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Nise da Silveira: humana, acima de tudo

A alagoana se tornou símbolo da luta pela humanização da psiquiatria brasileira, virando tema de filmes, livros e peças teatrais voltadas ao grande público

TEXTO Marcelo Robalinho

01 de Maio de 2016

Nise da Silveira (ao centro) lutou pela humanização da psiquiatria

Nise da Silveira (ao centro) lutou pela humanização da psiquiatria

Imagem Mauricio Planel

Eu não paro de sonhar nem de fazer projetos. Muita gente pode dizer que, nesta altura da vida, em termos de tempo, você sonha ainda projetos? Posso sonhar projetos para o ano quatro mil. Posso sonhar.” Proferida pela psiquiatra Nise da Silveira durante uma premiação em 1990, a afirmação é simbólica e contundente para uma senhora de 85 anos de idade naquela época. Pequenina e aparentemente frágil, mas com “Lampião debaixo da pele”, como dizia, pela coragem e força dos seus ideais, Nise faleceu em 1999, aos 94 anos, tendo se tornado um dos principais nomes da psiquiatria brasileira, mesmo atuando na contracorrente do pensamento vigente, de forma meio marginal. Parte importante da história, do legado e dos sonhos dessa alagoana rebelde – que usou a arte e a livre expressão artística como principal ferramenta de recuperação da saúde mental de pacientes com transtornos e na humanização do tratamento psiquiátrico – está sendo contada agora ao grande público em filmes, livros e peças teatrais.

Dos novos projetos, o de maior destaque é o longa-metragem Nise – O coração da loucura, em cartaz nos cinemas desde o final de abril. Estrelado pela atriz Glória Pires no papel de Nise (leia entrevista com a atriz a seguir) e sob a direção do cineasta Roberto Berliner, o filme rodou festivais no Brasil e no exterior antes de entrar no circuito comercial, ganhando prêmios de melhor filme, melhor atriz, melhor direção de arte e melhor trilha sonora. As duas últimas exibições em mostras fora do país ocorreram em Gotemburgo (Suécia) e Glasgow (Escócia), no começo deste ano. A Continente assistiu a duas sessões do longa no último Festival do Rio de 2015, quando foi oficialmente lançado e recebeu prêmio de melhor filme do Júri Popular.

Com 109 minutos de duração, Nise – O coração da loucura é uma ficção baseada em fatos, ou drama biográfico, conforme classificou Berliner. Lançando mão de certa liberdade artística na abordagem da história de Nise e dos personagens em torno dela, o cineasta e uma equipe de seis profissionais construíram alguns roteiros até chegarem à versão definitiva, que concentra o enredo entre meados dos anos 1940 e início dos 1950, na fase posterior à saída da psiquiatra da prisão. Afastada do serviço público durante oito anos sob a acusação de ser comunista, época da ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas (1937–1945), Nise voltou a trabalhar no antigo Centro Psiquiátrico Pedro II, que havia sido transferido da Praia Vermelha, zona sul do Rio, para o Bairro do Engenho de Dentro, no subúrbio da zona norte carioca.

No Pedro II, a psiquiatra tomou contato com novos métodos usados no tratamento de esquizofrênicos que haviam surgido no período em que esteve presa. Entre eles, a lobotomia, o eletrochoque, o choque de insulina e o cardiazol (convulsivante aplicado em injeções endovenosas). Revoltada, ela se recusou a utilizá-los, demonstrando a rebeldia e a contestação que a tornaram peculiar. Em contrapartida, a negativa forçou-a a buscar alternativas à margem do processo. Por dois anos, trabalhou numa enfermaria do hospital tentando criar atividades diferentes, até que, em 1946, fundou a Seção de Terapêutica Ocupacional e Reabilitação (STOR). Com a finalidade de desenvolver a capacidade de expressão dos pacientes que frequentavam o espaço, Nise, de forma meio intuitiva, criou atividades terapêuticas, como oficinas de trabalhos manuais, jardinagem, marcenaria, sapataria, tapeçaria, esportes, teatro, desenho, pintura e modelagem, coisas que não existiam até então no serviço.


A obra deste paciente (Carlos Pertuis) foi produzia no período de Nise e integra o acervo do Museu de Imagens do Inconsciente. Foto: Carlos Pertuis/Reprodução

Aos poucos, as atividades foram sendo oferecidas aos internos. Apesar de não concordar inteiramente com as opiniões da Nise, a direção do Pedro II deixou-a fazer o que quisesse, razão para o desenvolvimento da STOR. Dezessete atividades chegaram a funcionar no setor, contando com a presença de uma grande equipe de monitores. Uma enfermeira e assistente social, em especial, destacou-se décadas depois na música: a compositora e sambista Ivone Lara. Vivida no filme pela atriz Roberta Rodrigues, Ivone Lara integrou a equipe na década de 1940 e nela trabalhou por 30 anos, até se aposentar no final da década de 1970, quando passou a se dedicar à carreira artística. O filme concentra-se apenas no seu trabalho ao lado de Nise.

AFETO NO TRATAMENTO

“A terapêutica ocupacional que procurei adotar era de atividades expressivas que pudessem dizer algo sobre o interior do indivíduo e, ao mesmo tempo, falar das relações deste com o meio”, contou Nise, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, em 1987. Guiada por um olhar sensível e bastante humano, ela percebeu a importância do afeto no tratamento dos esquizofrênicos, o que lhe fez incentivar nos monitores e estagiários que passaram pelo serviço o sentido do acolhimento para o sucesso da terapêutica, além de propor a incorporação dos cães e gatos à equipe, uma modalidade nova na época, em que os animais atuavam como coterapeutas no tratamento para criar pontes de comunicação com o esquizofrênico.

A riqueza das obras produzidas no ateliê do Engenho de Dentro rendeu notoriedade artística aos internos – ou “clientes”, como Nise costumava chamá-los, atraindo a atenção de artistas e críticos de arte. No plano terapêutico, isso levou-a a travar contato com o psiquiatra e psicoterapeuta suíço Carl Gustav Jung (1875–1961), de quem obteve incentivo para desenvolver estudos sobre arquétipos e inconsciente coletivo a partir das pinturas dos pacientes. Essas análises podem ser conferidas nos livros Imagens do inconsciente, relançado em agosto do ano passado pela Editora Vozes (leia na página 24), e O mundo das imagens, este último ainda fora de catálogo e disponível apenas em sebos, a preços bastante altos.

Atuando desde a inauguração do ateliê no Pedro II, a presença do pintor e artista gráfico Almir Mavignier (interpretado no filme de Berliner pelo ator Felipe Rocha) foi fundamental para incentivar os internos a projetarem em telas e esculturas as imagens que vinham dos seus inconscientes. A sensibilidade e o conhecimento sobre a arte de Almir fizeram a diferença no apoio à produção dos internos. “A experiência do ateliê mostrou que as fontes de criação se encontram dentro, e não fora do artista. Não trabalhavam como estudantes de belas-artes, que se encontravam ligados a uma arte tradicional. Essa tradição se deixa conhecer como ‘arte do consciente’, denominação que uso para representar a família internacional de artistas”, relatou Mavignier.

Para ele, os pintores do Engenho de Dentro não se inseriam nesse grupo. “Suas obras fazem descobrir, na história da arte moderna do Brasil, um grupo de artistas incomparáveis, porque não foram influenciados por tendências estrangeiras”, explicou o pintor, em depoimento sobre o módulo Imagens do inconsciente, na exposição Brasil + 500 Mostra do Redescobrimento. Realizada em São Paulo, em 2000, a mostra contou com trabalhos dos artistas do Engenho de Dentro e foi eleita pelo público e crítica como um dos pontos altos da exposição.

A partir do trabalho do ateliê do Engenho de Dentro, despontaram nomes de grande talento, como Adelina Gomes, Carlos Pertuis, Emygdio de Barros, Fernando Diniz, Lucio Noeman, Octávio Ignácio e Raphael Domingues. Todos eles são retratados no filme. Para o papel de Adelina, foi escalada a atriz Simone Mazzer, um dos destaques na trama pela realidade impressa na atuação da personagem, quase sem falas. “Deu certo medo fazer a Adelina, porque a linha entre uma atuação mais realista e uma mais falseada é muito tênue, principalmente quando a gente interpreta uma pessoa louca. É incrível, porque os exageros são muito bem-vindos e é tudo possível. Porém, você tem de cuidar para que seja verdade, pois o ator tem de imprimir isso de uma forma muito profunda. Era desgastante achar essa via de passar uma realidade em cena. Como atriz, foi uma coisa engrandecedora, um mergulho muito importante na minha vida e um aprimoramento do meu ofício”, disse Simone.

Assim como a atriz, os demais atores passaram por uma preparação longa e detalhada. Durante dois meses, o elenco praticamente se mudou para as instalações do Pedro II (atual Instituto Municipal Nise da Silveira), onde foi montado um set de filmagens. Lá, o trabalho de composição incluiu palestras com psiquiatras e colaboradores de Nise sobre os tratamentos usados na época da sua chegada ao hospital, oficinas de artes manuais com artistas plásticos e contato direto com os atuais pacientes da unidade, que também ensaiaram com o elenco e aparecem em muitas cenas como coadjuvantes. As filmagens ocorreram em 2012.

“Num primeiro momento, ficamos um pouco assustados com essa presença dos clientes, mas, depois, completamente envolvidos. Quando a gente começou a rodar o filme, cada um já sabia como se colocar em cena. Filmamos em ordem cronológica e fomos vivenciando essa mudança dos personagens como um documentário. Foi uma catarse, porque você via as pessoas se transformando. Às vezes, um interno entrava no meio da filmagem e estava integrado ao ambiente da trama. Escutamos deles os comentários mais lúcidos sobre o que estávamos vivendo no processo de filmagem. A gente se transportou para um lugar entre o real e o fictício”, afirmou Roberto Berliner.

Do início do projeto até agora, foram 13 anos, incluindo pesquisa, construção de roteiros, filmagem, edição e lançamento. Durante esse tempo, Berliner lançou outros cinco filmes. Dois deles também enfocaram pessoas que vivem com limitações e lutam por inserção social: os documentários Pindorama: A verdadeira história dos sete anões, de 2007, codirigido por Lula Queiroga e Leo Crivallare, sobre uma trupe circense de anões, e A pessoa é para o que nasce, de 2005, a respeito de três irmãs cegas que tocam e cantam pelas ruas de Campina Grande (PB). Indagado pela Continente sobre a razão dessa preferência, Berliner acredita ser inconsciente. “Uma vez, um tio disse que faço meus filmes com esses personagens por causa do meu irmão, que tem Síndrome de Down. Falava que eu sempre o buscava, e meu irmão é puro afeto. Achei muito legal essa associação. Pode ser isso mesmo”, considerou.

OLHAR DE NISE

Outro filme que está rodando festivais dentro e fora do Brasil é o Olhar de Nise. Dirigido por Jorge Oliveira e Pedro Zoca, o documentário de 90 minutos de duração traz a memória de Nise como fio condutor da narrativa, enfocando as passagens mais marcantes da sua vida. Para isso, Jorge ganhou de um amigo, já na fase de edição do filme, uma entrevista inédita de cerca de quatro horas de duração com a própria Nise falando sobre si. Esquecido em seis fitas Betacam nos arquivos de uma produtora já desativada, o depoimento tinha sido concedido por ela, dois anos antes de morrer, para um trabalho acadêmico que não foi finalizado. A descoberta mudou os rumos da edição, tornando-se o carro-chefe do Olhar de Nise.

“É um material precioso, já que os filmes feitos até então com Nise, alguns com a sua ajuda na roteirização, apegam-se à parte psíquica dos pacientes e ao trabalho dela no hospital. Nessa entrevista, o áudio não estava muito bom, mas conseguimos equalizá-lo, colocando Nise numa situação importante de esclarecimento sobre toda a sua história”, comenta Jorge Oliveira. Contemporâneo de Nise, ele fez filmes sobre outros alagoanos ilustres, como o escritor Graciliano Ramos e o militar Floriano Peixoto. Na sua visão, o seu filme faz um contraponto a Nise – O coração da loucura, do Berliner, ao mostrar outros fatos da história da personagem, como a sua saída de Maceió (AL); a chegada ao Rio para morar no Bairro de Santa Teresa, onde travou amizade com o poeta recifense Manuel Bandeira; a entrada no serviço público; a prisão e o retorno ao hospital, depois de solta.

Outro ponto alto de Olhar de Nise é a presença do Almir Mavignier no filme. Morando na Alemanha e atualmente com mais de 90 anos, o artista já não estava mais dando entrevista sobre o assunto. Depois de várias tentativas, a produção conseguiu o seu aceite para participar do documentário e rumou para a gravação com ele em Hamburgo. “Almir parecia carregar certa mágoa pela maneira distorcida como algumas coisas haviam sido ditas sobre a sua participação no trabalho com Nise. Eu precisava ouvir a sua versão da história. Ele nos exigiu uma série de coisas para entrarmos no seu ateliê. A entrevista foi extremamente esclarecedora”, contou Jorge.

Outras pessoas próximas de Nise foram entrevistadas no Brasil. Algumas delas: o poeta Ferreira Gullar, ele próprio pai de um filho esquizofrênico, a artista plástica Martha Pires Ferreira, a atriz Elke Maravilha, o poeta e romancista Marco Lucchesi, Luiz Carlos Mello, colaborador da psiquiatra durante anos e diretor do Museu Imagens do Inconsciente, e Dionysia Brandão, filha de Otávio Brandão, fundador do Partido Comunista, que teve forte influência ideológica e intelectual sobre ela.

Para ilustrar certas partes da narrativa e compor o enredo do documentário, Jorge e sua equipe gravaram cenas ficcionais no Rio de Janeiro e em Maceió. No elenco, os atores Mariana Infante, no papel da Nise, Rafael Cardoso, interpretando Mário Magalhães, e Nando Rodrigues, vivendo o escritor e dramaturgo Antonin Artaud, considerado como louco e por quem Nise tinha uma admiração profunda, pela obra por ele produzida. Parecido com o filme de Berliner, o projeto de Olhar de Nise demorou cerca de 14 anos para ser realizado. Exibido pela primeira vez na Mostra Panorama Brasil do 48º Festival do Cinema Brasileiro de Brasília, o documentário passou também em Los Angeles (EUA), ano passado.

Em 2016, o filme foi selecionado para festivais de cinema nos Estados Unidos, Inglaterra e Portugal. No segundo semestre, o público poderá assisti-lo no Canal Brasil. A Continente conferiu a sessão beneficente realizada no Cine Odeon, no Rio de Janeiro, em prol da Casa das Palmeiras, que vem passando por sérias dificuldades financeiras. Sem fins lucrativos, a instituição foi fundada em dezembro de 1956 por Nise, com uma proposta bastante audaciosa para os padrões da época de realizar atendimento, em regime aberto, às pessoas com transtornos mentais, buscando cortar o ciclo de internações existente. Acabou se tornando modelo de atendimento, antecipando as transformações ocorridas décadas depois com a Reforma Psiquiátrica. Este ano, a Casa das Palmeiras completa 60 anos como uma entidade que também promove atividades terapêuticas à margem do sistema de saúde. 

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