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Formação: Uma mulher infiltrada no mundo dos homens

Psiquiatra alagoana entrou no curso de Medicina aos 15 anos e lá se interessou pela doença mental a partir de estudos da criminologia feminina

TEXTO Marcelo Robalinho

01 de Maio de 2016

Nise da Silveira jovem

Nise da Silveira jovem

Imagem Reprodução

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 185 | maio 2016]

A relação de Nise da Silveira com o Nordeste
não se limita a Maceió (AL), onde nasceu e viveu a infância e adolescência. Ela teve proximidade também com o Recife (PE) e Salvador (BA), cidades que integraram parte importante da sua história. As lembranças mais antigas vêm do Recife e são ligadas à família. Filha de pai e mãe pernambucanos – o jornalista e professor de matemática Faustino Magalhães da Silveira e a musicista Maria Lídia da Silveira –, Nise tinha como um dos grandes prazeres, quando pequena, viajar para o Recife.

“Uma de minhas lembranças era da irmã do meu pai, que morava em Casa Forte. Algumas vezes, nós nos hospedávamos lá. Era a Campina da Casa Forte. Era um verde enorme. Então, ficávamos lá, na casa de minha tia, que tinha duas filhas. E havia o Colégio da Sagrada Família, em que minha prima estudava pintura. Achava bonito. Outra lembrança que tenho é da casa do pai de minha mãe. Ele morava com uma filha solteira e um filho poeta que, já aos 15 anos, publicou um livro de versos. Ele teve vários filhos, entre eles um que era predileção minha e da minha família. Era escritor e se chamava Léo. É em sua homenagem que dei o nome dele a um dos meus gatos”, recordou Nise em entrevista à revista Psicologia – Ciência e Profissão, em 1994.

Nise ingressou no curso universitário em 1921, na Faculdade de Medicina da Bahia, aos 15 anos, influenciada por um grupo de rapazes que estudava com o pai, entre os quais o primo Mário Magalhães da Silveira. Mais tarde, ele se tornaria grande médico sanitarista brasileiro, com quem Nise se casou. Quando passou em Medicina, ela ainda não tinha a idade mínima exigida, que era a partir dos 16. “Mas em Maceió tudo se arruma. E assim deram lá um jeito e eu entrei para a faculdade com 15 anos, como se tivesse 16. Depois, tive um trabalho danado para corrigir isso e voltar à idade certa”, contou, em depoimento ao poeta Ferreira Gullar, no livro Nise da Silveira: Uma psiquiatra rebelde, de 1996.

Nise se tornou a única mulher na faculdade, em que só estudavam homens. Foi nessa época que decidiu viver junto com Mário, seu colega de turma. Segundo relata Luiz Carlos Mello, na fotobiografia Nise da Silveira: Caminhos de uma psiquiatra rebelde, na época, a família não aprovou a união dos dois, por serem primos e não terem se casado no papel. Decidida inicialmente a se dedicar à clínica médica na faculdade, ela mudou os planos depois de conhecer a criminologia, área que a fez se interessar pela psiquiatria. Sua monografia de conclusão de curso – Ensaio da criminalidade da mulher no Brasil – foi um estudo com base em observações em presídios de Alagoas, de Pernambuco e da Bahia.

“Já pensando seriamente na tese, aproveitei a oportunidade para penetrar mais a fundo nos assuntos de criminologia na época do quinto ano do curso. Por isso visitei o presídio do Recife. Foi aí que encontrei o primeiro doente mental em minha vida. Tratava-se de uma pobre mulher, presa e condenada por homicídio, mas que não passava, afinal, de uma grande delirante, de uma louca. Conheci muitas outras pessoas doentes mentais, mas aquela, por ser a primeira, fez-me uma forte impressão”, recordou Nise.

Na sua mudança para o Rio de Janeiro, em 1927, depois da morte súbita do pai, ela foi morar com Mário em Santa Teresa, bairro da zona central carioca. Vivendo num quarto modesto na antiga Rua do Curvelo (hoje Rua Dias de Barros), eles tiveram como vizinhos o poeta recifense Manuel Bandeira e o alagoano e líder comunista Octávio Brandão, militante e um dos pensadores do Partido Comunista Brasileiro. “Logo que soube ter tão próximo um conterrâneo, fui visitá-lo”, contou. Octávio e a esposa, Laura Brandão, tornaram-se amigos de Nise. Ambos foram deportados para a Alemanha, em 1931, no governo de Getúlio Vargas. Laura faleceu em 1942, e Octavio regressou ao Brasil em 1946.

A aproximação da alagoana com as ideias de esquerda lhe rendeu perseguições. Foi presa em março de 1936, após ser denunciada por uma enfermeira com quem trabalhava no antigo Hospital da Praia Vermelha de que portava livros de marxismo. Ficou detida um ano e meio, o que lhe custou a perda do emprego e o afastamento do serviço público. Foi nesse período da prisão que Nise conheceu o escritor Graciliano Ramos, na cela ao lado da sua, na antiga Casa de Detenção, localizada na Rua Frei Caneca, no centro do Rio. O encontro e a convivência entre os dois na prisão foram relatados pelo próprio Graciliano no livro Memórias do cárcere.

A psiquiatra foi posta em liberdade em junho de 1937, por não haver processo contra ela. Em novembro do mesmo ano, porém, houve nova onda de prisões no país, levando-a a fugir para a Bahia, onde ficou escondida. “A partir de então, Nise permaneceu na clandestinidade lá e em outros estados do Nordeste e do Norte. No início da década de 1940, viveu em Manaus, onde Mário serviu como delegado federal de Saúde. No período da Segunda Guerra Mundial, por iniciativa do companheiro, Nise casou-se em regime de comunhão de bens. O casamento ocorreu no Recife, em novembro daquele mesmo ano”, revela Luiz Carlos Mello.

Segundo ele, a intenção de Mário era garantir uma aposentadoria a Nise, caso ele viesse a falecer, já que viajava com frequência para a base aérea norte-americana em Dacar, a fim de inspecionar as aeronaves para controle da malária. Foi nessa fase do exílio que a psiquiatra se aproximou da obra do filósofo holandês Baruch Spinoza. A profunda admiração pelo autor levou-a a escrever Cartas a Spinoza, lançado em 1990 e atualmente fora de catálogo, revelando aspectos públicos e privados da psiquiatra na sua relação com o pensamento do filósofo.

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