Curtas

O adeus do marujo

O encontro entre Flávia Bomfim e o Almirante Negro

TEXTO Mayara Moreira Melo

25 de Novembro de 2022

A artista Flávia Bomfim trabalha o bordado sobreposto a fotos de jornais, tratadas em azul por meio de cianotipia

A artista Flávia Bomfim trabalha o bordado sobreposto a fotos de jornais, tratadas em azul por meio de cianotipia

Imagem Divulgação

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O mar
nos leva a diversos lugares, e é possibilitador de diversos atravessamentos. O mar foi testemunha do encontro de Flávia Bomfim com João Cândido, através da relação afetuosa que a artista visual e ilustradora estabeleceu com o líder da Revolta da Chibata e com a imensidão da água do mar. Foi assim que Flávia escreveu, desenhou, pintou, colou e bordou O adeus do marujo (Pallas, 48 pag., 2022). “Sentamos em um cais sem despedidas… Também não esperávamos nenhum barco. Ele me mostrou fotos, me ensinou pontos e me contou detalhes", dimensiona a escritora neste seu novo livro infantojuvenil.

A revolta anunciada com um tiro de canhão ocorreu no início do século XX e mudou a rota da marinha brasileira que, mesmo após a abolição da escravidão, no final do século XIX, continuava a torturar e penalizar os marinheiros, em sua maioria homens negros e pobres. João Cândido vinha de uma família de escravizados e, após navegar por outros mares e ideias, nutriu-se de esperança por mudanças nas relações de trabalho para sua categoria. Ao lado de seus companheiros, tomou o leme dos navios de grande porte brasileiros, conhecidos como encouraçados, reivindicando o fim das chibatadas e explorações.

Apesar de o Senado aprovar a anistia dos revoltosos, após os participantes da Revolta da Chibata liberarem os navios, eles foram dispensados da Marinha. As promessas também não foram cumpridas e, depois de um motim, mais de 600 marinheiros foram detidos em um presídio na Ilha das Cobras, na Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro. João Cândido foi condenado à masmorra, sendo em seguida encaminhado ao Hospital Nacional dos Alienados. Durante seus dias de isolamento, o marujo teceu sua história através de linhas e agulhas que perfuraram tecidos, criando narrativas em forma de bordados.


Imagem: Flávia Bomfim/Divulgação

São várias as identificações de Flávia com João Cândido, mas é justamente o bordado que a conduz a um caminho de leveza e delicadeza inigualável. A poesia do bordado está tão presente no seu livro O adeus do marujo, que, através de uma narrativa sutil, destaca a vida e a luta existentes na história desta revolta. Observamos isso nos bordados sobrepostos às fotos de jornais, material tratado em cianotipia pela autora, que interpreta com precisão a batalha travada pelo almirante negro e seus irmãos de luta.

Ao longo das páginas deste livro para crianças de todas as idades, a aparição dos rostos e expressões dos marujos é tão insistente e contínua como a imensidão do mar. A imagem dos revoltosos dimensiona a luta contra a opressão colonial e patriarcal, crítica social presente em outras obras de Bomfim, que foram recentemente comentadas por Fernanda Maia, em Portfólio da edição 259 (jul/22) da Continente.

Após ondular muitas vidas, memórias e desejos em alto mar, João Cândido, tomado pela bravura e pelo cansaço de suas costas moldadas por desenhos da violência, conduziu o rumo da história e das embarcações. Apesar disso, foi sabotado e por muito tempo incompreendido, assim como muitas outras figuras históricas do Brasil.


Capa do livro. Imagem: Divulgação

 “O que pode matar o sonho de um marinheiro? O que nos faltou para entender sobre a fúria e os desejos de João?”, são indagações que atravessam o livro. A artista visual baiana vai tecendo gradualmente essa discussão enquanto apresenta referências aos bordados feitos por João Cândido. São imagens que oferecem aos leitores a possibilidade de rememorar a bravura do marujo e celebrar a importância de João Cândido através da poética amizade do Almirante Negro com o mar. 

A autora vai estar neste sábado (26), a partir das 15h, na Biblioteca do Goethe-Institut Salvador, para o lançamento d’O adeus do marujo, quando acontece a leitura do seu livro e contação de histórias com Emillie Lapa e Natalyne Santos, além da oficina Mar de Sonhos, ministrada pela própria Flávia Bomfim. 

MAYARA MOREIRA MELO, jornalista em formação pela Universidade Católica de Pernambuco e estagiária da Continente.

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