É interessante perceber a presença de tais nomes no conjunto dos poemas, divididos em quatro partes – Vivendo no mundo material, Língua, Noturno e Erguei bem alto a vida, carpinteiros, este último em referência ao livro de J. D. Salinger, de quem ela é fã. Na tessitura dramática desta compilação, como decerto já em Juventude, está o convite a um passeio por memórias evocadas à luz dos afetos de Laís, como seus parentes ou o cachorro Júpiter, e também sob o signo de Kafka, Fellini, Emily Dickinson, Sartre, Tarkovsky, Frank O’Hara, Zagajewski e Alejandra Pizarnik, entre outras admirações.
Da linguagem que não intimida, mas que explora as múltiplas possibilidades de construção formal, surgem questionamentos existenciais. “O mundo é uma grande louça onde podemos ter somente as migalhas de um banquete que já aconteceu? Ou entramos a cada vez no mundo como entramos no rio de Heráclito?”, indaga em Por que a língua e não o silêncio?
“Vejo que o livro traz um eixo mais mundano, das conversas sobre comprar um vinho, andar, ouvir música, mas também fala sobre o que é existir, o que é estar no mundo e, com isso, toda sorte de questionamentos que nos atravessam, ainda mais em tempos como esses. Para além disso, busco uma reflexão sobre a própria linguagem. Ligada à vivência única e impermutável, a experiência de estar no mundo pode ser expressa em poemas mais metafísicos ou transcendentais, mais filosóficos, mas também em uma poesia cotidiana, mais coloquial. Assim, me sinto livre para experimentar com a linguagem. Acho que as palavras existem para fazer com que nos comuniquemos melhor, não para reduzir a complexidade do que queremos dizer”, aponta Laís.
No texto de orelha, Floriano Martins diz que Nós só compreendemos muito depois é “mais do que um livro para ser lido, é um livro que nos lê”. No posfácio, Daniel Arelli observa, com acuidade, que a tensão “entre o impulso hedonista de sorver as delícias diretamente da fonte da vida e a distância imposta pela reflexão (…) constitui a matriz poética deste livro”. E outros dois poetas, Natália Agra e Fabiano Calixto, alagoana e pernambucano radicados em São Paulo, onde dirigem a Corsário-Satã, afirmam: “Conhecemos a poesia de Laís com Juventude e já ficamos de olho na sua poética afiada. Em 2020, vimos que precisávamos formatar a editora e pensamos em alguns nomes que já admirávamos. Convidamos a Laís para participar do zine Despacho, numa edição só com mulheres, e logo sondamos para ver se ela tinha algum livro à vista. E, sim, ela já estava pensando em publicar e por coincidência também já queria falar com a gente. Começamos a pensar juntas e o processo do livro se deu muito rápido”.
No meio de tudo isso, uma pandemia, o retorno de uma temporada nos Estados Unidos, a despedida de pessoas queridas e a certeza de que “o mundo está aberto como um catálogo de signos que se esquivam à interpretação” e de que toda e qualquer tentativa de decifrá-lo há de passar pela língua, este “acontecimento raro e misterioso”. “Sou atravessada pela linguagem. É uma obsessão: passo o dia inteiro escrevendo, lendo ou pensando sobre isso”, diz Laís Araruna de Aquino. Bom que sua obsessão pode nos servir de impulso ou alento, como ela expressa no desfecho do seu poema-título:
quando desejamos regressar
e abrimos a porta da memória
há um caminho que muda
a cada entrada
então, na curva de tantos dias,
deixamos um pouco do passado
agora, o musgo cresceu
range a porta
damos talvez por uma falta
mas não saberíamos dizer
mesmo isto
nós só compreendemos muito depois.
LUCIANA VERAS, jornalista, crítica de cinema e repórter especial da Continente.