia Andujar quer saber quem somos, antes de aceitar minha proposta: uma entrevista filmada em húngaro. Húngaro, a língua da sua infância, a infância atravessada pela Segunda Guerra Mundial. Húngaro, também a língua materna de Peter.

Narrar as lembranças dos fatos na língua em que eles aconteceram, eu pensava. Assim, sugeri a Claudia que acessasse sua primeira língua, como maneira de alcançar formas outras de fazer emergir sua história de vida, singular, mas que, quando narrada, nos torna semelhantes a ela, pertencentes. Seria possível imaginar a perda de um território ao se pensar o esquecimento da própria língua? – eu me perguntava silenciosamente.

Já naquele primeiro encontro, Claudia me repetia: – Mas para que você quer fazer isso? É um filme? As palavras com respostas podiam até alcançar a minha boca, mas meu coração acelerado impedia que elas saíssem e eu permanecia em silêncio, deixando-a, Claudia, justo ela que nos recebia em sua casa, em uma espécie de vácuo.


Claudia Andujar, Fátima e Davi Kopenawa junto a outros indígena durante as gravações de Gyuri. Foto: Marcelo Lacerda/Divulgação

Mas hoje lembro que aquele vazio estava cheio. A sala de sua casa estava repleta de espíritos, que pareciam nos proteger. Os xapiri estavam ali conosco, hoje eu sei disso. Assim como a alma de Gyuri, o menino que, mais tarde, daria o seu nome ao filme que, por fim, conseguimos fazer.

Como se ali, naquele momento, eu não precisasse falar, dizer, afirmar o “objetivo”, o “pressuposto”, o “projeto” de estarmos ali. Cabia somente antes estar e ser, ali. Permitir-se, deixar-se, seguir cuidadosamente um fluxo que generosamente se abria, fazia-se presente, para dar passagem a Claudia (e, ao lado dela, em momentos seguintes, a Carlo Zacquini e a Davi Kopenawa, sempre ao lado dela).

Seria, então, não um vácuo, mas antes um espaço para deixar o outro vir, “ser canal”, eu entenderia quase dois anos depois, filmando ao lado de Claudia Priscilla um documentário dedicado a Patrícia Galvão, a Pagu. “Sou um canal”, sussurrava o fantasma Pagu em meu ouvido. Canal, passagem. Isso se tornaria para mim o próprio exercício de fazer filmes de documentário: abrir um espaço para que o outro venha, permitir-me ao tempo do outro e assim devolvê-lo a ele mesmo, porém outro (enquanto eu também já não sou mais a mesma).

Em silêncio, ouvindo Claudia conversar em húngaro com Peter e sem entender uma só palavra, eu pensava ainda na frase de Deligny, de que “o real é o que aparece na hora certa”, soprava-me ele enquanto os dois, numa língua tão bela quanto improvável, falavam.

E, enquanto o faziam, as frases pareciam despencar. As palavras húngaras caíam, outras em português emergiam: vaca, pontes, bombas, beijo, boca fervendo, internato, campo de concentração. Palavras húngaras também se elevavam feito pequenas ondas em um mar calmo de frases, sirtam, szerelem. Às vezes, palavras em inglês e em francês invadiam o relato de guerra de Claudia Andujar. Pausas silenciosas se alastraram.

“Cavar uma língua”, ou “confrontar toda linguagem com o silêncio”, para, por fim, dar conta de algo a se dizer, pensava eu em passagens de Deleuze. Ou ainda naquilo que li depois em um texto do Giorgio Agamben, chamado O que resta?. Ali, numa fala no Salão do Livro de Turim, em 2017, ele contou: “Ao entrevistador que lhe perguntava ‘O que resta, para a senhora, da Alemanha em que nasceu e cresceu?’. Hannah Arendt respondeu: ‘Resta a língua. Mas o que é uma língua como resto, uma língua que sobrevive ao mundo do qual era expressão? E o que nos resta quando nos resta apenas a língua? Uma língua que parece não ter mais nada a dizer e que, todavia, obstinadamente resiste e da qual não podemos nos separar? Gostaria de responder: É a poesia”.

Tempos depois, no catálogo da exposição Claudia Andujar – A luta Yanomami (inaugurada em dezembro de 2018 em São Paulo, no Instituto Moreira Salles), encontrei um relato de Andujar assim: “Constato que me sinto à vontade neste mundo Yanomami. Não me sinto mais uma estranha. Este mundo ajuda a me compreender e a aceitar o outro mundo em que me criei. Os dois mundos estão se juntando, num grande abraço. É, para mim, um mundo só”, dizia ela em 1975.

***

Não seria isso, também, o nosso filme Gyuri? Um filme que, ao narrar Claudia, cria um mundo onde homens e mulheres e crianças possam viver colhendo da terra o alimento, do ar e do balançar das folhas o sopro da vida. Sim, um filme com Claudia Andujar que desenha uma linha geopolítica improvável, que nasce na então pequena e destruída cidade de Nagyvárad, na Hungria, e alcança florestas amazônicas vivas, pulsantes e cheia de gente.

Um filme que tem o menino Gyuri enquanto espírito-guia, para contar como Claudia viu os nazistas ocuparem sua cidade, invadirem sua casa, o gueto se formar, e como se despediu para sempre, aos 13 anos, de seu pai, deportado para Auschwitz. Seu exílio a trouxe ao Brasil, onde abraçou a causa yanomami e fez deste o seu povo, sua casa, onde ali passou a ser chamada de “mãe”; mas também onde a noite seria para ela “como um útero de uma mulher grávida, quente e seguro. É como a mãe, redonda, e contém a vida”.

Gyuri, então, um filme que parte da guerra, do fim de uma terra, de um extermínio, e alcança a Urihi-a, a “terra-floresta” yanomami que Claudia, ao lado de Carlo Zacquini, Bruce Albert e Davi Kopenawa, ajudou a defender da loucura destruidora do homem, o “povo das mercadorias”, diz Davi.

Aqui, é preciso dizer que aquilo que foi designado de “maneira nebulosa”, escreveu Bruce Albert, como “terras yanomami”, encontra-se consignado desde 1992 nos registros e levantamentos cartográficos do Estado brasileiro, graças à longa luta da Comissão Pro Yanomami (formada por Claudia Andujar, Bruce, Carlo e Beto Ricardo), com o apoio de Davi Kopenawa, sob a denominação de Terra Indígena Yanomami. “Assim consolidada, ela se dá a ver sob a forma de um longo traçado fechado que, encostado na fronteira do Brasil com a Venezuela, circunscreve uma imensidão de floresta tropical de 96.650 km²”. No ano de 2018, a população yanomami no Brasil foi estimada em 25 mil pessoas, que vivem em 322 aldeias.

Mas o entendimento dessas linhas e mapas interessou primeiramente a nós, os brancos aliados, implicados com a integridade desses e de outros lugares onde estão os povos originários disso que se chamou Brasil. (E, se o atual presidente cita números outros para justificar a revisão da demarcação dessas terras indígenas, ele atesta sua ignorância, para dizer o mínimo.)

Foi preciso demarcar para proteger. Foi preciso que o próprio Davi Kopenawa pudesse entender essa necessidade, e foi com Claudia, Bruce e Carlo que ele o fez.“O branco demarca, mas o meu Brasil é livre”, nos disse Davi, numa visão cósmica e cosmológica de liberdade. Decerto seria, se não fossem os homens brancos, os napë, mesma palavra em ianomâmi para designar “branco” e “inimigo”.

***

Agora estamos nos últimos dias de 2017, em um pequeno avião. Claudia, Peter, Carlo e eu, uma pequena e afetuosa equipe de filmagens, sobrevoamos a Terra Indígena Ianomâmi desenhada por ela, por ele, por Bruce, por Davi. Aqui estamos vendo do alto um mar de árvores que dança e que só Omama, o deus ianomâmi, poderia ter criado, e sob elas estão eles, os povos originários desse lugar e que Claudia deu o mundo a ver, para que pudesse, o mundo, protegê-los. Ali, já vemos o Watoriki e sua pedra por onde descem os xapiri, eis a região que os brancos denominaram de Demini. Eis a casa de Davi, vamos encontrá-lo para finalizar as filmagens de Gyuri.

O que nós chamamos hoje de Terra Indígena Yanomami é um pedaço de natureza viva, preservada pelos indígenas. “E o que eles (os brancos) chamam de natureza é, na nossa língua antiga, Urihi-a, a terra-floresta, e também sua imagem, visível apenas para os xamãs, que nomeamos Urihinari, o espírito da floresta. É graças a ela que as árvores estão vivas. A imagem do valor de fertilidade në roperi da floresta também é o que os brancos chamam de natureza. Foi criada com ela e lhe dá riqueza. De modo que, para nós, os espíritos xapiri são os verdadeiros donos da natureza, e não os humanos. Os espíritos sapo, os espíritos jacaré, os espíritos peixe são os donos do rio”, diz Davi, em seu A queda do céu, feito ao lado de Bruce Albert.

Sem os xamãs e seus xapiri, caso toda floresta seja saqueada como vem sendo e como propaga o atual presidente, o céu cairá sobre todos nós, e eis o fim, o fim do mundo.

***

Agora, quase um ano depois que voltamos da Urihi-a, do mato, da maloca, da TI Yanomami, o filme ainda inacabado terá sua primeira exibição internacional fechada, work in progress, gostamos nós de dizer, na improvável cidade de Bergen, na Noruega. Veio dali o primeiro convite de exibição do filme. Estamos no avião, Peter e eu, meio bêbados com essa viagem ao país que mais apoiou a luta dos indígenas pela demarcação de suas terras. “Não é estranho que tenha sido o primeiro país a ser citado pelo já designado chefe da casa civil, a Noruega, justo ela, acusada de querer ‘mandar’ na Amazônia? Basta de ‘interferência’ das potências estrangeiras em nossas florestas nacionais, declara o novo lambe-botas”, me diz Peter, em uma passagem de texto dele, mas que poderia ser minha.

Antes de partir à Noruega, deixei com Claudia um presente, uma fotografia. Levei uma cópia da mesma imagem conosco. Um retrato, um registro proposto por Davi durante o nosso último dia e sua maloca. Ele e Claudia, Fátima, sua esposa, ao lado, estão no centro do Demini. No filme, Davi explica que Claudia é uma mãe para ele. Não uma mãe que carrega um bebê no colo “para lá e para cá; mas minha alma está no colo dela”. Davi fala isso enquanto conduz Claudia ao centro da sua casa, para que façamos a foto. Eis a imagem, entre tantas outras, que talvez seja uma síntese dos tantos anos de luta pela proteção dessas terras, desse lugar, pela integridade da Terra Indígena Yanomami. “Ninguém solta a mão de ninguém”, já disseram, e assim permaneceremos.

Último dia de dezembro de 2018, e lá estamos ao redor da mesa de Claudia, sob a imagem de um indiozinho que repousa no espírito-água. Vamos brindar, eu, Carlo, Peter e Claudia o ano que se foi, a 2019 que se inicia. É o nosso jeito de dançar para que, como Davi nos ensinou, o céu não caia. O nosso jeito de nos inspirar, fortalecer, tomar fôlego no rio azul da foto de Claudia que nos cerca, para confrontar aquilo que tão velozmente fere (nossas) existências plenas.

NOTA SOBRE O FILME
Gyuri foi filmado em 2015 e no final de 2017. Pio Figueirôa fotografou a parte feita em São Paulo. Marcelo Lacerda fotografou a parte que chamamos de “amazônica”. Gustavo Fioravante fez o som direto, que os amigos de O Grivo estão finalizando. Paula Mercedes montou o filme, e articulou um roteiro final comigo, foi e é uma parceira. Márcia Vaz, Carol Ferreira e Luiz Barbosa fizeram e fazem a produção e Moacir dos Anjos nos acompanhou desde o começo. Gyuri tem recursos do Rumos Itaú Cultural, do Prodecine e do Funcultura Audiovisual. E nada teria sido possível se não caminhássemos ao lado dos amigos do Instituto Socioambiental, da Hutukara Associação Ianomâmi, da Galeria Vermelho, além de tantas e tantos, outros e outras igualmente tão fundamentais.

MARIANA LACERDA é roteirista e documentarista.

Publicidade

veja também

Mostra Internacional de Teatro de São Paulo 2019

Alquimia e contrabando de minério num enredo misterioso

A névoa da modernidade