A lente que Douglas Kellner lança sobre a produção de cinema de terror da década de 1970 e seu profundo vínculo com o social da época talvez ilumine uma observação mais atenta sobre X – A marca da morte (2022), filme da produtora A24 (Hereditário; Midsommar), que remonta ao período histórico para traduzir uma certa ingerência política no ato de matar.
Aqui, a ação se passa especificamente no ano de 1979. Vemos um grupo de atores e uma equipe técnica numa van se dirigindo a uma locação numa zona rural dos Estados Unidos, enquanto imagens da pregação de um pastor revelam o tensionamento em torno de uma moral da época: atores e atrizes se entregam à realização de suas obras e vozes religiosas bravejam contra atividades “mundanas”, pouco afeitas à índole dos sujeitos. Estas vozes insurgentes ecoam de forma ainda mais pungente quanto sabemos que a equipe de gravação, na verdade, estava pronta para registrar um filme pornô. Tal equipe é recebida por um idoso que aluga uma casa anexa à sua e um galpão abandonado para a filmagem – sem que ele (o idoso) saiba que ali seria realizada uma produção pornográfica.
Alguns contrapontos emergem: a jovialidade dos atores pornôs em oposição ao caráter senil do homem; a moralidade de uma das integrantes da equipe de filmagens (interpretada por Jenna Ortega) oposta à lógica libidinal da bombshell e atriz principal da produção (Brittany Snow); a dinâmica de espreita e observação tanto como um gesto de vigilância quanto também de vouyerismo.
O roteiro do filme, escrito pelo diretor Ti West, vai progressivamente afunilando os dramas envolvendo a oposição fazer-sexo versus estar-à-espreita-da-morte e interessando-se por um enlace: a posição da estrela aspirante que encontra na indústria pornô um sonho de alcançar, quem sabe, Hollywood (vivida por Mia Goth) e o olhar da esposa idosa do homem que alugou a casa para as filmagens. É, aliás, nesta oposição entre a senilidade e a jovialidade que reside a tensão do filme.
Owen Campbell, Jenna Ortega, Brittany Snow, Kid Cudi, Mia Goth e Martin Henderson integram o elenco. Imagem: Divulgação
Este quadro dramático que coloca corpos jovens sedentos por sexo como sendo aptos a serem assassinados é um dos mais emblemáticos marcadores do sub-gênero do terror slasher, em que assistimos e vibramos com cortes, jorros sanguíneos e decapitações enquanto o assassino – que pode ser Jason, Freddy Krueger, Michael Mayers ou algum psicopata aleatório – parece encarar a moral cristã através de alguma arma branca. Matar o corpo sexuado, na leitura de alguns críticos e teóricos do cinema, sintetizaria um caráter conservador na produção de cinema de horror.
Aqui, em X – A marca da morte, a presentificação do slasher vem através de um paradoxo: é tanto a intenção de matar o desejo sexual de uma era hippie e hedonista como os anos de 1970 e instaurar a ordem conservadora que viria com a eleição de Ronald Reagan, na década de 1980, quanto uma certa inveja (e desejo de aniquilação) do corpo jovem, exposto e apto ao gozo, por pessoas idosas. A inscrição sexual que sublinha a relação entre “perfuração” e “penetração” de corpos faz algum sentido, ao mesmo tempo em que somos assombrados por idosos em que o rusgo da pele se converte em máscara de horror.
X – A marca da morte se desloca, então, de uma alegoria moral da virada da década de 1970 em direção a imagens e sons que traduzem o contemporâneo. Insere-se na linhagem de filmes de horror em que a velhice passa a ser encarada em sua face mais assustadora – aquela que tem ódio de uma certa “moral da pele lisa” (para usar um termo cunhado pela pesquisadora Paula Sibilia). É a acentuação da premissa existente em Visita (2015), um thriller de terror psicológico ligeiramente “menor” de M. Night Shyamalan, em que netos têm medo, vejam só, de seus avós que, por trás de suas rugas, podem esconder algum tipo de desejo de matar.
Personagens velhas e assustadoras sempre orbitaram o imaginário de horror, entretanto, agora, elas aparecem dramaturgicamente inscritas num duplo gesto de inveja: da capacidade de gozo de um corpo cansado e moribundo e também do viço da aparência e da pele que se expõe, sem marcas, como artefato de poder e visibilidade na era das redes sociais digitais.
De alguma forma, este ódio da pele lisa que aparece dramatizado em X – A marca da morte encarna o sintoma de uma cultura visual de filtros, botox e intervenções cirúrgicas como esferas libidinais (algo retratado em Crimes of the future (2022), o provocador filme de David Cronnenberg). Um ódio que parece não se conter em seu próprio corpo e esborra-se confundindo imageticamente gozo e jorro – de fluidos corporais, de sangue –, numa dinâmica que envolve prazer e punição de forma associativa e assustadora.
THIAGO SOARES, professor e pesquisador do Departamento de Comunicação e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), onde coordena o Grupo de pesquisa em Comunicação, Música e Cultura Pop (Grupop/CNPq).