Curtas

Penitência

Livro de estreia de Teresa Coelho traz confissões em formato poético

TEXTO Marina Pinheiro

03 de Novembro de 2021

Infância da escritora recifense é raiz temática do seu novo livro

Infância da escritora recifense é raiz temática do seu novo livro

Foto Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 251 | novembro de 2021]

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“Alguém para gostar de mim tem que ser triste como eu”, conduz o refrão de Arrependimento, música da banda de brega Labaredas. Esses versos ressoam na infância de Teresa Coelho, escritora nascida no Recife, mas criada em Bonito, município no interior de Pernambuco. Arrepender-se – como sugere o título da canção – é o eixo central de Penitência, seu livro de estreia lançado em julho pela Editora Primata. Talvez por isso a frase tenha se encaixado na abertura do percurso poético em que ela se lança às próprias confissões.

Teresa rememora seus anos na cidade onde cresceu contando sobre um vizinho: “Tinha um senhor que morava em frente à casa da minha avó e, todo domingo, escutava Labaredas lavando o carro. Até o nome da filha dele é Kelly, por causa da música”. O trecho vem direto da faixa onde o vocalista do grupo, Mittó, se declara: “Ô, Kelly, você é para mim um pedaço de mim!”. “Se tinha minha infância, tinha que ter Labaredas. Não ia ter graça se fosse Radiohead”, diz a escritora em entrevista, rindo.

A época em que viveu no interior de Pernambuco foi também quando surgiu a relação da poeta com as palavras, experimentando a escrita literária pela primeira vez aos 11 anos, após uma aula de catecismo. Só se aproximaria da poesia na adolescência, depois de ter experimentado os diários. “Lá é como o início de tudo, o ponto-chave. Acho que a infância é muito importante quando você escreve. Às vezes, parece que esse esconderijo da primeira criança sempre acaba voltando, e, para mim, sempre na literatura. Como fui filha única, muito isolada, tudo acabou virando escrita”, diz.

Essa infância é a raiz dos temas do livro, da qual partem todos os outros, em um entrelace que ganha tom mais amargo quando contrasta o passado com o presente. São reavivados fantasmas como o fim de um relacionamento e o distanciamento de ambientes familiares, e, de uma busca por formas de lidar com a culpa diante deles, surge a divisão do livro em três partes.

O título da primeira carrega o desejo de entregar-se: Oferenda. A entrega é destinada ao leitor, desvelando segredos e detalhes de lembranças íntimas. Mas, em cada título, também é dedicada a elementos e pessoas resgatados de memórias antigas. No poema Ao tempo que não perdoamos, por exemplo, admite: “desistimos de nossos empregos/ engordamos nos últimos anos/ e não conseguimos sair de casa antes das 7h da manhã/ mas não somos covardes/ ainda sentimos vontade de fumar”.

Esse sacrifício aberto dá partida a uma jornada através da Penitência, da qual Ruína é a segunda parte. É quando, após confidenciar os pecados, são deixadas para trás as dedicatórias para trilhar uma pena solitária. Nesta, os detalhes da vida adulta dão cor à narrativa. Ela é seguida por Renúncia, uma aceitação do castigo imposto. São momentos quando a temporalidade dos poemas se mistura, evidenciando que foram escritos ao longo de várias fases da vida da poeta. Incluindo composições de 2011 a 2020, atravessam períodos como o retorno a Recife, cidade onde Teresa mora há 10 anos.



Os percursos feitos pela cidade são acompanhados pelo mar, com o qual personagens têm relações íntimas. Em Solidão é apenas ter o destino humano, um capitão é atirado ao oceano sem saber que está morrendo. Outros escritos assistem a sereias sendo decepadas em embarcações, enquanto monstros marinhos visitam berços de crianças. Tendo vivido entre as cidades das cachoeiras e rios, ela conta: “Minha relação com o mar parece próxima, mas é de quem vê, não de quem entra. A água esteve presente na minha vida, de forma que sempre me assustou”. O marítimo se põe ao lado dos términos e rupturas, evocando a sensação de afogamento. “A partir do momento em que eu me vejo na iminência de ser engolida, preciso me afastar. É como se eu só mergulhasse nesse mar quando estou escrevendo”, diz.

Estar submersa também é símbolo de uma dualidade. A linguagem é aberta e confessional, mas envolve, ao mesmo tempo, um jogo de memórias estilhaçadas: os poemas também incluem uma mistura com a ficção, oscilando o percurso da leitura entre momentos de escuta, quando conseguimos vislumbrar a fala pessoal da escritora, e de espaço para a identificação de quem lê. Assim, o texto confunde e revela. Sobre isso, ela pontua: “Eu sempre tive muita dificuldade de ser direta e achava que ia conseguir na literatura: aí foi que me enganei mesmo. Então, congelo a memória e coloco um verso do que tem que ser lido, e depois é como se estivesse enganando, passando tempo, brincando com o leitor”.

Essa disputa é também característica de referências da autora, como a carioca Ana Cristina Cesar, que desmontava e remontava cartas e diários, tensionando os fios entre o real e o imaginado. A poeta marginal encontrou na literatura um local onde “o ‘inconfessável’ toma forma”, o que deixou claro quando, em Inéditos e dispersos (2001), escreveu: “Só de não ditos ou de delicadezas se faz minha conversa, e (para não ficar louca e inteiramente solta neste pântano), marco para mim o limite da paixão”. O mecanismo desse desmonte é parte de Penitência, onde trecho é dedicado a Ana. Nele, lemos: “não virás para me mostrar o caminho/ já o deixaste por inteiro na perpetuação/ do avesso”.

Algo de Adelaide Ivánova, Marília Garcia e Ana Martins Marques também foi deixado em Teresa, tendo as autoras inspirado nela uma poética da transparência ao abandonar o hermetismo narrativo em suas próprias obras. “Na literatura escrita por mulheres, essa questão da identificação está tão ali, na cara, que parece que você está beijando o papel, ao mesmo tempo em que aquilo está fugindo também. Porque é uma simplicidade tão bonita, que se estranha”, diz Teresa. “É uma observação que eu estou tentando acompanhar, e, nos últimos anos, comecei a me atinar: preciso ler mulheres vivas!”.

O livro iniciado com a banda Labaredas menciona também Kurt Cobain, Hilda Hilst e Letrux, influências contemporâneas com algo de um misticismo nostálgico, presente nos limites sobre os quais se equilibra Penitência. Um jogo de lembranças, sustentado pelo medo que sente quem permanece na fronteira entre o mergulho e o aterramento, é traduzido no trecho: “tu sabes que nunca deverias ter ido/ agora atravessaste/ e não há bandeira a ser erguida/ (...) naufragamos antes”.

MARINA PINHEIRO é jornalista em formação pela UFPE e repórter estagiária da Continente.

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