Curtas

Primavera pernambucana no 'Festival do Rio'

Três longas-metragens do estado – ‘Paterno’, ‘Paloma’ e ‘Propriedade’ – competem este mês na ‘Première Brasil’, uma das principais mostras do evento

TEXTO Luciana Veras

07 de Outubro de 2022

Imagem do filme 'Paloma', de Marcelo Gomes

Imagem do filme 'Paloma', de Marcelo Gomes

Foto Still/Open Gate/Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online] 

Ventos de renovação começaram a soprar em setembro no Hemisfério Sul, com a chegada da primavera, e a metáfora de um novo desabrochar – de flores, de mudanças, de tempo – se materializa, também, na expressiva participação do cinema pernambucano no Festival do Rio. Três longas-metragens locais competem na Première Brasil, uma das principais mostras do evento que se espalha até, o dia 16 de outubro, por várias salas cariocas, na primeira edição totalmente presencial desde 2019. Paloma, de Marcelo Gomes, Paterno, de Marcelo Lordello, e Propriedade, de Daniel Bandeira, estão ao lado de outros oito filmes na competição – entre eles, Regra 34, de Julia Murat, cuja obra foi vencedora do prêmio máximo no Festival de Locarno (Suíça). Ao todo, cerca de 70 produções nacionais recentes, entre ficções e documentários e também curtas-metragens, foram selecionadas para a volta do festival.  

Propriedade faz sua estreia mundial, enquanto Paloma, selecionado para o Festival de Munique, na Alemanha, tem sua primeira exibição no Brasil; já Paterno foi destaque, em junho, na edição mais recente do Olhar de Cinema (Curitiba). A confluência e a coincidência são celebradas pelos realizadores. “É primavera mesmo, com todos os Ps possíveis, de Paterno, Propriedade e Paloma, é uma presença significativa do cinema pernambucano contemporâneo na volta do Festival do Rio”, comenta Marcelo Lordello.

Em Paterno, Lordello volta à forma de “subjetificação da imagem”, como ele mesmo conceitua, que demonstrara em Eles voltam – melhor filme no Festival de Brasília em 2012 – para narrar a história pelo ponto de vista de Sérgio (Marco Ricca), arquiteto numa construtora familiar recifense que está de olho numa área de Brasília Teimosa, enquanto lida com a iminente partida – e alguns segredos – do pai adoentado. 

A fotografia sóbria de Barbara Alvarez colabora para a ambiência estética e intimista que o diretor forja, tomando Sérgio e suas contradições como ponto de partida. “Todos os planos, todos os enquadramentos da fotografia, a montagem, tudo com que eu gosto de trabalhar como realizador vem para criar essa subjetificação da imagem, pois tudo é visto pelo olhar dele”, observa Lordello. Para amealhar todo o elenco – Nelson Baskerville e Selma Egrei vivem o irmão e a mãe de Sérgio; Fabiana Pirro e Gustavo Patriota interpretam a esposa e o filho caçula, no qual o protagonista deposita a esperança e a cobrança; e Thomás Aquino é o jovem que ele coopta para conquistar os territórios cobiçados –, o diretor percorreu vários estados (“para desespero da produção”, diverte-se) e trabalhou in loco com cada ator e atriz antes do set (a Continente visitou as filmagens de Paterno em 2017 leia aqui). O resultado é que a família, com suas traições, camuflagens e lacunas, é crível e de alta densidade dramática. 


Marco Ricca vive o arquiteto protagonista do filme Paterno, de Marcelo Lordello.
Foto: Divulgação

Produção da Plano 9 e da Trincheira Filmes, Paterno tem distribuição garantida pela ArtHouse, mas só entra em cartaz no primeiro semestre de 2023. Já Paloma chega às salas daqui a um mês, na quinzena de abertura de novembro, pela Pandora. “Que maravilha, é linda essa resistência do cinema pernambucano, que está presente em bom número, apesar de quatro anos duros que passamos nesse país, com um desmantelamento da cultura que começou antes, na verdade. Mesmo assim, pudemos construir um trabalho artístico de resistência”, celebra Marcelo Gomes, que vê em Paloma, sua sexta ficção em longa-metragem, uma obra “em sintonia com o Brasil de agora, em que temos que resistir e sonhar”. 

Na obra, baseada em uma história real, a personagem-título (vivida pela performer e arte-educadora travesti Kika Sena, em uma atuação magnética) é uma mulher trans que trabalha como agricultora, mora com o namorado Zé (Ridson Reis), cria a filha Jennifer (Anita Souza de Macedo) e tem o sonho de casar na igreja de “vestido branco, véu e grinalda”, como diz o cineasta.  

“Acho importante essa sincronicidade da exibição do filme no Festival do Rio, e depois na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, com esse momento de eleição. Porque a Paloma sofre preconceito e rejeição, mas tem uma frase do Paulo Freire que diz que a esperança é, antes de tudo, um ato revolucionário. E acho que ela faz a revolução do seu jeito, indo à luta e não se desencantando com a realidade dela. Ela tem suas contradições e fragilidades, que é algo que coloco muito nos meus personagens, mas é uma personagem extremamente cativante”, pontua Gomes, que voltou a trabalhar com parceiros habituais – a Carnaval Filmes, de João Vieira Jr. e Nara Aragão, o diretor de fotografia Pierre de Kerchove e Marcos Pedroso na direção de arte.  

No olhar de Daniel Bandeira, Propriedade, Paloma e Paterno espelham, de fato, algo em comum, para além de representar esse (re)florescer do nosso audiovisual num dos mais relevantes festivais da América do Sul. “São narrativas de pessoas que querem muito um futuro, seguir em frente com seus projetos de vida, mas que primeiro precisam lidar com questões que são muito antigas e prejudicam muito seus movimentos e planos para o futuro”, percebe o diretor, que, neste 2022, se viu na inédita posição de descerrar dois longas – o finalmente tão aguardado lançamento comercial de Amigos de risco (2007) e agora a première de Propriedade.  


Malu Galli em cena de Propriedade. FOTO: Helder Lopes/Divulgação

Neste enredo escrito por ele, fotografado por Pedro Sotero (mesmo diretor de fotografia de Bacurau), montado por Matheus Faria (Inabitável) e produzido pela Vilarejo Filmes, Malu Galli interpreta uma mulher que, traumatizada por um sequestro recente, decide passar um dia na propriedade da família, na Zona da Mata. Ao chegar lá, no entanto, depara com um levante dos trabalhadores rurais e se refugia dentro do seu carro.

“A ideia surgiu em 2006, como uma experiência narrativa de linguagem em que me propunha a contar uma história que se passasse toda dentro de um carro. A partir de 2010, da eleição de Dilma Rousseff, o Brasil acabou se infiltrando demais na história, que ganhou o formato atual, com a polarização na pauta, definitivamente. O choque entre Norte e Sul, entre quem está dentro e quem está fora, quem é rico e quem é pobre, pautou a discussão política até hoje e, atualmente, estamos vivendo o paroxismo dessa cisão da sociedade. E terminamos de filmar em 2018, justamente no dia do primeiro turno da eleição que acabou elegendo Jair Bolsonaro. Durante esses quatro anos, o filme só fermentou e ganhou relevância até chegar a esse momento de discutir a incomunicabilidade entre as classes e como o medo alimenta a violência, e a violência política, inclusive”, sustenta Daniel.  

Que a primavera pernambucana no Rio de Janeiro ajude a aprofundar as reflexões trazidas pelos três filmes e a reverberar a máxima de Nelson Cavaquinho: tanto no cinema como no Brasil, o sol há de brilhar mais uma vez.  

LUCIANA VERAS, repórter especial da Continente e crítica de cinema. 

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