Bordado criado para ilustrar capa da edição 126 (jan/2018) do jornal Le Monde Diplomatique Brasil. Imagens: Flávia Bomfim/Divulgação
Sua atuação profissional inicial é na área da psicologia social comunitária, no Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), até que decidiu, em 2008, realizar um ano sabático, quando foi viver na França, ainda sem dominar a língua local, onde passa a trabalhar no setor infantil de uma livraria. Fase a qual é apontada como um divisor de águas, revela Flávia na mesma live para a Banca Tatuí. No contexto europeu, acessa diversas possibilidades de criação e narrativas do livro enquanto corpo criativo, experiência que também lhe forneceu uma realidade melhor provida de recurso gráfico e editorial, por exemplo, quando comparada ao cenário brasileiro.
Ao mesmo tempo, Flávia Bomfim acredita que o livro ilustrado é uma forma de acesso às peculiaridades sociais e culturais de um país, de modo que a sua experiência na livraria francesa foi um momento não só de intercâmbio linguístico e cultural, mas também artístico. Por isso, a dimensão social e a cultural compreendem o fazer criativo dela. Hoje, experiente no mercado de publicações independentes tanto na criação e curadoria como na produção autoral, Flávia considera que, no Brasil, o acesso a esse suporte ainda precisa ser ampliado, mas pondera que também é um território de muitas intenções e “que pode ser ocupado de inúmeras e infinitas maneiras”. Por isso, acredita que qualquer uma delas é legítima, considerando as diferenças culturais e mercadológicas entre o contexto francês e o brasileiro.
Bordados criados para as capas dos livros Pensamento feminista negro (2019) e Interseccionalidade (2021), publicados pela Boitempo. Imagens: Flávia Bomfim/Divulgação
Na seara editorial dos livros ilustrados, uma de suas obras mais recentes que corporifica esse território de intenções é Camuflagem (2021), livro desenvolvido com apoio da Lei Aldir Blanc, lançado pela Movimento Contínuo (editora concebida pela própria artista), no qual mescla versos com ilustrações florais multicoloridas que brotam de um corpo que se transfigura e se contorce, ora com forma mais animalesca ora humana. Com qualidades de um livro sensível, o projeto gráfico foi construído com o tradicional papel offset e clear plus, de maneira que, no clímax, a narrativa se confunde com a superfície translúcida do papel vegetal, gerando uma sobreposição de camadas visuais, logo, significativas, tornando a leitura multifacetada.
Camuflagem é, pois, um espaço corporal, mas também foi uma estratégia de sobrevivência no período mais crítico da pandemia, contextualiza Flávia Bomfim. Assim, segundo a autora, o tema da transfiguração é trazido como uma tecnologia não apenas de ataque, ou seja, a ideia não implica camuflar para atacar, mas é, antes, uma defesa animal: a camuflagem que reflete a mudança, permitindo “a transformação visceral para não sucumbir”, constata Bomfim, associando o livro ilustrado ao contexto de profundas mudanças sociais que se instaurou com a crise epidemiológica.
Sequência do livro ilustrado Camuflagem, Movimento Contínuo, 2021.
Imagens: Flávia Bomfim/Divulgação
A Movimento Contínuo é tida por Flávia como uma plataforma não apenas de publicação, mas também de formação e ativação de espaços. Dentre outras publicações da artista visual lançadas pela editora, vale citar ainda o fanzine O ponto e a linha no bordado contemporâneo (2019), obra da exposição de mesmo nome, a partir do Coletivo Bordar os Sonhos, um dos projetos mais marcantes no percurso de Flávia, em que ela une o fazer poético e artístico à sua atuação na psicologia social comunitária.
Desenvolvido desde 2013, Bordar os Sonhos é um coletivo de arte têxtil concebido por Bomfim para gerar um espaço de escuta, criação e resgate da ancestralidade, bem como de relatos cotidianos de mulheres pretas no Bairro de Sussuarana, periferia de Salvador. No projeto, as participantes são incentivadas a criar suas próprias narrativas bordadas. Assim, borrando os limites entre a arte e a artesania, as obras das mulheres-bordadeiras-artistas do projeto foram expostas em Bolonha e Macerata, na Itália, e na galeria RV Cultura e Arte (também representante da artista visual), em Salvador. Bordar os sonhos tensiona, com isso, as definições entre o que se classifica como arte ou como artesanato, um dos objetivos do coletivo.
Páginas do fanzine impresso em risografia Monolito, coautoria de Flávia com o artista espanhol Maguma, 2020. Imagens: Flávia Bomfim/Divulgação
Em movimento similar de construção ou resgate de uma memória, desta vez no meio editorial, está o primeiro livro de Flávia Bomfim: Circo Estaner: Um grande pequeno circo (2010), composto por fotografias realizadas em 2005, nos municípios de Ponto Novo e Filadélfia (Bahia), com personagens do grupo circense, numa afirmação de resistência dos pequenos circos ainda em caravana. Assim como a construção em parceria ou coletiva são percebidas em lançamentos mais recentes da Movimento Contínuo, a exemplo do fanzine Monolito (2020), impresso em risografia, feito por Flávia em coautoria com o ilustrador e artista espanhol Maguma. Além da expo-catálogo O que explode do seu vulcão?, pergunta que serviu como provocação para que ilustradoras e poetas mulheres-vulcões de várias nacionalidades colaborassem com a criação de palavras e imagens para a publicação que teve a sua primeira exposição feita na quarta edição do Festival de Ilustração e Literatura Expandido – Filexpandido, em 2020; e pela segunda vez em 2021, ambos com curadoria de Flávia e produção local do estúdio Illustralabor, na Alemanha.
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Flávia faz do mundo seu quintal, espaço de congregação, e questiona, durante conversa com a Continente, sobre o tema da disponibilidade de recursos no campo artístico, a partir de cada território: “Quantos passos a gente precisa dar?”, reconhecendo os impactos nas diferenças de acesso para uma soteropolitana que se interessa pelo universo da ilustração e tudo o que nele implica, como formação, conhecimento, livros e influências, quando comparado a lugares que proporcionam melhor capital de investimento e também especulativo, com arcabouços mais consolidados. Talvez a resposta esteja no reconhecimento do trabalho da artista visual baiana, visto que os passos de Flávia Bomfim a fizeram chegar ao Leste da Ásia.
Galgando a sua atuação como ilustradora para um novo patamar, Flávia foi a vencedora da categoria Green Islan da quinta edição do Nami Concours, em 2021, um prestigiado concurso internacional de ilustração de livros ilustrados da Ilha Nami, na Coreia do Sul, com a obra O adeus do marujo. Projeto iniciado há mais de cinco anos por meio de uma pesquisa de fotos históricas desenvolvida por ela, a convite da editora Pallas, obra que está com lançamento previsto para este ano de 2022.
O livro O adeus do marujo homenageia João Cândido, o Almirante Negro, um dos líderes da Revolta da Chibata (1910), no Rio de Janeiro, com projeto gráfico marcado pela impressão das imagens em cianotipia, na qual Flávia intervém na dimensão realista das fotos selecionadas por meio da cor azul, ao passo que sobrepõe e recria com bordado uma camada textual de “delírio, invenção ou imaginação”, contextualiza Flávia, que intenciona cruzar a própria história com a de João Cândido para pensar o mar e a sua imensidão.
Não tapem os buracos, foi golpe, fotografia transferida manualmente, bordado e aplicação sobre tecido de algodão, 2019. Imagens: RV Cultura e Arte/Divulgação
Enquanto capista, Flávia Bomfim assina outras ilustrações de livros e revistas com concepção similar à do Le Monde aqui comentada inicialmente, empregando a mesma técnica do bordado, em que gera uma dimensão sensível em projetos que subvertem a prática tradicional das impressões gráficas. Nesse sentido, merecem destaque as artes das publicações Bem mais que ideias (2022), Interseccionalidade (2021) e Pensamento feminista negro (2019), trilogia da socióloga Patricia Hill Collins lançada no Brasil pela Boitempo.
No campo das artes visuais, os passos de Flávia Bomfim são pluricontinentais, seja na Europa seja na América Latina: já realizou residência artística na Scuola Internazionale d’Illustrazione (2013), em Sármede; organizou uma feira independente no centro ocupado L’Asilo (2018), em Napoli, ambos na Itália, país no qual também circulou com oficinas e encontros sobre RiVolti e Bordar os Sonhos, na já mencionada cidade napolitana, bem como em Parma, Macerata e Bolonha; participou, ainda, do ateliê de gravura da ilustradora Joelle Jolivet (2015), em Paris (França); e de residência no Museo Textil (2016), em Oaxaca (México).
Tal percurso ilustra a visão de Flávia de que o tempo e o lugar de circulação são variáveis importantes na história de quem integra o campo da arte, além da busca por um estilo próprio – embora ela se interesse mais em transitar as distintas formas de expressão – , o que também contribui para a construção de valor de um artista ou obra, observa a artista visual. Contudo, ela também questiona: “Quando o outro não te valora, quer dizer que você não tem valor?”, a resposta é tão transgressora quanto o “m” em seu sobrenome: “Toma para si o direito. Reivindicar a decisão de dar o seu valor. Valorar como uma decisão política, espacial, mais do que só econômica. Essa postura retorce o maquinário”, propõe Bomfim, que também atua como diretora artística.
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Criar, produzir, pensar, debater e possibilitar encontros também são alguns dos movimentos políticos de Flávia, que organiza a Feira Ladeira, de impressos e publicações independentes, além de ser a idealizadora do já citado Festival de Ilustração e Literatura Expandido ou Filexpandido (Salvador, Bahia), o qual desde 2013 reúne artistas, escritores, produtores, ilustradores, demais profissionais e leitores do mercado editorial gráfico, literário e visual. Por outro lado, as tensões também perpassam a rede de ficções, isto é, o fazer artístico de Flávia Bomfim, e viram arte, tal qual aconteceu com a mostra individual Com quantos pontos se desfaz um rosto? (2019), idealizada inicialmente como um fanzine.
Obra têxtil da série Abre-te sésamo ou Europa devastada, 2019.
Imagens: RV Cultura e Arte/Divulgação
A referida exposição dialoga com os sistemas muro branco, buraco negro ou vice-versa, a partir do texto Rostidade, em Mil-Platôs, de Deleuze e Guattari, explica Flávia, na qual também traz a noção sobre o rosto cristo como “esse homem branco bom, talvez bonito, como marco zero, como rosto zero. Tudo o que está à direita, acima, abaixo, à esquerda seria deformação, é tudo aquilo que a mulher, mestiça e idiossincrática não pode ser”. Ao passo que nasce da necessidade de ressignificação de questões conflituosas surgidas em outra exposição, realizada na Itália, RiVolti: 100 illustratori ricamano i propri volti.
RiVolti aconteceu na Feira de Bolonha (2019), uma das mais renomadas no ramo da ilustração e literatura infantojuvenil, e consistiu em fotografar 100 ilustradores de diferentes países que possuíam alguma relação com Flávia ou com outras duas italianas, também autoras da mostra que acabou por alcançar visibilidade na Feira. A exposição contou com o registro fotográfico dos ilustradores convidados, que tiveram seus retratos estampados manualmente em tecido de algodão e, em seguida, enviados para os próprios personagens fotografados para intervirem, isto é, recriarem, através de técnicas têxteis, seus próprios rostos retratados.
Para a artista visual, o projeto Rivolti revelou questões sobre poder, acessibilidade e colonialidade, por isso a exposição Com quantos pontos se desfaz um rosto? também significou o hackeamento da narrativa dominante, de maneira que foi como um ato mágico, uma forma de recontar a própria história: “O que vi, percebi e vivenciei. Isso também é um desvio sobre a captura e a valoração do outro. Não é sobre o outro, mas como ocupo essa espacialidade”, atesta Flávia Bomfim.
De modo que grande parte dessa exposição, realizada na galeria RV Cultura e Arte, surge das provas de impressão falhas, de rostos falhos, que ela cortou e fragmentou em RiVolti, criando Não tapem os buracos, foi golpe (2019), com intervenções que tratam tanto da história política no Brasil, desde o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, em 2016, até a eleição do atual presidente da República, Jair Bolsonaro, em 2018; quanto da vivência de Flávia na Feira de Bolonha.
Obras realizadas em cianotipia para o livro O adeus do marujo, com previsão
de lançamento para este ano, pela Pallas. Imagens: Flávia Bomfim/Divulgação
Na mesma mostra ainda incluem: Paranoia barroca e Não ter medo do tempo (ambas com bastidor); Lenços para apagar rostidades; e Abre-te sésamo ou Europa devastadas (todas de 2019). As técnicas utilizadas refletem a vertente polissêmica de Flávia Bomfim, que, além do próprio bordado, faz uso da transferência manual de fotografia sobre tecido de algodão, bem como a aplicação de carimbo e colagem. Sendo uma artista que transita entre distintas linguagens, ao passo que também se utiliza da gravura, do desenho e da cerâmica como formas de expressão artística.
Pensamentos e mantras se unem ao bordado e trazem a fluidez do tempo em Não ter medo do tempo. No tríptico Abre-te sésamo ou Europa devastadas, por sua vez, ela interfere nos rostos “de maneira que não apareçam e rasgo eles ao meio”, com o intuito de “romper essa rostidade de poder (do rosto cristo), de opressão colonial e patriarcal que aparecia na minha frente (durante a vivência do projeto RiVolti, na Itália), que me dizia coisas, me adjetivava. Cada obra tem uma linha vermelha, todas com uma frase bordada. Uma das frases diz: ‘A tristeza nasce da incapacidade da magia’”, contextualiza a artista visual, que ressalta o caráter mágico da exposição, a qual compara a um despacho.
As palavras podem ser mágicas, por isso, ela propõe: “Tem uma obra que é um boneco vodu com vários olhinhos de plástico e a frase que está embaixo é: ‘Que seus olhos se realizem’, fragmento de uma reza. Acho tão bonito. Onde se realizam nossos olhos? Onde eles pousam e, simplesmente, a gente diz: Aaah… (suspiro de contemplação). No mar, por exemplo?”, dialoga a artista visual com João Cândido, o Almirante Negro. Flávia se camufla, polissêmica, e recria a sua própria revolução feminista.
FERNANDA MAIA, educadora, pesquisadora cultural e designer de publicações.