Curtas

Madame Xanadu

Com protagonista inspirada em Clarice Lispector, romance ilustrado de Aureliano é o oposto de tudo que se pode esperar de uma 'drag queen'

TEXTO Mayara Moreira Melo

01 de Março de 2023

Foto Giancarlo Cadengue/Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 267 | março de 2023]

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Quando se pensa em drag queen, uma das primeiras coisas que vem à cabeça são festas, drinks e outros elementos efusivos que envolvem essa cultura pop. Madame Xanadu é o oposto de tudo que se pode esperar de uma drag queen. Mergulhada em melancolia após uma perda imensurável, ela surge como uma espécie de entidade para ocupar o vazio, uma forma de se reinventar e, assim, se descobrir maior que seu sofrimento. Com uma protagonista inspirada em Clarice Lispector, uma das maiores divas do autor, Aureliano, o romance ilustrado Madame Xanadu (2021) atravessa sentimentos e ideias que despertam no leitor a curiosidade em conhecê-la. “Clarice não vai atrás do que ela não é, mas é sincera em suas falas e escritas, trata de sentimentos escusos que ninguém antes falava. Escuto Clarice quando a leio, assim como me escuto quando me leio”, afirma o autor.

O livro é desenvolvido a partir da investigação de João, um jornalista que procura desvendar a real identidade da drag potiguar Madame Xanadu. Ao longo da história são trazidos relatos de pessoas que conviveram com aquela figura que buscava continuamente pôr fim à própria vida.

Por meio das ilustrações e textos, Aureliano apresenta personagens que, cada vez mais, revelam sobre a identidade de Madame Xanadu. A ficção expõe o luto e a nostalgia da protagonista, mas somente no final da história entendemos o porquê do seu sofrimento, quando nos é apresentado um personagem insuspeito.

A abordagem introspectiva dada por Aureliano a Madame Xanadu lança gradualmente pistas sobre o que de fato ocorreu na história, leva-nos a investigar quem é a drag, qual seu passado e em que ordem os acontecimentos se dão na sua vida. Criado originalmente para ser roteiro de filme, o título nasceu por entre as experiências adolescentes do autor. Em dezembro de 2022, o texto foi aprovado com nota máxima na categoria Desenvolvimento de Projeto para Longa-metragem do Cine Natal e deverá ganhar as telas com roteiro de Helio Ronyvon e produção executiva de Babi Barac.

Madame Xanadu foi inspirada na personagem homônima da DC Comics, que tem como habilidade a leitura de tarô para interpretar o que ela sente e prever o futuro. A protagonista de Aureliano, assim como a feiticeira da DC Comics, possui forte relação com essa arte divinatória, devido à atração pelo esotérico. O misticismo conduz a história de Madame, revelando seu passado, presente e futuro.

O autor conta que a concepção de Madame Xanadu foi uma forma de extravasar mágoas da juventude, como inseguranças e frustrações, mas também de brincar com as questões de gênero, com forte influência da cartunista Laerte, que, através de seus traços, retratou sua transição de gênero. Seis anos depois, ao pegar a primeira edição de Madame Xanadu, lançada de forma independente em 2015, e editá-la para em nova versão pela editora Nacional, Aureliano percebeu a dureza com a qual tinha tratado sua cidade e os sentimentos da protagonista. No processo de reescrita, modificou aquilo que o incomodava, dando mais leveza à obra.


Aureliano lança, pela Editora Nacional, a segunda edição de Madame Xanadu. Imagens: Reprodução

Aureliano também discute a diversidade de gênero através de seus personagens, principalmente identidades LGBTQIAP+. Isto, com narrativas que superam clichês comuns a abordagens desse tipo de personagem, numa postura crítica em relação a preconceitos como homofobia e racismo. Madame Xanadu levanta, junto a essas questões, temáticas da vida comum, como amizade, luto e crise de identidade. Por conta da sua contemporaneidade, surgiu o convite para que compusesse o acervo da tradicional Editora Nacional, criada pelo hoje polêmico Monteiro Lobato. Assim, o relançamento de Madame Xanadu (2021) se insere na reestruturação da linha editorial da empresa, em celebração ao seu centenário em 2025, em que buscou trabalhar com novos autores, como forma de reparação mediante a obra de Lobato, alvo de críticas de racismo no contexto da sociedade brasileira atual.

CIDADE NATAL
O elemento geográfico é central em Madame Xanadu. Na primeira edição, Aureliano abordou de forma melancólica a cidade, ao não explorar Natal como cenário de seu romance e não trabalhar a afetividade que os espaços da capital potiguar são capazes de promover. Hoje, o autor compreende a importância de valorizar sua cidade, como nos momentos em que traz o Café Salão como cenário; cenário que deve ser utilizado na adaptação para o cinema, contribuindo com um sotaque local.

“É uma cidade com pouca memória. O livro e o filme não poderiam se passar em outro lugar senão aqui, pois me sinto na responsabilidade de criar lembranças da cidade, caso contrário, tudo acaba virando farmácia”, comenta o autor, referindo-se à especulação imobiliária que engole a cidade e apaga os espaços de convívio social, cultural e histórico.

Na transposição do texto para o cinema, Aureliano conta que será dado tratamento especial às referências ao tarô, sobretudo a partir das três cartas de arcanos maiores que Madame puxa em jogo no fim da narrativa. O longa-metragem será, assim, segmentado em três tempos: A Imperatriz, O Enforcado e A Estrela, que tratam do passado, do presente e do futuro da protagonista.

A cronologia fragmentada do livro, que flui entre o passado e o presente, deverá ser mantida no longa; ela brinca com a ordem dos acontecimentos, ao iniciar o romance com o fim da história, assim como acontece em filmes hollywoodianos como Garota interrompida (1999), forte inspiração de Aureliano.

Ainda, a personagem Madame Xanadu fará participação especial em Reinventando Denise, próximo livro de Aureliano, previsto para ser lançado em abril deste ano. Novamente situada na cidade de Natal, a narrativa aborda a volta da protagonista Denise à sua cidade de origem e a excessiva tentativa de reatar antigas relações, após cinco anos distante. Aureliano afirmou que Madame aparecerá de forma ainda mais fantasiosa nessa nova história e que, por meio de uma espécie de táxi lunar, levará os personagens a viajar no tempo.

MAYARA MOREIRA MELO é jornalista em formação pela Unicap e estagiária da Continente.

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