Curtas

Nós só compreendemos muito depois

Laís de Aquino faz do cotidiano um tanto de poesia em seu segundo livro

TEXTO Luciana Veras

01 de Junho de 2021

'Nós só compreendemos muito depois' é o segundo livro de poesias publicado pela pernambucana

'Nós só compreendemos muito depois' é o segundo livro de poesias publicado pela pernambucana

Foto Guilherme Sá Cavalcanti/Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 246 | junho de 2021]

contribua com o jornalismo de qualidade

“Fissurada por literatura”, a pernambucana Laís Araruna de Aquino conjecturou que poderia cursar Letras, Jornalismo ou Direito antes de prestar vestibular. “Sempre li muito, desde criança, e na adolescência descobri Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto, que me despertaram a vontade de escrever e me impuseram uma grande paixão”, lembra. Optou pelo estudo das leis e não se arrependeu; aprendeu muito sobre Filosofia e, anos depois, achou uma maneira de lapidar sua verve discursiva ao assumir o cargo de procuradora municipal. Ela, no entanto, sentia, talvez ainda sem decodificar o que de fato tal sensação era, o desejo de estabelecer uma nova relação com as palavras.

Ao lançar Nós só compreendemos muito depois (Corsário-Satã, 2021, à venda no site da editora), seu segundo livro de poesia, fica explícito o compromisso com essa outra simbiose. Existe a Laís e seu manejo das palavras no campo jurídico e há esse vínculo com a fertilidade da criação literária, ou seja, um elo não para redigir petições, mas para catalisar a vontade de se comunicar com o mundo. E, três anos depois de Juventude (Reformatório), a estreia que lhe rendeu o Prêmio Maraã de Poesia de 2017, essa janela de diálogo se expande. Afinal, como dizem alguns versos de Encarando o silêncio, “a palavra não é uma estaca no decurso do tempo – é uma via franqueada ao que ainda não existe, mas está lá, prestes a dissolver-se como uma vela ao que o vento reflui”.

“Tudo que está escrito nos livros é autobiográfico, mas não 100%. Sinto que, na poesia, conto um fato, mas não exploro muito. É como se fosse um texto mais sintético, mas cheio de referências, como os nomes de personagens e autores com quem dialogo e que me marcaram. Acredito que um poema, filosoficamente falando, é sempre um encontro: com as leituras que construíram, com tudo que me aconteceu, com as pessoas que estão ao meu redor”, observa Laís em uma conversa telefônica nos idos de março. Ela estava em Moreno, na Região Metropolitana do Recife, na fazenda onde passou boa parte da infância ao lado de vários familiares que aparecem em Nós só compreendemos muito depois, como sua irmã gêmea Marcela, a outra irmã Rafaela, seu marido Guilherme, a avó Rosaly e a tia-avó Maria Helena Araruna – a essas duas, falecidas recentemente, o volume é dedicado.

É interessante perceber a presença de tais nomes no conjunto dos poemas, divididos em quatro partes – Vivendo no mundo material, Língua, Noturno e Erguei bem alto a vida, carpinteiros, este último em referência ao livro de J. D. Salinger, de quem ela é fã. Na tessitura dramática desta compilação, como decerto já em Juventude, está o convite a um passeio por memórias evocadas à luz dos afetos de Laís, como seus parentes ou o cachorro Júpiter, e também sob o signo de Kafka, Fellini, Emily Dickinson, Sartre, Tarkovsky, Frank O’Hara, Zagajewski e Alejandra Pizarnik, entre outras admirações. 

Da linguagem que não intimida, mas que explora as múltiplas possibilidades de construção formal, surgem questionamentos existenciais. “O mundo é uma grande louça onde podemos ter somente as migalhas de um banquete que já aconteceu? Ou entramos a cada vez no mundo como entramos no rio de Heráclito?”, indaga em Por que a língua e não o silêncio?

“Vejo que o livro traz um eixo mais mundano, das conversas sobre comprar um vinho, andar, ouvir música, mas também fala sobre o que é existir, o que é estar no mundo e, com isso, toda sorte de questionamentos que nos atravessam, ainda mais em tempos como esses. Para além disso, busco uma reflexão sobre a própria linguagem. Ligada à vivência única e impermutável, a experiência de estar no mundo pode ser expressa em poemas mais metafísicos ou transcendentais, mais filosóficos, mas também em uma poesia cotidiana, mais coloquial. Assim, me sinto livre para experimentar com a linguagem. Acho que as palavras existem para fazer com que nos comuniquemos melhor, não para reduzir a complexidade do que queremos dizer”, aponta Laís. 

No texto de orelha, Floriano Martins diz que Nós só compreendemos muito depois é  “mais do que um livro para ser lido, é um livro que nos lê”. No posfácio, Daniel Arelli observa, com acuidade, que a tensão “entre o impulso hedonista de sorver as delícias diretamente da fonte da vida e a distância imposta pela reflexão (…) constitui a matriz poética deste livro”. E outros dois poetas, Natália Agra e Fabiano Calixto, alagoana e pernambucano radicados em São Paulo, onde dirigem a Corsário-Satã, afirmam: “Conhecemos a poesia de Laís com Juventude e já ficamos de olho na sua poética afiada. Em 2020, vimos que precisávamos formatar a editora e pensamos em alguns nomes que já admirávamos. Convidamos a Laís para participar do zine Despacho, numa edição só com mulheres, e logo sondamos para ver se ela tinha algum livro à vista. E, sim, ela já estava pensando em publicar e por coincidência também já queria falar com a gente. Começamos a pensar juntas e o processo do livro se deu muito rápido”. 

No meio de tudo isso, uma pandemia, o retorno de uma temporada nos Estados Unidos, a despedida de pessoas queridas e a certeza de que “o mundo está aberto como um catálogo de signos que se esquivam à interpretação” e de que toda e qualquer tentativa de decifrá-lo há de passar pela língua, este “acontecimento raro e misterioso”. “Sou atravessada pela linguagem. É uma obsessão: passo o dia inteiro escrevendo, lendo ou pensando sobre isso”, diz Laís Araruna de Aquino. Bom que sua obsessão pode nos servir de impulso ou alento, como ela expressa no desfecho do seu poema-título:

quando desejamos regressar
e abrimos a porta da memória
há um caminho que muda
a cada entrada

então, na curva de tantos dias,
deixamos um pouco do passado
agora, o musgo cresceu
range a porta

damos talvez por uma falta
mas não saberíamos dizer
mesmo isto
nós só compreendemos muito depois.

LUCIANA VERAS, jornalista, crítica de cinema e repórter especial da Continente.

Publicidade

veja também

Adeus a Riva

“Mulher, Corpo, Território: Julieta presente!”

Ô, ô, ô, Saudade do Recife e de Antônio Maria