Talvez a melhor forma de referi-lo seja "filho do Sertão do Pajéu", já que essa denominação sustenta a relevância da obra: nascido e criado nas mesmas ribeiras do Rei do Cangaço, Anildomá tem sensibilidade para contar a sua história. As contribuições do autor para a perpetuação da cultura lampiônica vão além dos seus trabalhos de pesquisa, que resultaram em diversos livros publicados e foram estendidos à fundação do Museu do Cangaço em Serra Talhada, reduto da memória desse movimento.
A vasta quantidade de obras sobre o tema, com diversos recortes traçados por autores como Amaury Corrêa de Araújo e Frederico Pernambucano de Mello, podem sugerir que não há mais novidade, que as produções posteriores seriam uma reiteração do já publicado. O fato é que Lampião é um personagem complexo, e esse recente livro traz um recorte diferente, que se refere ao tempo – 1920 a 1928 – e à geografia – limitada às cidades do Sertão do Pajeú, antes de Lampião ir para a Bahia.
Não há como dissociar a vida de Anildomá do cangaço. Desde pequeno, esteve metido entre os mais velhos, escutando os testemunhos dos que presenciaram alguma passagem da vida de Lampião, alguns dos quais remanescentes do movimento ou dos temidos volantes. Motivado por essas histórias, na adolescência, começou a colecionar cordéis, matérias de jornais, documentos, fotografias, armas, munições, entre outros elementos que compunham esse universo. A paixão, como não podia ser diferente, foi passada para os seus dois filhos. “Eles são frutos desse amor pelo cangaço, meu e de Cleonice Maria, minha esposa”, brinca Anildomá, em entrevista à Continente.
Com um gravador, foi atrás dos relatos que sempre fizeram parte do seu cotidiano. Começou com o primeiro inimigo de Lampião, Zé Saturnino, depois foi ouvir os seus “coiteiros”, como Isaias Vieira, o famoso Zabelê. O autor confessa que já no contato inicial com o cangaço percebeu se tratar de uma luta de classes: “Eram as pessoas mais pobres, que viviam às margens da sociedade, vítimas dos coronéis e fazendeiros. Por não encontrarem justiça para resolver as suas questões, empunhavam armas para fazê-la com as próprias mãos”.
Lampião e o Sertão do Pajeú resulta dessa pesquisa que acompanha a própria vida do autor, rendendo-lhe um bom acervo que serviu também de base à fundação do museu. A partir do que colecionou ao longo dos anos, o "filho do Sertão do Pajeú" constrói as pautas de seus livros. Esse recente trata mais a respeito do que disseram sobre Lampião do que sobre sua figura propriamente dita. É para entendermos o seu contexto através do olhar dos outros.
“Por que os coronéis e comandantes, que vendiam armas e munições para Lampião, hoje, são nomes de avenidas e escolas, com direito até a estátuas? Esses é que são nossos heróis, por fazerem parte da elite dominante dos sertões do nordeste brasileiro? E Lampião, o ‘zé-ninguém’, que apenas peitou essa estrutura dominadora da época, é o bandido?”: são alguns dos questionamentos que nos ocorrem durante a sua narrativa.
Os fatos, o imaginário popular e o que a imprensa dizia são postos em confronto, para percebermos que Lampião vai além do rótulo de herói ou bandido. Trata-se de enxergar o cangaço como história, dando um passo no entendimento do que era a estrutura de poder de sociedade no final do século XIX e começo do XX. “Se essas questões não forem levantadas, a gente vai ficar somente vendo Lampião como assassino e lembrando dos cangaceiros no mês do folclore, quando nossa ancestralidade como um todo é diminuída, sem aprofundar o diálogo sobre o que somos, o que queremos e qual é a nossa identidade cultural”, pontua Anildomá.
Foi a partir do cangaço que ele diz ter aprendido a ler a sociedade: “Esse olhar me permitiu descobrir qual é essa identidade, me fazendo entender coisas que eu poderia procurar em qualquer livro e não encontraria”. Por essa relação estreita, as pessoas até especulam se o filho do Sertão do Pajeú não seria, na verdade, filho de Lampião. E ele não esconde o seu fascínio de ouvir e contar essa história: “Se tenho algum parentesco com ele, não sei. O que posso dizer é que tenho a minha vida dedicada ao cangaço e a Lampião”.
SAMANTA LIRA é estudante de Jornalismo da Unicap e estagiária da Continente.