O escritor argentino Júlio Cortázar defendia a ideia de que um conto deve ganhar o leitor por nocaute. Já Neil Gaiman, autor britânico, enxerga o conto como uma pequena janela para outros mundos que nos permite fazer uma viagem rápida, a tempo de voltar para casa no jantar.
Em O hóspede (Editora Vacatussa, 152 pp), livro de estreia do cineasta e pesquisador Leo Falcão na literatura, as narrativas unem as duas teses: são ágeis e diretas como os melhores ganchos de direita nos combates do boxe, ao mesmo tempo que nos levam a um passeio por novos e desconhecidos lugares.
O livro reúne oito contos de ficção com histórias povoadas por seres misteriosos, acontecimentos inexplicáveis e fatos incompreensíveis. Embora cada conto possa ser lido de forma independente, a leitura desvela uma série de conexões entre eles com um personagem que passeia por todas as histórias, seja como protagonista, coadjuvante, narrador ou literalmente alguém que está só de passagem.
Apesar de exercitar narrativas autorais há mais de 20 anos como cineasta, é a primeira publicação de ficção literária do autor. “Na verdade, eu sempre escrevi. E sempre usei a escrita de forma instrumental e até técnica, para entender sintaticamente como e quando usar uma palavra. Mas escritor, mesmo, demorei a me convencer. Eu me enxergava muito mais como um escritor de histórias em quadrinhos”, revelou Leo.
Foi a partir da visão e da bênção de uma escritora que o autor passou a aceitar o título. “Me vi como escritor pela primeira vez quando estava estagiando no Núcleo de Guel Arraes e mandei uns textos para Adriana Falcão. Ela achou muito bons e me disse: ‘Parabéns! Você é um escritor’”, recordou. A passagem é lembrada e a autora é uma das citadas nos agradecimentos dele no livro.
Nos contos, em meio a histórias de pesquisas em documentos históricos, expedições arqueológicas, turbulências aéreas, disputas empresariais e reflexões sobre a arte e a religião, o leitor é convidado a coletar pistas e estabelecer conexões.
O autor tece as histórias como um novelo, no qual a leitura vai desvelando, promovendo uma espécie de investigação do leitor na tentativa de desvendar os estranhos acontecimentos que entrelaçam os contos e saber mais sobre um certo personagem misterioso. As escolhas narrativas, por sua vez, prezam pela variedade, por diferentes perspectivas e ritmos. Os contos apresentam um mundo semelhante ao nosso, mas envolto numa aura sobrenatural.
Em entrevista por chamada de vídeo à Continente, o gentil escritor revela – em meio aos inúmeros livros da estante do seu escritório – que a história de O hóspede quase foi publicada anteriormente por outra editora. “O projeto ficou engavetado durante algum tempo, até que o Thiago Correia, editor da Vacatussa, disse que estava interessado em dar continuidade a uma série que eu tinha com o Marcelo Pedroso sobre roteiros de curtas pernambucanos e me pediu um material. Mandei roteiros, storyboards e comentei com ele a minha ambição de atuar na literatura”, contou.
A divisão episódica das histórias e a construção pouco usual, com a ligação entre os contos, quase que num formato de coletânea, chamou a atenção do editor pernambucano. “Então eu começo a me ver como escritor também agora, quando esse meu primeiro livro saiu. Então foram esses dois momentos definitivos: um há 24 anos, com a Adriana Falcão, e agora, quando lanço O hóspede.”
A publicação do livro acendeu uma fagulha adormecida no cineasta. Profícuo e criativo, Leo Falcão já tem planos de lançar novas histórias que permeiam o universo que ele vem construindo tanto no cinema quanto na literatura e em outras expressões artísticas. “Já tenho outros projetos na agulha, com alguns trechos escritos inclusive. Tem a continuidade desse livro, esse é o primeiro de quatro da mesma série. Existe um arco mais longo para esse personagem que entrelaça os contos”, antecipou. Segundo Leo, todas as produções se inserem dentro do mesmo contexto de realismo fantástico que marca O hóspede, mas explorando outros formatos, como séries, filmes e até histórias em quadrinhos.
Fato é que a vocação multiartística do escritor é reafirmada no modo como ele constrói os personagens e na descrição precisa e breve dos cenários onde as histórias acontecem. Como numa cena de cinema, formam-se imagens na cabeça de quem as lê. Ao final do livro, Daniel Pedragón, personagem misterioso que atravessa todos os contos, tem sua imagem nitidamente formada no imaginário dos leitores. É um personagem naturalmente cinematográfico; então, nada mais natural do que ele migrar para alguma aventura na sétima arte. Leo também assina as ilustrações do livro.
“A imagem sempre foi muito forte pra mim, o fato de querer ser desenhista de história em quadrinhos quando era adolescente é um reflexo disso. Ao mesmo tempo, existe uma parcela de metáfora nas imagens sugeridas tanto no Sujeito oculto (2022), meu primeiro longa-metragem de ficção, quanto no livro”, explicou. De acordo com o cineasta, há uma simbiose entre cinema e literatura que marcam o seu ofício e isso fica explícito nos seus dois lançamentos deste ano. E, apesar de ter um personagem norte, nem sempre os contos nasciam dele e até por isso ele surge de passagem em algumas das histórias.
Em sua produção, a amálgama de referências e as expressões artísticas em que atua se fundem em uma perfeita harmonia. “Dialoga muito com a tradição ibero-americana do realismo fantástico, que bebe em Cortázar, Machado de Assis e Ítalo Calvino. Ao mesmo tempo, tem muita ligação com o fantástico horror inglês, em uma dimensão que conversa mais com a reflexão existencial”, indica. Em determinado momento da conversa, em um tom de brincadeira, Leo define sua literatura como muito visual e seu cinema como literário. Apesar de não se levar a sério, não haveria definição mais adequada.
Inclusive, há na história de Sujeito oculto um personagem que aparece em um dos contos d’O hóspede, em mais uma demonstração da natureza transmidiática dos projetos desenvolvidos pelo cineasta. “O Hector Fao é o personagem que conecta os dois. Ele aparece no quarto conto, e surgiu em um curta que eu lancei em 2009, vivido pelo Irandhir Santos (foi o primeiro papel dele no cinema, inclusive), e ele retomou agora com o Rodrigo Garcia. O interessante é que o Hector Fao do Irandhir é um, o do Garcia é outro e o do livro é um meio termo entre os dois”, compara.
Leo Falcão ainda é professor universitário e, entre uma aula e outra ou entre um roteiro de um filme e um documentário, se organiza para criar novos projetos. Além da citada série de continuações de O hóspede, há uma série de romances, um projeto de histórias em quadrinhos e uma produção seriada para TV. Histórias que se conectam entre si, direta ou indiretamente. Assim como o lendário e impávido pugilista norte-americano Muhammad Ali, Leo Falcão flutua como uma borboleta e ferroa como uma abelha, só que,ao invés de socos, ele desfere boas histórias.
YURI EUZÉBIO, jornalista.