“A minha língua-mãe é o movimento. Eu danço porque não tenho escolha. Eu tenho que dançar.” O autor da frase é o bailarino e coreógrafo Akram Khan, um dos corpos potentes de Move: o mundo da dança, série documental lançada há poucos meses pela Netflix. É desses produtos originais da plataforma que primam pela sedução de histórias fortes de vidas talentosas em uma edição envolvente – lembremos Chef’s table e Street food, por exemplo.
No seu episódio, Akram nos conta: tinha sete anos quando conseguiu formular sua primeira frase inteira em inglês (mesmo tendo nascido em Londres), mas, aos quatro, já era capaz de executar uma coreografia de 20 minutos. Criança hiperativa, diz ter nascido da crise. Quando veio ao mundo, em 1974, seus pais estavam recém-estabelecidos na Inglaterra, depois de fugir da guerra em que se encontrava Bangladesh na luta pela independência do Paquistão. Ao assentar uma nova vida naquele país ocidental, sua mãe usou justamente a dança para criar nos filhos o vínculo com suas raízes, em especial através da kathak, que articula movimentos do corpo com o som de centenas de guizos no tornozelo. Por isso, Akram, hoje um artista renomado, considera-se um “museu vivo”, que se transformou em dança contemporânea após ter passado, na adolescência, pela companhia do renomado diretor teatral Peter Brook.
A história de Akram se vincula, de alguma maneira, à do espanhol Israel Galván, outro nome gigante na série. Sua relação desde criança com o flamenco, no celeiro de Andaluzia, é substrato de sua criação atual, também em dança contemporânea, com solos impressionantes. Mas o seu processo de relação e rompimento com a tradição se deu de uma forma bem mais radical, incluindo rupturas com seu pai, conta no episódio, porque havia projetado nele o desejo de ter como filho “o melhor dançarino de flamenco do país” – daqueles que são do “flamenco puro”, ganhadores de troféus e vinculados ao virtuosismo técnico. Embora Israel tenha passado por tudo isso, queria ir além como artista, e é a esse processo que assistimos no terceiro dos cinco episódios de Move.
A jamaicana Kimiko é a única mulher da série. Imagem: Divulgação
Já o coreógrafo israelense Ohad Naharin parece estar criando uma tradição própria, a que deu o nome de “gaga”. Na verdade, uma assinatura tão potente e original quanto os trabalhos de Pina Bausch (1940-2009), por exemplo. O artista mais experiente da série cria, em sua companhia Batsheva, uma linguagem na qual explora o terreno mais orgânico e espontâneo do sensível para que uma potência poética surja dos corpos de seus cocriadores, os bailarinos.
É um trabalho de pesquisa constante que sai do campo do predeterminado para se conectar ao que há de mais íntimo em cada um – daí a alusão a uma expressão primitiva de nós, que ele brinca dizendo ter sido a primeira palavra de sua vida, “gaga”. “Posso tentar explicar o que vemos no palco, mas serei muito leigo e limitado. É mais ou menos como: você pode explicar o pôr do sol a uma pessoa cega? Você pode contar um sonho sem arruiná-lo? Você não pode explicar a distância entre corpos e movimento”, diz Naharin na série.
Esse depoimento foi usado pela crítica e poeta Maya Phillips (na sua resenha sobre Move, publicada pelo The New York Times no mês passado) como argumento negativo ao trabalho dos diretores franceses Thierry Demaizière e Alban Teurlai (os mesmos do filme Reset: o novo balé da Ópera de Paris, de 2015). Para a crítica, a série opta por escolhas clichês e óbvias, o que diminui o trabalho dos artistas perfilados, como quando explicam o que é dança. Mas são justamente falas como essa de Naharin que aproximam os espectadores não especializados da(s) dança(s). A linguagem da Netflix não é para especialistas e, sim, para o grande público, recorrendo, para isso, à linguagem televisiva do espetáculo. Não há mal nenhum nisso, ao contrário: é preciso haver meios de tirar a arte do seu campo de distanciamento. Além de adentrarmos nos processos criativos dos dançarinos e coreógrafos, coisa que só um documentário poderia fazer neste momento, temos acesso ao encanto pelos corpos e falas de pessoas excepcionais.
O trabalho da companhia Batsheva, de Ohad Naharin. Imagem: Divulgação
O interessante da série é justamente observar as possibilidades de corpos completamente distintos, cuja expressividade é resultado de uma vida inteira de muito esforço, uma entrega que chega a nós, sentadinhos no sofá, de forma muito inspiradora. O que faz falta na série são mais nomes de mulheres e outros gêneros. Só a jamaicana Kimiko ocupa esse lugar em Move, parecendo estar na curadoria dos diretores apenas para cumprir uma cota de mulher negra empoderada.
De fato, ela é isso, e tem na força do seu corpo a “ancestralidade contemporânea” do dancehall, liderando um grupo de mulheres num contexto machista, mesmo para a dança. Tanto em sua comunidade quanto na série, ela ocupa esse lugar de exceção, o que nos lembra também que a dança e a gastronomia, quando saem do espaço de anonimato, geralmente dão holofotes aos homens. Isso não tira o mérito dos que estão nesta série, incluindo a incrível dupla de hip hop Jon Boogz e Lil Buck (para completar a lista), mas há essa lacuna que as próximas temporadas de Move poderiam suprir.
OLÍVIA MINDÊLO é jornalista cultural e editora da Continente Online.