Com atmosfera ardente e se apropriando de tropes muito usadas no cinema de suspense e terror produzidos ao longo dos anos, o filme se volta para as relações e experiências da Geração Z, criando um filme que talvez possa vir a ser o grande precursor de um cinema feito organicamente para esse novo público. O humor ácido, as músicas, as redes sociais, as roupas, as maquiagens, penteados, ideologias, vocabulário e maneirismos: tudo na produção é um reflexo direto desse vínculo.
Na narrativa, Sophie, interpretada pela atriz Amandla Stenberg, recém saída da rehab, deseja apresentar a nova namorada, Bee (Maria Bakalova), para o grupo de amigos de infância. Com essa intenção, o casal vai até o casarão que pertence a David (Pete Davidson), melhor amigo da protagonista, onde todo o grupo já está reunido e preparado para atravessar uma madrugada de festa enquanto o furacão atinge a cidade. Sentados em roda, os personagens decidem jogar Morte, morte, morte, em que um dos participantes é sorteado como assassino do game e precisa tocar nos demais para matá-los. Eles, por sua vez, devem se defender fugindo e se espalhando pela mansão, silenciosos e no escuro. O rumo do jogo muda, porém, quando os amigos começam a realmente morrer e os demais se unem para descobrir quem é o assassino real.
Odiosos e mimados, os personagens criados por Halina não estão dispostos no longa de forma a gerar empatia ou sensibilizar o espectador. Falsos e invejosos, os amigos possuem rixas entre si e não funcionam como uma unidade. Contudo, em desarmonia, se tornam mordazes e a intenção cômica do filme se desenvolve e encontra seu espaço a partir daí.
Com o verdadeiro início da trama, o subgênero do terror do qual a obra faz parte se torna evidente, e Morte, morte, morte se volta para o movimento popularizado no cinema produzido nos anos 1980, o famoso slasher. Essa vertente se caracteriza por: um grupo de jovens perseguido por um assassino com arma letal, normalmente trajado com uma roupa ou máscara que o diferencia dos demais, como é apresentado em clássicos do terror como Sexta-feira 13, Brinquedo assassino, A hora do pesadelo e Halloween. Com produção mais barata, esse subgênero ganhou o coração dos fãs de terror pelo roteiro simples, descomplicado e sem grandes aprofundamentos no psicológico dos personagens, trazendo também, contudo, um alto número de mortes sangrentas e grotescas, alívio cômico e o amadurecimento dos protagonistas, que tendem a iniciar nos longas como jovens assustados e vão se tornando cada vez mais corajosos no decorrer do filme.
Abraçando essas características e incorporando a contemporaneidade juvenil, nasce a obra cinematográfica da produtora A24 (também responsável pelo filme X – A marca da morte). Com roteiro de Sarah DeLappe e Kristen Roupenian e estreia no festival South by Southwest, ou apenas SXSW, o longa ocupa um lugar de pioneirismo no que diz respeito à introdução de toda uma nova geração a um subgênero do cinema oitentista, mas que ainda tem substância a ser explorada.
Um desses pontos que torna o filme atual diante do gênero é o grande protagonismo feminino que ele apresenta nas telas. Sophie, a personagem principal da trama, é uma mulher negra e lésbica, assim como Bee, sua namorada. O clássico garoto durão que não tem medo de nada se torna Jordan, outra mulher negra, interpretada por Myha'la Herrold, assim como o alívio cômico das cenas fica a cargo de Alice, papel da comediante e atriz Rachel Sennott. Já Emma (Chase Sui Wonders), por vezes pode até cair no papel de dama delicada e assustada, mas não é passiva e se torna tão ativa quanto os demais diante das mortes.
As quatro personagens se mostram fortes, ainda que desesperadas, frente ao cénario em que se encontram e, mesmo entre brigas, desconfianças e trapalhadas, elas continuam conduzindo o roteiro. No slasher, o estereótipo de final girl é muito usado e se apresenta no final do filme, em que a única pessoa que sobra para matar o vilão é uma personagem feminina. Apesar de parecer progressista, suas origens dizem respeito à ideia da mulher perfeita: casta, inocente, doce e que apenas ao se ver em uma situação desesperadora, abraça o medo que sente e decide agir.
Os antigos slashers, por sua vez, passavam para os espectadores a imagem de que o modelo ideal feminino era o da garota boazinha e comportada. Morriam o garoto inteligente e sarcástico, o personagem esquisito e, principalmente, a menina "má", completo oposto da mocinha. Apesar de serem amigas em muitas obras, essa dualidade de personagens femininas contribuía com um olhar machista e conservador, que defendia os bons valores para as moças. Elas eram retratadas como virgens, tímidas, quase passivas para sobreviverem ao final das histórias, enquanto aquela que representava seu oposto, terminava morta.
Com o passar do tempo e novas ideologias feministas sendo incorporados pela sociedade, essa trope foi reiventada por outros filmes, que buscavam quebrar com a ideia da mulher pacífica, mas em Morte, morte, morte isso é visto de uma maneira nova. Na obra, elas são o grande destaque e deixam claro: não são garotas passivas. Muito pelo contrário, na verdade, Sophie, Bee, Alice e Emma tem personalidades distintas, mas possuem em comum a gana pela sobrevivência.
Diante da relação intrínseca que permeia o passado e o futuro do subgênero, Morte, morte, morte se destaca por beber de uma fórmula pronta, mas acrescentando novos ingredientes. Com atmosfera quente, o espectador sorri mais do que se assusta durante os 94 minutos da trama, e como bons anti-heróis, o grupo de amigos intoleráveis passa a divertir on espectador em meio ao caos. Com grande destaque para a personagem Alice, os termos e expressões típicos da Geração Z se manifestam de maneira caricata e exagerada. Ela é inocente e imatura, claramente mimada e inconsequente, porém, seu carisma diante do grupo chama a atenção.
Alice é evidentemente satirizada no filme, mas traz um toque realista capaz de se comunicar com a juventude. Em uma passagens, é revelado que ela possui um podcast onde oferece conselhos a seus ouvintes; em outra, ela afirma ser íntima do namorado que conheceu por um aplicativo de namoro há poucos dias. Ambas as situações exageradas se relacionam com piadas e experiências vivenciadas por essa geração retratada no filme, e é notável que, utilizando suas referências, o produto final conversa com o grupo de igual para igual.
Apropriando-se das tosquices dos filmes slashers, Morte, morte, morte entrega um final com plot twist digno da acidez humorística explorada a todo momento e traz para a cena mainstream esse subgênero, apresentando-o, com outras cores e formas, para um novo público, definitivamente mais irônico e satírico, mas que segue, porém, apreciando o horror cinematográfico.
LAURA MACHADO, estudante de Jornalismo e estagiária da Continente.