Curtas

O Recife nas fotos do Kiosque do Wilson

TEXTO Luciana Veras

11 de Setembro de 2023

O Kiosque, situado na Rua Nova

O Kiosque, situado na Rua Nova

Foto Acervo Wilson Carneiro da Cunha/Kiosque do Wilson

[conteúdo na íntegra | ed. 273 | setembro de 2023]

Quando Beatriz Lima nasceu, em 1992, fazia seis anos que seu avô materno tinha falecido. Ele tinha 67 anos quando morreu de câncer, mas havia resquícios da sua presença em todas as reuniões familiares que Bia, ainda criança, frequentava. Wilson Carneiro da Cunha e Conceição tiveram cinco filhos - Wilson, que todo mundo só chamava de Gringo, Ramona, Ramon, Olegária e Acácia - e todos eles ajudaram a debulhar para a neta a história do fotógrafo autodidata, colecionador compulsivo, garimpeiro de miudezas e farejador das pequenas ternuras do cotidiano que se notabilizou como o homem por trás do Kiosque do Wilson.

Entre 1953 e 1983, Wilson montou, gerenciou e divulgou esse kiosque, cuja grafia era assim em homenagem ao francês que ele e sua mulher gostavam de cultivar, localizado no oitão da Igreja de Santo Antônio, na Rua Nova, no coração do centro do Recife. Quem já viu Retratos fantasmas (Brasil, 2023), novo documentário do realizador pernambucano Kleber Mendonça Filho pode até nem ter ouvido falar em Wilson, mas certamente se encantou com várias imagens do seu acervo – imagens, estas, que mostram o cotidiano da capital pernambucana naquelas décadas em que o centro, seus cinemas, seu comércio, suas ruas e até mesmo suas decorações natalinas estavam em ebulição.

“Ele tinha um kiosque cujo acervo, de fotos da cidade, de pessoas, era fantástico. Ele fazia fotografia como um business: você passava lá, ele oferecia o serviço e você pagava para ter uma foto sua. Você pagava e pegava a foto no outro dia. Ele fazia muita coisa em 16mm também. Então, quando fizemos uma chamada pública para que as pessoas que tivessem fotos do Recife nos procurassem, para entrar no filme, a neta dela nos respondeu e a família, muito generosa, nos forneceu muitas fotos”, recorda Kleber. “Aliás, descobri muitas fotos em famílias. Acho que toda família tem um arquivista: pode ser a filha, a prima, a tia, o tio, o avô, mas sempre tem alguém que guarda as coisas de uma maneira melhor do que outra”, acrescenta o diretor.

Na família de Wilson, durante muito tempo essa pessoa foi Olegária, até Bia enveredar pelo trabalho de arqueologia imagética familiar. “Descobri que ele aprendeu a fotografar sozinho, depois que fez excursão com algum fotógrafo em uma visita no interior, e aí na volta decidiu montar o quiosque. Antigamente, a Rua Nova já tinha muitos fotógrafos, era conhecida por isso, mas os fotógrafos tinham escritórios nos prédios e as pessoas tinham que subir nos estúdios. Foi por isso que meu avô decidiu ter um estúdio na rua: para ser um lugar próximo do público. Como ele e vovó tinham um grande apreço pela cultura francesa, acharam interessante e chamativo botar ‘kiosque’ em vez de ‘quiosque’”, conta Bia, arte-educadora e professora que hoje se esmera em restaurar e preservar o legado do avô.


Wilson, com sua esposa Conceição.
Foto: Acervo Wilson Carneiro da Cunha/Kiosque do Wilson

Ela tomou para si a tarefa de mapear os passos de Wilson: “Ele e minha avó faziam tudo em casa, revelando os negativos, sem segurança. Sempre me disseram que a mão do meu avô era toda escura por causa dos químicos. Vendo as fotos dele, percebo que ele tinha um olhar mais artístico, muito rico, para fotografar coisas inusitadas, como os flagrantes dos batedores de carteira, do menino fazendo xixi na rua, do mendigo e das pessoas que viviam em situação de rua durante a ditadura militar, e também espetáculos como circo, que ele adorava. Além disso, sempre achei muito interessante o fato do kiosque ser um espaço expositivo. Quem passava pela rua Nova via tudo aquilo exposto”.

Em 2019, ela decidiu inscrever um projeto no Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura - Funcultura na categoria de pesquisa em fotografia de acervos. Com a aprovação de Wilson Carneiro da Cunha – Dos instantâneos de rua aos registros caseiros no edital, veio a ideia de, partindo da pesquisa, ampliar o horizonte. “Pretendo fazer outras coisas porque acho que merece e que tem muito pano pra manga. Meu avô, quando ainda era vivo, já tinha vendido uma boa parte do acervo para a Fundação Joaquim Nabuco. Mas ainda temos aqui cerca de 700 a 1000 fotos. Quando fui fazendo esse resgate, minha ideia era justamente de devolver isso tudo, a história dessas fotos, esse acervo privado que, na verdade, conta também a história pública do Recife. O perfil no Instagram @kiosquedowilson já serve um pouco para isso. Para o Funcultura, o produto entregue é uma publicação online, mas creio que o futuro nos reserva um livro, um fotolivro ou uma exposição”, antecipa Bia Lima.

Quando o cartaz de Retratos fantasmas foi descortinado ao mundo em maio, antes da exibição hors concours no Festival de Cannes, Bia, sua mãe Ramona e toda a família Carneiro da Cunha comemoraram a foto de Wilson como base da arte feita por Clara Moreira. Agora, com a repercussão do documentário, visto por mais de 55 mil espectadores no Brasil desde a estreia em 24 de agosto, o debate sobre a memória e a reflexão sobre o dever de não esquecer atravessam um país que cultiva uma espécie de amnésia seletiva e, assim, agride heranças, legados, tradições.

“O acervo é da família Carneiro da Cunha, mas não só dela, por isso tem que ser mostrado. É a história da cidade, a história de muitas famílias que faziam o passeio no domingo para ver o navio, é a memória afetiva de como a cidade se transforma e sofre seu processo de transformação. Wilson fotografou, por exemplo, as demolições do Bairro de Santo Antônio e a destruição da Igreja dos Martírios. A forma como ele gostava de registrar a vida, dando luz a tantas outras histórias e narrativas de transformações, também incide na preservação de paisagens e prédios através de suas fotografias. Era como se Wilson não conseguisse se desligar da rua, das livrarias que frequentava, das esquinas onde circulava e dos cinemas de rua para onde ia”, constata Bia.

Nesta incrível história da neta que, ao investigar os arquivos de Wilson Carneiro da Cunha, acabou conhecendo o avô e também se (re)encontrando, os tais retratos fantasmas que persistem em nossa constituição genética ecoam os versos de Nelson Ferreira, em um frevo que diz tanto sobre o Recife, os cinemas do centro, o filme de Kleber Mendonça Filho e a família de Bia Lima: “Quem tem saudade não está sozinho, tem o carinho da recordação”.

LUCIANA VERAS, jornalista

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