Essa constante experimentação foi herdada de um antepassado: o seu tetravô, o desenhista Hercule Florence, um dos inventores da fotografia. Francês radicado no Brasil em 1824, Hercule realizou pesquisas avançadas para reprodução gráfica de textos e desenhos, usando as propriedades químicas do nitrato de prata e os princípios da luz na câmara escura. Após anos de experimentos, ele conseguiu, em 1833, imprimir uma imagem negativa da vista da janela de sua casa em uma superfície. Hoje, Antonio mantém um instituto para conservar e divulgar documentos e estudos do tetravô, porém a ligação entre eles ultrapassa a preservação da memória. Embora usem técnicas diferentes para a captação de imagens, Hercule e Antonio encontraram no experimento com a luz um ponto de ligação artística entre as suas gerações.
Contudo, não foi apenas a relação afetivo-familiar que inspirou o olhar fotográfico e a obra de Antonio Florence. Ainda em 2015, duas de suas imagens chamaram a atenção de um fotógrafo internacionalmente conhecido, que logo lhe deu o seu aval. “Fiquei encantado com a forma de você colocar a luz como personagem principal da sua fotografia. Sei por onde ela vai e gosto desse caminho”, declarou o norte-americano Ralph Gibson, enquanto ministrava um workshop sobre linguagem fotográfica em galeria paulista. Essas palavras foram uma importante surpresa para Florence, permitindo que ele começasse a se apropriar de sua arte. Foi como se o seu tetravô Hercule estivesse ali, concretizado na figura de Gibson e incentivando-o a seguir por esse caminho, antes desconhecido e escuro, e agora iluminado por fachos crescentes de luz.
Foi o momento de Antonio Florence assumir o encanto pelos grafismos. Pelo preto e branco, pela profundidade das sombras e os chiaroscuros demarcados. Tudo isso possibilitado (e captado) pelas diferentes nuances proporcionadas pela luminosidade, natural ou artificial. E também fez com que o artista assumisse de vez o seu dia a dia como um agente de suas composições.
Nesse sentido, o fotolivro Intervalos acidentais é resultado do autoentendimento de Antonio quanto às suas potencialidades como fotógrafo. Seu trabalho com os fenômenos da luz aparece concretamente desde o título da obra. Na dialética da oposição entre claro e escuro, a iluminação surge como intervalos, pausas, respiros, que, no entanto, representam experimentações acidentais, repentinas e surpreendentes.
Eder Chiodetto, editor do livro, conta que abraçou o projeto desde a sua origem. Realizou um trabalho de curadoria em conjunto com Florence, apostando em algumas composições, aperfeiçoando outras, de modo a fortalecer a proposta conceitual de suas fotos, que apresentam, segundo ele, “originalidade e desenvoltura com a luminosidade em situações costumeiras”. Na obra se efetiva “um conjunto vibrante” de imagens, de maneira a elucidar a sua identidade artística de fotógrafo.
O curador ressalta como a fluidez e delicadeza da obra de Florence rebatem essa época atual, sufocada por diversos tipos de excessos, cuja intensidade de informações impede uma percepção natural das coisas simples e corriqueiras, identificando-a, portanto, como um livro essencialmente contemplativo, que, ao mesmo tempo, propõe reflexões ou causa sensações no espectador, convida-o a ir além e apreciar as miudezas do seu cotidiano.
Intervalos acidentais foi lançado no final de 2017 e é dedicado ao fotógrafo Ralph Gibson como um agradecimento ao seu olhar e às suas palavras, importantes condutores para um caminho fotográfico possível, concretizado na coletânea. A obra, portanto, vai adiante do que diz o filósofo Vilém Flusser: as fotografias são, sim, verdadeiros mediadores entre o homem e sua realidade, da qual Florence se apropria dos contrastes da luz para redesenhar objetos e paisagens ao seu redor. Suas composições abstratas tornam-se um convite não apenas para contemplar seu aguçado olhar fotográfico, mas, sobretudo, para apreciar um pouco mais da sua história e da sua experimentação com a singeleza do mundo.