Curtas

Os coadjuvantes

Um olhar sobre o ecossistema artístico do país

TEXTO Erika Muniz

01 de Junho de 2022

Humor e tragédia se equilibram na ficção de Clara Drummond

Humor e tragédia se equilibram na ficção de Clara Drummond

Foto AUSTĖJA ŠČIAVINSKAITĖ/DIVULGAÇÃO

[conteúdo na íntegra | ed. 258 | junho de 2022]

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Certos comportamentos e códigos integram – e entregam – muito das práticas sociais de cada um. Essas maneiras de agir e de reagir ao mundo comunicam sobre vivências, caminhos percorridos, ambientes frequentados, livros já lidos, álbuns escutados, séries e filmes assistidos. Mas dizem também um tanto sobre os contextos em que tudo isso foi experimentado. Em Os coadjuvantes (2022), novo livro da escritora e jornalista Clara Drummond, Vivian é uma curadora de arte independente do Rio de Janeiro com uma intensa imersão na cena cultural de sua cidade. Na narrativa, as subjetividades, os personagens e os lugares que atravessam a vida da protagonista são apresentados a partir de um viés íntimo, por vezes crítico, e desconcertantemente cruel. A cada capítulo, um retrato de uma certa classe média alta à rica, ligada às artes visuais e suas contradições vão sendo emoldurados entre trechos que se equilibram entre o humor e a tragédia.

Vários dos símbolos que costumam integrar parte do ethos dessa classe vão sendo pincelados no texto. Sob a percepção de Vivian, a narrativa vai demonstrando os valores, as certezas e evidenciando algumas das fissuras que circunscrevem parte do ecossistema artístico do país. Em meio aos acontecimentos da vida da personagem, detalhes que compõem da mise en scène aos cenários – um chão de taco de madeira da casa da protagonista, no Bairro de Botafogo, ou a fotografia de Francesca Woodman, por exemplo – aparecem e vão revelando sobre os gostos compartilhados pelos integrantes desses círculos sociais. A autora descortina, por meio de ironia, as fragilidades nos discursos e as vivências artificializadas que parte das classes mais abastadas do país – tanto do ponto de vista financeiro, quanto do capital social que possuem.


Imagem: Divulgação

Carioca, Clara Drummond reside, atualmente, em Lisboa. Além de Os coadjuvantes, ela também escreveu A festa é minha e eu choro se eu quiser (2013) e A realidade devia ser proibida (2015).“Meu primeiro livro foi a primeira obra de ficção que completei. Não tinha nada na gaveta, nem conto nem nada. Tenho uma certa dificuldade em escrever contos. Escrevi o primeiro livro e fez um certo buzz. As pessoas gostaram, saiu em vários lugares. Naquela época, eu era jornalista de moda, trabalhava em uma revista, pouco depois comecei a frilar. À medida que ia escrevendo os livros, comecei a abranger outros temas”, conta. Hoje, ela tem escrito bastante sobre comportamento e tem se interessado por obras de autores como Cynthia Cruz, Jack Halberstam, David Graeber, entre outros.

Os coadjuvantes é um livro inquietante, sobretudo pela maneira crua e sem filtro com que Vivian apresenta os outros personagens – e a si mesma – ao longo das páginas, seja em seu âmbito familiar ou no campo profissional. Há personagens trazidos ao longo da narrativa que facilmente poderiam remeter a arquétipos comuns da atual classe média alta à rica do país. Alguns exemplos são: o rapaz “gratiluz” que adora a natureza, mas não tem como costume aprofundar discussões políticas; a matriarca da família “tradicional” que, nos últimos anos, teve uma diminuição considerável em sua renda, mas prefere não abrir mão do vinho importado no jantar para manter as aparências na vizinhança; ou, ainda, a jovem herdeira cuja maior preocupação é não parecer tão superficial sobre temas sociais e ligados à cultura. Com pitadas de humor, Clara Drummond consegue alfinetar essas e outras personas, além de evidenciar os privilégios e as assimetrias em que as relações sociais estão ancoradas.

Dentre os principais elementos trazidos na narrativa de Os coadjuvantes, a forma com que o patrimonialismo se espraia pela sociedade talvez seja um dos que mais vibram no livro. Ao trazer o universo das artes, ela propõe reflexões sobre como essas contradições estão muito além do âmbito empresarial e também aparecem nos ambientes considerados mais progressistas. “É algo como se toda amizade fosse um possível networking e isso se dá não só por uma ‘neoliberalização’ das relações. Como a gente vive em um universo em que o trabalho é muito precarizado e existe uma ‘pejotização’ (pessoas jurídicas) do ambiente de trabalho, principalmente em um universo que está fora do mundo corporativo, não é mais tão comum a gente ver uma pessoa que está há mais de dois, três anos no mesmo emprego. (…) Isso faz com que você precise cultivar relações que possam, porventura, lhe levar ao seu próximo emprego”, comenta a autora.

Além de trazer as distinções geradas não apenas pelo capital financeiro, a escritora evidencia também como o capital cultural e social repercutem nas dinâmicas para além da economia. Os coadjuvantes traz uma experiência de leitura interessante, muito por sua protagonista um tanto controversa e ambígua, e pelo modo com que a narrativa se faz ácida e crítica a respeito de como vive e o que consome parte das elites ligadas às artes. Embora a história se passe na capital carioca, certas práticas e discursos construídos historicamente se espraiam para além do Rio, já que – respeitando as idiossincrasias e cultura de cada local – há estruturas e modos comuns a diversas cidades do país.

ERIKA MUNIZ é jornalista com formação em letras.

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