Esse foi o motivo para que a família de Alice "Tila" Chituda fugisse do país, do sangue e da guerra, e se refugiasse no Brasil, especificamente em Pernambuco, em 1976. As lembranças de uma Angola distante, contadas por histórias e vistas por meio de fotos e imaginação, impulsionaram a criação do filme Nome de batismo-Alice, vencedor este ano dos prêmios de melhor documentário curta-metragem e do ABS-SP no festival É tudo verdade/it's all true, um dos mais importantes do mundo voltados a produções documentais. Junto a Mini miss, de Rachel Daisy Ellis, foi o único filme pernambucano no festival internacional.
Tila Chituda, seu nome artístico, faz referência a seu terceiro nome, Tilovita – que significa, na língua umbundu, “fugitiva de guerra”. O nome foi criado pelos pais de Alice a partir das expressões Tila e Ovita, que poderiam ser traduzidas como “aquela que foge da guerra”. “Decidi fazer esse documentário porque, desde que me entendo por gente, escutava histórias acerca da Angola”, conta a documentarista.
Ir à Angola pela primeira vez, segundo ela, foi uma experiência intensa. “O contato era muito remoto com os demais que tinham ficado em Angola. Uma vez lá, encontrei uma família enorme entre primos, tios, tios-avós, filhos dos primos. Era tanta gente, que eu nem conseguia identificar direito quem era quem. Fora que, em Angola, a família tem uma importância muito grande. Confesso que pra mim, às vezes, era estranho. Imagina, você que não cresceu lá, indo passar férias na casa de seus primos, avós, tios e, de repente, encontra todo mundo ao mesmo tempo! Pra mim, era muita informação, embora eu tivesse me preparado pra isso, eu precisei de tempo para processar. Mas o interessante é que desde a minha chegada em Angola, eles me tratavam como se me conhecessem desde que nasci”, pontua. É que, na verdade, Alice Chituda já nasceu no Brasil e não chegou a conhecer o outro ramo de sua família.
“Eu tinha um imaginário deste lugar. Chegando lá, encontrei uma realidade bastante diferente daquela narrada pela minha mãe. E tinha que ser diferente mesmo, afinal, aquele lugar tinha enfrentado uma guerra durante 26 anos. Lá, as pessoas falam umbundu, língua materna dos meus pais, mas que eles nunca me ensinaram, assim que cheguei não entendia nada. E isso acabou me colocando numa posição de 'estrangeira'”, diz Tila, em entrevista à Continente, aspecto que também revela no documentário, narrado por ela em português.
O curta-metragem, por sua vez, é bastante íntimo, ao mesmo tempo em que ajuda a revelar uma Angola mais próxima, de relações, afetos e história. O bisavô de Chituda era um Soba, ou seja, fazia parte da família real. Num determinado momento do documentário, seu tio Teodoro Sicato aponta que a família dela não foi tomada como escravos justamente porque era da realeza.
"Angola é um território bastante hostil. A princípio, eu não escolheria esse lugar para passar férias, por exemplo, mas a alegria daqueles familiares em me receber era incrível. As comidas, a celebração musical. Tudo isso era muito contagiante. Pretendo voltar a Angola porque quero mostrar essa terra aos meus filhos. Mostrar nossas origens. Acho importante a gente saber de onde veio, pra poder escolher melhor pra onde quer ir. Mas devo voltar a Angola também para continuar a filmar. Tenho ainda três nomes que devem virar filme: Tilovita, Sicato e Chitunda".
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Beyoncé certa vez disse, na sua música Pretty hurts, o quanto a beleza é um alvo de caminho tortuoso e o quão difícil e infeliz pode ser uma jornada para conseguir se enquadrar nos padrões, incluindo, de certa forma – como a artista explora no clipe –, as passarelas da moda. Em Mini miss, de Rachel Daisy Ellis, nos é revelado a moda através da perspectiva das crianças, como o nome sugere. Rachel quis mostrar as pequenas modelos de uma perspectiva única: a câmera se posiciona exatamente na mesma altura delas, meninas de todos os cantos do Brasil, porém todas elas brancas. O documentário venceu o Prêmio Canal Brasil na categoria de melhor documentário em curta-metragem, no mesmo festival.
Mini miss, de Rachel Ellis. Imagem: Divulgação
Talvez tenha sido essa singularidade de direção que permite a quem o assiste notar, por diversas vezes, o desconforto das crianças perante as exigências dos adultos, que sequer aparecem durante os 15 minutos de curta-metragem. O foco é realmente as pequeninas.
Por fim, o que está em jogo é a cultura do encaixar-se nos padrões injetada desde cedo. A exemplo disso, há uma cena em que uma menina está sentada, imóvel, enquanto uma mulher está maquiando. Não instiga um desconforto ver uma criança que sequer atingiu os 10 anos ser submetida a um processo de “embelezamento” e ser escondida numa maquiagem que normalmente vemos em pessoas mais crescidas? A mesma menina, segundos depois, insiste em usar um batom roxo, enquanto a adulta pincela um batom vermelho nos lábios.
Ao mostrar uma criança de três anos não querendo desfilar, levada para o peito pela mãe para mamar, outra reclamando da roupa ou todas elas dentro de um luxuoso carro, com taças de guaraná e música pop ao fundo, Mini miss cumpre o seu papel: não é documentário revelador, mas ratificador.
EDUARDO MONTENEGRO é estudante de Jornalismo da Unicap e estagiário da Continente.