Era comecinho de 1949 no Rio de Janeiro. Em pleno verão carioca, o artista plástico Francisco Brennand, na época com 21 anos, hospedara-se na casa de seus tios, aguardando o embarque no navio da Mala Real Inglesa rumo à Europa. Seria a sua primeira viagem de navio com destino a Paris, onde pretendia morar, como tinha feito o pintor Cícero Dias. Durante os dias que antecederam a viagem, o pernambucano conheceu o pintor Almir Mavignier, que se mostrou interessado em acompanhá-lo em alguns lugares da cidade. Um deles foi a Seção de Terapêutica Ocupacional do Centro Psiquiátrico Pedro II, em que funcionava o ateliê destinado aos doentes internos. Já atuando como monitor de lá, Mavignier apresentou Brennand a Nise da Silveira. A visita ao Engenho de Dentro causou grande comoção e surpresa ao artista. Além dele, o pintor e desenhista Ivan Serpa (1923–1973) e o artista plástico Abraham Palatnik foram marcados pelo contato com as obras produzidas na unidade.“De formação moderno-acadêmica, eu ainda não havia travado conhecimento com a arte dos doentes mentais e, sobretudo, não encontrara dois verdadeiros gênios, como Raphael e Emygdio de Barros. Raphael, cujos desenhos lembram de imediato as melhores fases de Paul Klee, e Emygdio, com uma pintura expressionista de uma categoria inusitada. Raphael causou-me impacto com a singularidade dos seus desenhos, de uma linha surpreendente e pura. Vê-lo trabalhar ininterruptamente, traçando linhas sem nenhuma hesitação e qualquer possibilidade de retorno, é motivo de estupefação”, escreveu Brennand, num dos seus diários.
O trecho acima integra uma das páginas dos diários de Brennand, que compreendem a fase de 1949 a 2013. Em entrevista à Continente, o artista, que agora em junho completa 89 anos, recordou que o contato com a produção do ateliê do Engenho de Dentro modificou seu pensamento sobre o significado da arte. “Tudo aquilo em que eu acreditava como indispensável à formação de um artista não representava absolutamente nada diante dos insondáveis mistérios do inconsciente. Isso me deixou perplexo. Era muito melhor que eu jamais poderia alcançar”, disse.
Ao tomar contato com os trabalhos dos frequentadores dos ateliês, Abraham Palatnik afirmou ver ruírem os conhecimentos adquiridos na Palestina e nos ateliês de arte visitados ao redor do mundo. Assim como Brennand, Ivan Serpa nutria grande admiração pelos desenhos de Raphael, o que acabou influenciando seus trabalhos, indica José Otávio Pompeu e Silva, na dissertação A psiquiatra e o artista: Nise da Silveira e Almir Mavignier encontram as imagens do inconsciente, apresentada na Universidade de Campinas (Unicamp).
Raphael já desenhava pequenos traços nas paredes das enfermarias do Pedro II, quando começou a frequentar o ateliê de pintura. Lá, ele continuou a temática até desenvolver sua capacidade artística e terapêutica. No livro O mundo das imagens, Nise da Silveira analisou que a presença de Almir Mavignier e, posteriormente, de Martha Pires Ferreira foram fundamentais na história de Raphael. Funcionando como catalisadores, os dois artistas ofereceram, em épocas distintas, apoio e estímulo para ele desenvolver suas atividades, sem influenciá-lo.
A produção dele sofreu uma mudança, quando um dos frequentadores do ateliê, desavisadamente, sugeriu que desenhasse uma cara e depois um burrinho, contrariando as regras de não intervenção. “Esse fato insólito marcou o início de nova fase no desenho de Raphael. A partir daí, sem etapas de transição, num salto espantoso, surgem traços mágicos que virão configurar desenhos da mais alta qualidade. O prazer de desenhar num ambiente em que era tratado como pessoa humana querida despertou nele insuspeitadas manifestações de força criadora”, apontou Nise.
RAPHAEL E EMYGDIO
Nascido em São Paulo, em 1913, Raphael Domingues chegou a estudar desenho acadêmico, a partir dos 13 anos. Acometido por uma forma grave de esquizofrenia aos 16 anos, foi internado aos 19, no Hospital da Praia Vermelha, sendo transferido depois para o Pedro II. Suas pinturas chamaram a atenção também do crítico de arte Mário Pedrosa (1900-1981). “Que fez o destino a um ser extraordinário como Raphael? Tentou expulsá-lo da vida, trancando-lhe de saída a mocidade. Engenho de Dentro, felizmente, recolheu seus restos de personalidade, permitindo que ele ao menos fizesse uso de parte de seu aparelho de percepções. E o que este fez é sem par na história da criatividade humana”, considerou Pedrosa.
Outro frequentador dos ateliês que surpreendeu foi o Emygdio de Barros. Desde criança, ele já demonstrava habilidade com as mãos, fabricando brinquedos com caixas e pedaços de madeira, relata Luiz Carlos Mello. Formado num curso de torneiro mecânico, chegou a se tornar operário da Marinha, tendo realizado um estágio na França em função da qualidade do seu trabalho. Na volta da viagem, porém, entrou em crise ao descobrir que a mulher que amava tinha se casado com seu irmão. Assim como Raphael, Emygdio de Barros passou pela Praia Vermelha e depois foi para o Engenho de Dentro.
Internado há 23 anos e referido pelo seu psiquiatra como um “crônico muito deteriorado”, Emygdio começou a pintar ao ver os outros internos que frequentavam o ateliê. Logo chamou a atenção pela capacidade criadora, sendo considerado um gênio. “A pintura de Emygdio não reflete a experiência humana no nível da sociedade e da história. A ruptura com o mundo objetivo precipitou-o numa aventura abismal, em que o espírito parece quase perder-se na matéria do corpo, afundar-se no seu magma. E é daí, desse caos primordial, que ele regressa, trazendo à superfície onde habitamos, com suas imagens fosforescentes, nos ecos de uma história outra, que é também do homem, mas que só a uns poucos é dado viver”, escreveu o poeta Ferreira Gullar.
No texto produzido para o seu diário na época da visita ao Engenho de Dentro, em 1949, Brennand escreveu que evitaria retornar ao local, o que acabou ocorrendo. “Sinto-me estranhamente diminuído e desorientado quanto ao meu aprendizado futuro. Todas as regras tinham sido violadas”, afirmou. Apesar disso, ele não deixou de estudar a arte dos doentes mentais. A maioria das esculturas produzidas por ele e inspiradas em figuras mitológicas, a partir dos anos 1970, apresenta grande liberdade formal, possivelmente fruto do contato com os trabalhos dos internos.
Era comecinho de 1949 no Rio de Janeiro. Em pleno verão carioca, o artista plástico Francisco Brennand, na época com 21 anos, hospedara-se na casa de seus tios, aguardando o embarque no navio da Mala Real Inglesa rumo à Europa. Seria a sua primeira viagem de navio com destino a Paris, onde pretendia morar, como tinha feito o pintor Cícero Dias. Durante os dias que antecederam a viagem, o pernambucano conheceu o pintor Almir Mavignier, que se mostrou interessado em acompanhá-lo em alguns lugares da cidade. Um deles foi a Seção de Terapêutica Ocupacional do Centro Psiquiátrico Pedro II, em que funcionava o ateliê destinado aos doentes internos. Já atuando como monitor de lá, Mavignier apresentou Brennand a Nise da Silveira. A visita ao Engenho de Dentro causou grande comoção e surpresa ao artista. Além dele, o pintor e desenhista Ivan Serpa (1923–1973) e o artista plástico Abraham Palatnik foram marcados pelo contato com as obras produzidas na unidade.
“De formação moderno-acadêmica, eu ainda não havia travado conhecimento com a arte dos doentes mentais e, sobretudo, não encontrara dois verdadeiros gênios, como Raphael e Emygdio de Barros. Raphael, cujos desenhos lembram de imediato as melhores fases de Paul Klee, e Emygdio, com uma pintura expressionista de uma categoria inusitada. Raphael causou-me impacto com a singularidade dos seus desenhos, de uma linha surpreendente e pura. Vê-lo trabalhar ininterruptamente, traçando linhas sem nenhuma hesitação e qualquer possibilidade de retorno, é motivo de estupefação”, escreveu Brennand, num dos seus diários.
O trecho acima integra uma das páginas dos diários de Brennand, que compreendem a fase de 1949 a 2013. Em entrevista à Continente, o artista, que agora em junho completa 89 anos, recordou que o contato com a produção do ateliê do Engenho de Dentro modificou seu pensamento sobre o significado da arte. “Tudo aquilo em que eu acreditava como indispensável à formação de um artista não representava absolutamente nada diante dos insondáveis mistérios do inconsciente. Isso me deixou perplexo. Era muito melhor que eu jamais poderia alcançar”, disse.
Ao tomar contato com os trabalhos dos frequentadores dos ateliês, Abraham Palatnik afirmou ver ruírem os conhecimentos adquiridos na Palestina e nos ateliês de arte visitados ao redor do mundo. Assim como Brennand, Ivan Serpa nutria grande admiração pelos desenhos de Raphael, o que acabou influenciando seus trabalhos, indica José Otávio Pompeu e Silva, na dissertação A psiquiatra e o artista: Nise da Silveira e Almir Mavignier encontram as imagens do inconsciente, apresentada na Universidade de Campinas (Unicamp).
Raphael já desenhava pequenos traços nas paredes das enfermarias do Pedro II, quando começou a frequentar o ateliê de pintura. Lá, ele continuou a temática até desenvolver sua capacidade artística e terapêutica. No livro O mundo das imagens, Nise da Silveira analisou que a presença de Almir Mavignier e, posteriormente, de Martha Pires Ferreira foram fundamentais na história de Raphael. Funcionando como catalisadores, os dois artistas ofereceram, em épocas distintas, apoio e estímulo para ele desenvolver suas atividades, sem influenciá-lo.
A produção dele sofreu uma mudança, quando um dos frequentadores do ateliê, desavisadamente, sugeriu que desenhasse uma cara e depois um burrinho, contrariando as regras de não intervenção. “Esse fato insólito marcou o início de nova fase no desenho de Raphael. A partir daí, sem etapas de transição, num salto espantoso, surgem traços mágicos que virão configurar desenhos da mais alta qualidade. O prazer de desenhar num ambiente em que era tratado como pessoa humana querida despertou nele insuspeitadas manifestações de força criadora”, apontou Nise.
RAPhAEL E EMYGDIO
Nascido em São Paulo, em 1913, Raphael Domingues chegou a estudar desenho acadêmico, a partir dos 13 anos. Acometido por uma forma grave de esquizofrenia aos 16 anos, foi internado aos 19, no Hospital da Praia Vermelha, sendo transferido depois para o Pedro II. Suas pinturas chamaram a atenção também do crítico de arte Mário Pedrosa (1900-1981). “Que fez o destino a um ser extraordinário como Raphael? Tentou expulsá-lo da vida, trancando-lhe de saída a mocidade. Engenho de Dentro, felizmente, recolheu seus restos de personalidade, permitindo que ele ao menos fizesse uso de parte de seu aparelho de percepções. E o que este fez é sem par na história da criatividade humana”, considerou Pedrosa.
Outro frequentador dos ateliês que surpreendeu foi o Emygdio de Barros. Desde criança, ele já demonstrava habilidade com as mãos, fabricando brinquedos com caixas e pedaços de madeira, relata Luiz Carlos Mello. Formado num curso de torneiro mecânico, chegou a se tornar operário da Marinha, tendo realizado um estágio na França em função da qualidade do seu trabalho. Na volta da viagem, porém, entrou em crise ao descobrir que a mulher que amava tinha se casado com seu irmão. Assim como Raphael, Emygdio de Barros passou pela Praia Vermelha e depois foi para o Engenho de Dentro.
Internado há 23 anos e referido pelo seu psiquiatra como um “crônico muito deteriorado”, Emygdio começou a pintar ao ver os outros internos que frequentavam o ateliê. Logo chamou a atenção pela capacidade criadora, sendo considerado um gênio. “A pintura de Emygdio não reflete a experiência humana no nível da sociedade e da história. A ruptura com o mundo objetivo precipitou-o numa aventura abismal, em que o espírito parece quase perder-se na matéria do corpo, afundar-se no seu magma. E é daí, desse caos primordial, que ele regressa, trazendo à superfície onde habitamos, com suas imagens fosforescentes, nos ecos de uma história outra, que é também do homem, mas que só a uns poucos é dado viver”, escreveu o poeta Ferreira Gullar.
No texto produzido para o seu diário na época da visita ao Engenho de Dentro, em 1949, Brennand escreveu que evitaria retornar ao local, o que acabou ocorrendo. “Sinto-me estranhamente diminuído e desorientado quanto ao meu aprendizado futuro. Todas as regras tinham sido violadas”, afirmou. Apesar disso, ele não deixou de estudar a arte dos doentes mentais. A maioria das esculturas produzidas por ele e inspiradas em figuras mitológicas, a partir dos anos 1970, apresenta grande liberdade formal, possivelmente fruto do contato com os trabalhos dos internos. MARCELO ROBALINHO