Curtas

O silêncio da noite é que tem sido testemunha das minhas amarguras

Abordando a matéria-prima do Sertão, a poesia, documentário de Petrônio Lorena descortina a vida de quem tem como missão repassar arte, conhecimentos e cultura pela oralidade

TEXTO Luciana Veras

27 de Março de 2018

Severina Branca é protagonista e uma das poetas do filme, cujo título vem de uma frase dela. Aqui ela está ao lado do poeta Jorge Filó

Severina Branca é protagonista e uma das poetas do filme, cujo título vem de uma frase dela. Aqui ela está ao lado do poeta Jorge Filó

Foto Divulgação

“Tá tudo bem, sim, eu não entendo muito dessas coisas não, mas por mim tá tudo bom”, dizia Severina Branca por telefone à Continente no final da noite de uma sexta, pouco antes de ela e o diretor Petrônio Lorena acompanharem a exibição de O silêncio da noite é que tem sido testemunha das minhas amarguras em São José do Egito. Antes de estrear no Recife, onde está em cartaz no Cinema do Museu, em Casa Forte, o documentário circulou pelo interior de Pernambuco: Arcoverde, Belo Jardim, Triunfo, a Serra Talhada natural do cineasta e Caruaru.

Severina é musa, estrela, protagonista e uma das poetas retratadas por Petrônio. A frase extensa que dá título a este que é o segundo longa dele, aliás, veio dela. “E tem a ver com aquele momento de contemplação da madrugada, quando a cantoria já terminou e os poetas, indo para casa, começam a pensar naqueles versos e em como eles fazem sentido”, conta o diretor. O silêncio da noite é que tem sido testemunha das minhas amarguras deve ser visto por todos aqueles que adoram poesia e cantoria e, também, por quem se interessa por narrativas documentais que fogem dos esquemas convencionais.



“A linha cronológica do filme é como se fosse um único sábado: começa com a feira e termina de madrugada”, explica Petrônio, que começou a viajar pelos sertões da Paraíba e de Pernambuco ainda em 2010. Foram sete viagens ao todo, as primeiras delas “sem grana nenhuma” e tampouco sem equipamento, pois o diretor queria pegar intimidade “e confiança” com aquelas figuras que viria a retratar. Jorge Filó, Bia e Antônio Marinho (filha e neto de Lourival Batista, o Louro do Pajeú), Graça Nascimento e Rildo de Deus, entre outros, são registrados em instantes preciosos e numa linguagem ora rebelde, ora transcendental. Um filme de Petrônio, afinal, não poderia ter uma composição imagética banal.

E tudo isso tem a ver, também, com a matéria principal sobre a qual ele se debruça: a criação. De onde surgem os versos, os motes, as glosas? De onde vem a chama que inspira os poetas e cantadores? Entre um gole e outro de cerveja, entre uma visita e outra a bares ou cabarés, entre festividades e conversas na porta de casa, O silêncio da noite… descortina essa vida de quem se encarrega de repassar arte, conhecimentos e cultura pela oralidade. E respeita o tempo e o espaço daquelas pessoas retratadas – aliás, forja uma nova relação de tempo-espaço, um tempo dilatado, como se as horas demorassem a passar enquanto poetas declamam suas rimas.

Distribuído pela Inquieta Cinema, o documentário foi exibido pela primeira na 40ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, ainda em outubro de 2016. Questões relativas a orçamento protelaram a estreia, só ocorrida agora nos idos de março. “Mas sabia que acho até bom esse tempo todo?”, revela Petrônio Lorena, “porque o filme amadureceu e criou uma expectativa em todas as pessoas que nele aparecem, uma ansiedade mesmo, que acho até legal”. O silêncio da noite é que tem sido testemunha das minhas amarguras é contra a pressa que rege os tempos atuais, é contra as necessidades de rótulos e contra as normas que decretam que o Sertão e tudo que dele deriva estão mortos. Se esse não for um motivo atraente para a ida ao cinema, que o sejam os versos de Severina que denominam o filme – afinal, nesta longa noite que tem anestesiado o Brasil desde 2016, é o silêncio quem tem sido testemunha das nossas amarguras.

LUCIANA VERAS é repórter especial da Continente e crítica de cinema.

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