Desde março de 2020, quando decretada a mais grave crise sanitária da história, nós relembramos como a arte é imprescindível. Não dá para atravessar um isolamento social sem música, sem filmes, sem fabulação imaginativa. Para realizar qualquer coisa, primeiro é preciso sonhá-la, e sonhar tornou-se imperativo em uma rotina de interdições. Impossível grassar a tragédia sem apoio do inconsciente. E, nesse percurso, discutir saúde mental tornou-se um lugar comum. Por tudo isso, a exposição vai além do que propõe: ela reitera a importância de uma discussão sobre isolamento social; sobre a condenação de sujeitos fragilizados à morte; sobre a cura por meio da arte; sobre o valor do sonho e do inconsciente. Aqui vale lembrar do livro Oráculo da noite: a história e a ciência do sonho (Companhia das Letras, 2019), do neurocientista Sidarta Ribeiro, lançado em meio à pandemia, e que também reforça a importância de recuperarmos nossa boa relação com o sonho e com o inconsciente, especialmente agora. Andar pelas galerias do CCBB – de modo real ou virtual – é receber esse recado póstumo da doutora Nise: dê mais tempo e espaço ao seu inconsciente.
Dividida entre três salas, a exibição tem, no entanto, dois eixos temáticos principais, que se dividem e se completam.
O primeiro é a biografia de Nise da Silveira, apresentada de forma sensível, poética e bastante didática (a exemplo da obra Biblioteca, da artista Margaret de Castro, que reproduz a coleção da médica de forma tão literal que parece um cenário). Desde a sua formação na Faculdade de Medicina da Bahia (a única mulher entre 157 homens), passando por sua prisão durante o Estado Novo, onde conviveu com Graciliano Ramos e Maria Werneck, advogada e sufragista; pelo início dos trabalhos no Hospital do Engenho de Dentro, onde potencializou o uso das artes plásticas no processo de cura de pacientes psiquiátricos; e pelo encontro crucial com Carl Jung, que a orientou especialmente em relação aos significados das mandalas pintadas repetidamente por internos – a expressão estética que evoca ordem vindo de mentes em desordem.
Detalhe de ficha datiloscópica do Departamento de Ordem Política
e Social (DOPS), na época da ditadura*
O segundo é o mais interessante da exposição: o eixo que mergulha no imaginário provocado pelo seu trabalho, aqui como valor de dispositivo. Tanto as obras de arte que surgiram a partir do experimento direto de Nise da Silveira (o qual ela não chamava de “terapêutica ocupacional”, mas de “emoção de lidar”), ou seja, as obras dos artistas e pacientes Emygdio de Barros, Adelina Gomes, Fernando Diniz ou Carlos Pertuis, quanto as obras que dialogam indiretamente com temas que perscrutam esse imaginário, como o cárcere, o sonho, a cura, a fábula, a natureza, a liberdade, a ciência, a alteridade, o território, a escravidão, os padrões.
As mandalas, a expressão estética que evoca ordem vindo de mentes em desordem*
É muito interessante a forma como as obras do projeto Liberdade, de Carlos Vergara, que surgem no eixo temático da prisão de Nise, acaba conversando com as fotografias de Rafael Bqueer, na obra Alice, pela sugestão de destrancar os contos de fadas. Ou como cenas criadas na obra Refino, de Tiago Sant’Ana, acabam sendo povoadas também pelos personagens de Na lona (1986), de Rogério Reis. Ou como as esculturas de Zé Carlos Garcia, a exemplo de Prumo (2014), capturam a “emoção de lidar” das crianças, talvez os espectadores mais genuinamente íntimos do conceito proposto por Nise. Ou como a exibição dos trabalhos performáticos do Hotel da Loucura, um experimento potente que é fruto direto das lições de Nise da Silveira no mesmo hospital, no entre 2010 e 2015, usando o teatro como linguagem, nos faz pensar em como – como? – este tipo de interface entre saúde e cultura ainda não se transformou em uma política pública.
Outra sacada original da curadoria do grupo M’Baraká (Diogo Rezende, Isabel Seixas e Letícia Stallone) foi investigar a história do território onde se instaura toda a “emoção de lidar” de Nise da Silveira. O Engenho de Dentro, bairro periférico do Rio, para onde eram alijados os loucos, pobres e criminosos ao longo do século XX, bairro que já trazia na sua história uma rota de fuga de negros escravizados. Aqui, no entanto, o experimento vai além do acento didático dos mapas e infográficos, deixando ao espectador a provocação de investigar o seu próprio território. “A cabeça pensa onde os pés pisam”, nos sopra Frei Betto, admirador de Nise.
Contar toda essa história em tempos de pandemia era, de fato, um desafio. Com as limitações que os novos protocolos sanitários exigem, as exposições tiveram de encontrar novas formas de vir a público. Textos e vídeos muito longos que agrupam muitas pessoas ao mesmo tempo em frente aos totens já não são mais possíveis, bem como corredores apertados ou cabines fechadas. Neste sentido, a mostra tem de ser bastante rigorosa no controle de entrada do público, e o visitante mais esperto irá em dias de semana, pois ainda é difícil compartilhar a experiência coletiva em total segurança. Mas sem deixar de ir. Para isso existe também a tour virtual, que ainda é uma experiência um pouco chapada e pouco sedutora, mas que dá uma boa ideia da expografia. Se não é ainda uma vacina para o corpo, Nise da Silveira é, sem dúvida, uma vacina para a alma.
MARIANA FILGUEIRAS é jornalista cultural e doutoranda em Letras (UFF).
*Fotos: Rogério von Krüger/Divulgação